Dinâmicas do Investimento na Indústria Bélica no Brasil (1964-1993) Geopolítica e Projeção nas Decisões de Poder

André Luiz Godoy Ponce (PPGHE/USP)


O presente artigo é resultado parcial de minha pesquisa de doutorado em História Econômica, que objetiva identificar os liames singulares que a proposta de edificação do Brasil Potência estabelece com a implantação e o desenvolvimento da indústria bélica nacional, bem como examinar a respectiva motivação do governo local, as doutrinas mobilizadas em tal mister e as ações então empreendidas, entre os anos 1964 e 1993, para suster e impulsionar esse setor da economia, distinguindo, ainda, os resultados almejados e aqueles efetivamente alcançados ao longo de todo o processo. Assim, a presente comunicação pretende abordar os aspectos geopolíticos vinculados ao citado esforço, os principais acontecimentos relativos ao setor, as conexões internacionais, especialmente em relação aos Estados Unidos da América (EUA) e uma breve análise global do período investigado.

Assim, com vistas a esquadrinhar referido processo, observaremos, de forma sucinta, a gênese e desenvolvimento de três organizações emblemáticas do período em pauta, a saber: Engenheiros Especializados S/A (ENGESA), Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER) e Indústria de Material Bélico do Brasil (IMBEL). Notadamente, discutiremos a estrutura, o desenvolvimento e o modelo de negócios destas instituições, as quais constituirão estudos de caso no bojo da tese ora em elaboração. De início, julgamos oportuno assinalar que o segmento bélico só conhecerá uma iniciativa robusta, consistente e com razoável êxito a partir de meados da década de 1960, perseverando ao longo do período do regime militar brasileiro (1964-1985), quando diversos empreendimentos são estimulados, contabilizando-se, então, mais de 300 empresas em atividade.

Esses esforços produzirão, conforme apontado por Ken Conca, o complexo industrial-militar1 que logrou um crescimento notável entre os anos 1970 e a primeira metade da década de 1980, lapso em que as principais companhias do segmento estarão com suas plantas e seus programas plenamente instalados e em funcionamento, fornecendo para os mercados nacional e internacional, com exportações atendendo a pedidos especialmente da América do Sul, da África e do Oriente Médio (destacando que Europa e América do Norte também receberam equipamentos). Contudo, pouco depois deste momento de máxima expansão, o setor entra em declínio, inclusive com o encerramento de atividades, falência ou quase falência de importantes empresas por volta do ano de 1993, ponto final cronológico do presente trabalho. Importa anotar que este momento de grave crise do setor é o que justifica a escolha do momento de encerramento do período eleito para minha pesquisa de doutorado.

1. A geopolítica do (para o) Brasil

Como já destaquei em minha dissertação de mestrado2, a imagem do Brasil Potência informa o imaginário de expressiva parcela da sociedade – civil e militar – pelo menos desde os primórdios da vida nacional republicana. Ampla disponibilidade de recursos naturais, situação demográfica, “sociedade estável” e significativo mercado consumidor interno constituem justificativas que patrocinam a crença na grandiosidade nacional; que repercutem especialmente no seio das Forças Armadas Brasileiras.

Os militares brasileiros adotam essa tese mais do que qualquer outro segmento da coletividade brasileira e tomam para si a tarefa de conduzir o país ao seu destino de Potência e, para tanto, adotam a Geopolítica como sua principal referência efonte de inspiração, consubstanciada na fundação da Escola Superior de Guerra – a ESG – e em seu principal produto, a Doutrina de Segurança Nacional.

O medular expoente e inspirador teórico dos aludidos temas foi, indubitavelmente, o General Golbery do Couto e Silva, autor de Geopolítica do Brasil, um dos mais influentes quadros da ESG e mentor de amplos setores da oficialidade militar brasileira, ainda que de maneira indireta3.

Mas, antes de avançar, cabe lembrar que, com o advento da Era Vargas, os setores militares que defendiam a intervenção e a participação nos assuntos políticos ganham relevo4. Verifica-se a sistematização de um projeto para a nação, que será desenvolvido pelos militares, em aproximação com a elite civil, esta especialmente industrial e urbana, mas também composta por intelectuais e políticos5. Como aponta Murilo de Carvalho6:

A aliança das Forças Armadas com setores da burguesia, apenas esboçada antes, agora se tornou nítida. A ESG e órgãos como o IPES serviram de instrumentos ideológicos e práticos na aproximação da elite militar com as elites econômicas. Seria exagero dizer que as Forças Armadas se tornaram instrumentos dos interesses empresariais, mas pela primeira vez os empresários encontraram nelas um parceiro confiável.”.

Retomando a discussão sobre a Geopolítica, devemos recordar que tal campo do conhecimento está intimamente relacionado com a guerra e, sob tal perspectiva, procura analisar e estruturar cenários possíveis para uma situação de conflito. Mas, além disso, esta disciplina também trata da concepção da elaboração de planos de ação, considerando aspectos geográficos, econômicos e sociais para estabelecer as estratégias que serão adotadas à luz das condicionantes nacionais e internacionais e da relação com outros Estados. O fim último da Geopolítica é, justamente, a construção de um Poder Nacional, capaz de lidar com a disputa pela hegemonia (regional ou mundial), e a projeção de poder a partir de um dado território. A crescente integração dos meios militares à política nacional irá agregar uma particular maneira de diagnosticar e propor soluções para a segurança e para o desenvolvimento do país, que terá influência marcante nas propostas e ações do regime instaurado em 1964.

O General Golbery do Couto e Silva, desenvolve sua obra a partir dos anos finais da década de quarenta, propondo ideias que, além de causarem impacto e ostentarem relevância quando da estruturação do Estado após o golpe civil-militar de 1964, continuarão a ser consideradas por estrategistas militares brasileiros até os dias de hoje7. Partindo da premissa da guerra inevitável – “total, permanente, global, apocalíptica” –, a obra de Couto e Silva apresenta uma estratégia para o desenvolvimento do Brasil 8, para a sua segurança e para a preservação dos valores ocidentais (que considerava presentes na estrutura íntima da sociedade brasileira). Desse modo, o autor identificará as necessidades imediatas, relacionadas à conjuntura do momento, essencialmente à segurança e à defesa do Ocidente, como os Objetivos Nacionais Atuais e, com relação à projeção para o futuro, os Objetivos Nacionais Permanentes

O general Carlos de Meira Mattos, avançando a partir de autores predecessores, ultrapassa as fronteiras continentais para preocupar-se com o âmbito global, não apenas em um cenário de contenção, mas também de inserção ativa no mundo. Para este autor, a Geopolítica é resultado da influência mútua do poder do Estado, do território e da experiência; em outras palavras, é a conjugação da Política, da Geografia e da História.

Partindo de constatações semelhantes àquelas apresentadas na Introdução deste trabalho – acerca dos recursos naturais, da coesão e da história características do país –, Meira Mattos considera possível, para o início do século XXI, o ingresso do Brasil no clube das grandes potências. Desse modo, seu foco investigativo se concentrará em aspectos de ascendência global, buscando caminhos para uma projeção internacional do poder brasileiro, ao mesmo tempo em que procura estudar os mecanismos capazes de garantir a integridade e a exploração do território nacional. Sua preocupação será, predominantemente, com a fronteira amazônica, uma vez que as questões ligadas à região platina já estavam equacionadas. No que diz respeito à referida projeção de poder, sugere a modernização da doutrina militar brasileira, defendendo a tese de que o país deveria construir um sistema de defesa e segurança apto a garantir as rotas do Atlântico Sul, tanto navais, quanto aéreas, preparando, assim, forças aeronavais com poder dissuasório, que, uma vez conjugadas ao poder terrestre, formassem um dispositivo estratégico de alta mobilidade.

2. Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento

Apesar de bastante explorada pela bibliografia disponível acerca do tema9, considero convir ao escopo do presente trabalho dedicar parte desta seção aos aspectos mais relevantes da Doutrina de Segurança Nacional, abordando, sucintamente, dois autores clássicos: Maria Helena Moreira Alves e Joseph Comblin. Além disso, buscarei analisar, a partir dos manuais publicados pela Escola Superior de Guerra, enquanto fonte primária da referida doutrina, as bases e as diretrizes da DSN, especialmente aquelas que terão impacto na política externa brasileira.

A dessa doutrina encontra seus elementos constitutivos em período muito anterior à fundação da ESG. Maria Helena Moreira Alves, em Estado e oposição no Brasil informa que Margaret Crahan identifica as origens da ideologia da segurança nacional no Brasil já no século XIX, e que “elas vinculam-se então a teorias geopolíticas, ao antimarxismo e às tendências conservadoras do pensamento social católico”10.

Ainda de acordo com Moreira Alves11:

Em sua variante teórica brasileira, a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento constitui um corpo orgânico de pensamento que inclui uma teoria de guerra, uma teoria de revolução e subversão interna, uma teoria do papel do Brasil na política mundial e de seu potencial geopolítico como potência mundial, e um modelo específico de desenvolvimento econômico associado-dependente que combina elementos da economia keynesiana ao capitalismo de Estado.

Por outro lado, em abordagem à documentação selecionada para o estudo da Doutrina de Segurança Nacional – que será denominada, a partir de meados dos anos setenta, de Doutrina Política Nacional de Segurança –, podemos vislumbrar as razões que motivaram tal elaboração, segundo os seus formuladores.

Nesse sentido, registre-se, inicialmente, que, de acordo com o Manual de Fundamentos da Doutrina, publicado em 1981, pela ESG, “a Segurança Nacional é função mais do Potencial Geral da nação do que de seu Potencial Militar”. Sob esta perspectiva, assinala o documento que:

[...] o desenvolvimento do Brasil vinha sendo retardado por motivos suscetíveis de remoção, à espera que se utilizasse a energia motriz contida nas elites capazes de assumir os encargos de direção do esforço nacional, e, mais adiante, [propor] a substituição de um dos traços mais peculiares (e dos mais arraigados) do Caráter Nacional – o individualismo – que se desejava superar (pp. 16-17).

Além do caráter elitista, ao descrever o individualismo – caro aos princípios liberais – como uma das características nocivas ao engrandecimento da nação e para a sua efetiva segurança, o excerto acima aponta para a dimensão da DSN avessa ao liberalismo. Conforme assevera Maria Helena Moreira Alves, para os formuladores da DSN: “O capitalismo liberal é uma insensatez que leva diretamente aos problemas estudados por Marx”12.

De fato, na concepção dos estrategistas da Escola Superior de Guerra, a segurança “já não se contém nos limites da defesa e, por isso, extravasa do campo militar para impregnar-se de aspectos políticos, econômicos e psicossociais”. Além disso, os problemas também concernentes à segurança estão “intimamente ligados com os do desenvolvimento, a ponto de ser impossível tratá-los, a nível político, como fenômenos independentes” (Fundamentos da Doutrina, 1981, pp. 15-17). Por conseguinte, segurança e desenvolvimento, binômio fundamental na constituição do Poder Nacional, devem ser necessariamente conduzidos por um poder executivo centralizado e forte. A propósito de tais reflexões, conforme se extrai do Manual de Fundamentos da Doutrina13:

Fundamental esclarecer que, Poder Nacional, na concepção dos estrategistas da DSN é a expressão integrada dos meios de toda ordem de que dispõe efetivamente a Nação, numa época considerada, para promover, sob a direção do Estado, no âmbito interno e externo, a consecução ou manutenção dos objetivos nacionais.

Logo, cabe ao comando executivo do Estado a construção da nação e a identificação de suas metas, algo que, para os formuladores da ESG, foi negligenciado na história do Brasil, pois somente a partir de 1964 “dava-se início ao processo de racionalização da ação política, com vistas à modernização do país e à aceleração de seu desenvolvimento14”.

Ainda sobre o tema, considerando os objetivos de segurança, a imbricação entre as esferas nacional e internacional é patente na DSN. Para os fins desta dissertação, interessa, principalmente, a observação dos efeitos externos das propostas doutrinárias; contudo, ressalte-se, não podemos perder de vista a relação estabelecida entre as dimensões interna e externa.

No processo de racionalização e planejamento proposto pela DSN, a primeira tarefa consiste na identificação dos objetivos nacionais brasileiros, mas, para tanto, relaciona-se a condicionante externa entre os cinco aspectos que devem ser contemplados15. Quanto a este ponto, os manuais da ESG assinalam que:

O Brasil é um país em expansão econômica e em contínua busca de aperfeiçoamento político e social. À medida que a nação se desenvolver ainda mais e se projetar no panorama mundial, crescerão suas responsabilidades, seus compromissos adquirirão sentido mais amplo, e serão descortinados novos horizontes. A influência dos elementos externos na formulação dos Objetivos Nacionais brasileiros tenderá a crescer, acompanhando a evolução do país. (Fundamentos da Doutrina, 1981, p. 38).

3. Potência e Projeção de Poder

A História da Indústria de Armamentos no Brasil pode ser situada com a criação do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro, no século XVIII, ou com a Fábrica Real de Pólvora, em data coincidente com a chegada da Família Real ao Brasil (1808). Que o leitor não se exaspere; não pretendo aqui elaborar uma narrativa de quatro séculos, mas apenas situar cronologicamente o setor. Nosso interesse central está compreendido entre meados da década de 1960 e início da década de 1990 do século XX... Distante – nem tanto – mas um interregno bem mais acolhedor. Para ser preciso, nosso período compreende o início do regime militar brasileiro e termina com sua aparente negação. O ponto inicial remete a um momento de extrema turbulência política, mas também de intenso debate sobre as possibilidades de desenvolvimento nacional, nosso papel no cenário internacional e os rumos de nossa sociedade. O regime autoritário instalado em 1964 possibilitou liberdade para o Estado investir recursos, ditar regras e promover ações que permitiram o florescimento de um projeto industrial de defesa que chegou a exportar seus produtos para dezenas de países, aproveitando um momento histórico específico. Mas o mesmo regime não tinha condições de garantir, apenas por sua conta, a manutenção do projeto almejado. Empresas foram criadas, estimuladas ou reunidas com o objetivo de criar um país desenvolvido, um Brasil Potência, com capacidade de projetar seu poder ao menos no cenário regional e atlântico (sul). A sobrevivência delas dependeria, contudo, de variáveis que o Estado brasileiro não poderia manejar. Os sucessores das décadas dos generais não contaram com cenários tão propícios. Envolvidos, como no começo de nosso período, num momento político turbulento, premidos, de um lado, por uma sociedade que exigia direitos e mudanças, uma economia estrangulada por crises de dívida, petróleo e por uma imensa dívida social e, de outro, por um sistema internacional em profunda transformação, que não permitia grandes espaços de manobra para além do Consenso de Washington, buscaram manter, dentro de suas possibilidades, iniciativas anteriores. Mas eles também não tinham mais condições – políticas e econômicas – para cultivar o desejo de potência. As empresas envolvidas, da mesma forma, não tinham força para prosseguir seu caminho isoladamente.

É para entender esta história, para buscar respostas que indiquem se outro caminho era possível, que aceitamos o desafio de produzir a minha pesquisa, parcialmente refletida neste artigo. Assim, este estudo pretende abordar, em perspectiva histórica, o imbricamento entre ações do Estado e ações de empresa, os estímulos e sinais emitidos pelo poder público, sua recepção nas atividades empresariais, bem como a relação estabelecida entre esses agentes, com o intuito de compreender e analisar os resultados de tais iniciativas. Neste sentido, será fundamental promover um detido exame acerca dos sucessivos governos que compõem o período eleito para a pesquisa, suas linhas de força e inspiração, suas continuidades e rupturas, sua política interna e externa, entre outros tópicos atinentes ao Estado. Da mesma forma, também será fundamental escrutinar o ambiente de negócios selecionado, os reflexos das referidas ações estatais em tal esfera e as decisões estratégicas concebidas a partir deles, buscando ainda identificar se o espaço da experiência afetou o horizonte de expectativas dos tomadores de decisão.

Considerando as datas focais propostas para a pesquisa, é natural que sua gênese – o regime militar brasileiro implantado em 1964 – adquira especial relevância, não só por este compreender dois terços do período selecionado e denotar o momento fundante das empresas destacadas para análise, mas também, e talvez principalmente, por terem os dois governos sucessores aos militares a marca do rompimento (ao menos discursivo) com seu legado político e, máxime na gestão Collor, o desmonte do modelo de desenvolvimento dantes adotado. Ainda refletindo sobre o intervalo temporal, parece-nos conveniente tecer alguns comentários sobre as nomenclaturas que buscam explicar o regime militar através de uma periodização temática. Alguns autores propõem uma fase para cada presidente, como o fazem Élio Gaspari e Amado Luis Cervo; outros, diferentemente, regulam seu critério de acordo com o grau de arbítrio e repressão, como o adotado por Rubens Ricupero (2017), que identifica dois períodos distintos, identificando os três primeiros presidentes com o momento “duro” do regime, e apontando os dois últimos como representantes da fase de distensão e abertura progressiva. As periodizações apresentadas adotam o viés político para a sua constituição, algo que, a princípio, pode parecer impertinente ao estudo da História Econômica e da História de Empresas, mas que, quando divisado sob a perspectiva de minha proposta de análise – no âmbito da qual o ambiente político também figura como indispensável à compreensão das diretrizes de negócios – mostram-se de todo relevantes, inclusive para o encadeamento com os períodos subsequentes ao fim do ciclo dos generais.

De uma perspectiva estritamente econômica, temos as já usuais expressões Milagre Econômico, Crise Interna/Externa, Década Perdida, dentre outras. Conforme o mencionado no projeto, creio que a proposta mais interessante é aquela apresentada por Delfim Netto (Giambiagi, 2005), a saber: Reforma, Crescimento e Equilíbrio, no período de 1964 a 1973; Choque, Crescimento e Crise, entre os anos de 1974 e 1979; Ajuste e Crescimento, entre 1980 e 1985 e, por fim, Estagnação, entre 1986 e 1994. Pretendo, contudo, estabelecer uma aproximação entre o quanto exposto em cada um destes dois últimos parágrafos, apresentando correlações que explorem de maneira mais abrangente os fenômenos observados, as conexões e referências que permitem englobá-los e que, por conseguinte, ajudam a iluminar as relações empresa-Estado propostas nesta pesquisa.

Como minha proposta de análise leva em sensível consideração o Estado, julgo pertinente tecer alguns comentários sobre uma maneira de pensar (também uma disciplina) que pode ajudar a refletir sobre diversas decisões tomadas no período e aqui ressalto que é sobre todo o período – trata-se da Geopolítica. Antecipamos que esta é uma possibilidade de análise, não pretendemos esgotar todas as influências que formam o quadro conceitual operacionalizado pelas elites do poder. Optei pelo viés geopolítico por considerar que ele informa – e forma – mais de uma geração de altos oficiais militares brasileiros, por carregar em seu bojo a reunião de diversas correntes de pensamento, como o realismo político e o desenvolvimentismo, e por identificar que, ao menos nas duas últimas décadas, o estudo de tal disciplina foi afastado das avaliações e análises intelectuais, chegando mesmo a ser considerado um equívoco sua mobilização para explicar eventos de nossa história recente, mesmo no período militar. Hodiernamente, tais afirmações estão perdendo força frente ao evidente caráter geopolítico de diversas ações observadas nas Relações Internacionais,

Ademais, como também é minha intenção demonstrar, uma ação de natureza geopolítica, ainda que desenvolvida na arena externa, depende de uma série de ações de natureza interna. Veremos que os postulados propostos pela Geopolítica desenvolvida no Brasil estavam presentes nos discursos, nas exposições de motivos e nas ações dos ocupantes do Poder Executivo, especialmente no que tange aos quatro primeiros presidentes do ciclo militar pós 1964. Para citar antecipadamente apenas dois exemplos, temos a aproximação Nixon-Médici, fortemente desencorajada pelo Itamaraty, mas levada a efeito por determinação presidencial, e, em que pese a inegável força do setor econômico do governo, principalmente com Delfim Netto, o investimento na Indústria Bélica Brasileira concretizou-se, mesmo com a discordância dos setores de Planejamento e Fazenda. Por fim, para expressar que não sou voz solitária ao afirmar a importância da consideração geopolítica, recorro ao artigo do economista Renato Baumann - em seu artigo “Dimensões da inserção internacional do Brasil” (in: Velloso, 1995, pp. 3986) - comentando os debates sobre ações do Estado na economia e nas relações internacionais. Afirma o economista:

[...] a questão da inserção internacional compreende algumas outras variáveis (p. 75). [...] não basta raciocinar exclusivamente em termos de participação de mercado. Há razões para que se deva pensar em outra dimensão de análise na qual a inserção internacional deve ser concebida em forma abrangente, a partir de uma estratégia de longo prazo. Esta dimensão é a geopolítica (p. 77).

Neste breve texto introdutório procurei apenas explanar sobre alguns pontos que podem suscitar dúvidas ao leitor em relação aos caminhos escolhidos. Também pretendi sinalizar a direção geral do trabalho, especialmente minhas opções na análise do Estado. A redação final será mais ampla e situará melhor os aspectos da tese como um todo.

1 O termo “complexo industrial-militar” para o caso brasileiro é utilizado por Ken Conca em sua obra Manufacturing insecurity: the rise and fall of Brazil’s military-industrial complex. Boulder, Colorado: Lynne Rienner Publishers, 1997. A pertinência da utilização do termo será problematizada na redação final da tese.

2 Florão da América: o projeto do Brasil Grande, a política externa e a diplomacia presidencial durante o regime militar (1964-1973), disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-15072015-122800/pt….

3 Embora seja voz corrente entre altas patentes militares daquele período que o General Golbery não era “homem da tropa”, portanto não possuía ascendência direta sobre os oficiais, suas teses são centrais nas formulações da ESG e transmitidas pela cadeia de cursos do Exército Brasileiro, conforme apontarei posteriormente.

4 Embora constitua um importante movimento, não menciono o tenentismo porque tal referência demandaria um significativo acréscimo ao já extenso tópico de antecedentes. A menção à Era Vargas serve apenas para marcar um novo ponto de inflexão, uma vez que, a partir da Segunda Guerra, as FFAA agregam doutrinas norte-americanas ao seu arcabouço teórico.

5 Carvalho, 2005, pp. 38-92.

6 (Carvalho, 2005, p. 117.

7 Nesse sentido, devo anotar que a Geopolítica é central na formação militar. Nos manuais de instrução atualmente utilizados, tanto na Escola de Comando e Estado Maior do Exército, quanto na Escola de Guerra Naval (onde os cursos são obrigatórios para o acesso ao Generalato e ao Almirantado), a disciplina é amplamente difundida, tendo a obra Geopolítica do Brasil, de Golbery do Couto e Silva, como parte integrante da bibliografia fundamental. O site das instituições disponibiliza mais informações com respeito ao tema.

8 Silva, 1981, p.12.

9 Além dos autores já citados, vale também mencionar: Eliézer Rizzo de Oliveira, Heleno Cláudio Fragoso, Jorge Boaventura, José Alfredo Amaral Gurgel e Glenda Mesarobba.

10 Alves, 2005, p. 39.

11 Alves, 2005, p.31.

12 Alves, 2005: p. 60.

13 Escola Superior de Guerra, 1981: p. 58.

14 Escola Superior de Guerra, 1981: p. 16.

15 Os demais aspectos são: caráter nacional brasileiro, papel das elites no Brasil, condicionantes físicas e condicionantes institucionais (Fundamentos da Doutrina, 1981, pp. 36-38).