INTERFACES ENTRE A ANÁLISE DA REALIDADE BRASILEIRA, PROGRAMA E CONCEPÇÃO DE PARTIDO/ORGANIZAÇÃO NA PRÁTICA E TEORIA DE CARLOS MARIGHELLA: UMA CONCEPÇÃO TÁTICA PARA A ESTRATÉGIA DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

 

Yang Borges Chung (Ifbaiano) *

Milton Pinheiro (Uneb) *

INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa as interfaces entre a análise da realidade brasileira, programa e concepção de partido/organização na prática e teoria do dirigente comunista Carlos Marighella. Portanto, a sua práxis política dirigente, particularmente, entre o período que corresponde ao final dos anos de 1950, passando pelo golpe de 1964, até o final desta década, quando rompe com o partido no qual lutou durante quase quarenta anos (o PCB) e funda a Ação Libertadora Nacional (ALN). Organização política e militar originada de um dos rachas da esquerda brasileira. Um pouco antes, em 1962, quadros históricos e experientes haviam fundado um novo partido, o Pc do B, também questionavam muitas das teses do antigo partido. O baiano dirigente comunista Carlos Marighella, foi um dos principais condutores e referências neste processo de contestação e debate no interior do partido , questionando as teses do PCB no que tange às táticas de luta no movimento sindical e de massas em geral. E da luta do partido neste terreno contra as forças políticas que vieram para implantar a ditadura burgo militar fascista a partir do golpe de 1964. Uma teoria da revolução brasileira, antiimperialista, com sua particularidade nacional e socialista.

Estabelecemos o recorte temporal deste trabalho, a partir do ano de 1958, quando o PCB publiciza o documento “Declaração de Março de 1958”, análise a respeito da realidade brasileira e sua tática reformista para aquele período .

Carlos Marighella desenvolveu análises valiosas nas conjunturas das décadas do período em questão. Assim como os historiadores e demais estudiosos não podem esquecer como ele construiu a sua trajetória política desde a sua juventude no PCB, até tornar-se um dos principais quadros desta sigla, seguindo de forma disciplinada as deliberações deste partido. Também não pode-se ignorar ou diminuir os aspectos existentes das condições históricas objetivas que o fizeram romper com aquele operador político no qual desenvolveu intensa vida política durante quase quarenta anos.

Voltando-se para apostar na criação de uma organização política e militar dedicada a criar as condições subjetivas da luta armada no Brasil contra a ditadura burgo militar e fazer acontecer a revolução brasileira. Assim, da mesma maneira que Marighella foi um dirigente e preconizador incansável do que aprendeu na cultura política do PCB, também o foi quando dentro de certas circunstâncias e necessidade de ruptura com o modelo burocrático stalinista vigente na grande maioria dos países que estavam sob a órbita de Moscou, apontou a necessidade da ruptura. Preconizando outra fase da luta de classes para a realidade brasileira e latino-americana, assumindo a responsabilidade histórica enquanto dirigente político e teorizador da luta armada. Nas suas ações, gestos, teorizações e seus passos inspirou os corações e mentes de uma geração.

 

BREVE RESUMO DA EVOLUÇÃO TÁTICA REFORMISTA DO PCB ENTRE OS ANOS DE 1950 E 1960. A EVOLUÇÃO PROCESSUAL DA TÁTICA DE CARLOS MARIGHELLA

Embora a Declaração de Março de 1958 publicizada pelo PCB traga alguns aspectos importantes para a compreensão da realidade brasileira, na sua redação estão muitos equívocos da direção e liderança do PCB que custarão muito para a esquerda revolucionária no Brasil dos anos seguintes durante a década de 1960. O PCB saí do doutrinarismo e sectarismo presente no texto Manifesto de Agosto de 1950 para uma nova tática reformista e de capitulação frente os desafios presentes na realidade brasileira daquele período. Enquanto neste último documento fez críticas ferozes ao Governo de Getúlio Vargas e o apelo para a criação das condições da luta radicalizada para a derrubada do mesmo em um em um contexto que as condições históricas tornavam muito inverossímil tal tipo de intento. Ainda mais, quando leva-se em consideração que, daquela vez, este havia sido eleito pelo voto e possuía forte apoio popular diante de um projeto populista que construiu as bases para a indústria nacional por meio de grandes empresas estatais e direitos fundamentais dos trabalhadores. No primeiro texto que citamos, analisava as condições históricas e políticas em uma perspectiva meramente contemplativa, reformista e em certa medida alheia quanto à necessidade de criar melhores condições de luta política frente ao avanço dos interesses do imperialismo e das frações da burguesia nacional mais vinculadas organicamente aos interesses estadunidenses. 1

Passemos agora à análise de alguns aspectos daquele documento. No mesmo é reconhecido o domínio do imperialismo sobre a economia brasileira dependente em ramos fundamentais, sobretudo, pelos monopólios norte-americanos em concorrência com outras grandes potências a partir do pós Segunda Guerra Mundial, através do controle do mercado internacional das nossas exportações. De acordo com o documento, quanto mais o capitalismo nacional se desenvolvia, mais se exigia a sua independência política completa em relação ao imperialismo, fazendo-se necessário a proteção consequente do capital nacional contra o capital monopolista estrangeiro. Mas qual programa e tática adequada possibilitaria a superação da dependência histórica, econômica, política e cultural de um país periférico e dependente como o Brasil?

O documento ainda explicita uma luta para impor determinados rumos à política estatal a ponto de as vezes haver um conflito aberto materializado nos diferentes interesses de classe existentes nos órgãos do Estado. Além de observar como positivo o processo de democratização que se refletia na época no parlamento, a partir do aumento do número de parlamentares democráticos e nacionalistas dos mais variados partidos, evidência do aumento da influência da burguesia nas decisões nacionais e democráticas. O que também se observa na composição do governo de Juscelino Kubischek, que era composto por um setor entreguista e outro nacionalista burguês, esse último, influenciando em importantes decisões do mandatário de então, como a defesa do monopólio estatal do petróleo e clima de legalidade constitucional na vida política do período. Como aspectos negativos o documento cita a cessão do arquipélago de Fernando de Noronha aos EUA, submissão da sua política exterior ao Departamento de Estado deste país e política de financiamento do BNDE ou da distribuição, pelos trustes, da energia produzida nas centrais elétricas estatais. Além da inexistência de uma política de reforma agrária neste período, inflação e carestia de vida para as massas. Reconhece, portanto, quais interesses fundamentais aquele governo atendia, ainda que volte a afirmar os aspectos positivos de caráter nacionalista e democrático e o processo de disputa apoiado pelo setor nacionalista do governo em relação a outra fração entreguista existente no governo (Declaração de Março de 1958).

Ao descrever os êxitos da URSS em diversas áreas, não cita textualmente a experiência chinesa e apregoa a alternativa do caminho pacífico ao Socialismo no Brasil enquanto alternativa viável naquele período histórico. Também afirmou a existência de duas contradições principais: a primeira entre a nação e o imperialismo, a segunda entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção semifeudais na agricultura brasileira. Assim como afirmou que a contradição entre o proletariado e a burguesia brasileira (de maneira genérica), não era fundamental naquele momento, já que estas contradições apenas poderiam ser resolvidas a partir da liquidação do monopólio da terra e das relações pré-capitalistas existentes por meio de uma revolução antiimperilista e antifeudal sob a direção do proletariado.

Assim, além de uma visão etapista da revolução brasileira, propõe uma pactuação com forças políticas de espectros diametralmente opostos por meio de uma tática e programa reformista, já que o texto afirma que

Ao inimigo principal da nação brasileira se opõem, porém, forças muito amplas. Estas forças incluem o proletariado, lutador mais consequente pelos interesses gerais da nação; os camponeses, interessados em liquidar uma estrutura retrógrada que se apoia na exploração imperialista; a pequena burguesia urbana, que não pode expandir as suas atividades em virtude dos fatores de atraso do país; a burguesia, interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional; os setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano, derivadas da disputa em torno de preços dos produtos de exportação, da concorrência no mercado internacional ou da ação extorsiva de firmas norte-americanas e de seus agentes no mercado interno; os grupos da burguesia ligados a monopólios imperialistas rivais dos monopólios dos Estados Unidos e que são prejudicados por estes (Declaração de Março de 1958, pg 11).

Mais do que forças heterogêneas, existem parcelas das mais conservadores nesta defesa de Frente Única, já que visa a unificação com parlamentares dos mais diversos partidos políticos, governistas ou oposicionistas, incluindo uma ala considerável do PDS e, mesmo da UDN.

Importante lembrar a conjuntura na qual Juscelino assumira a presidência da república, quando um ano após a fundação da Petrobrás durante o governo Vargas, as pressões advindas do imperialismo estadunidense e de parcelas da burguesia nacional exigirão do mesmo a sua renúncia, o que teve como consequência o seu suicídio e o término do seu mandato pelo seu vice. Juscelino Kubitschek eleito nas eleições presidenciais de 1955 não oferecerá nenhuma resistência ou barreiras à entrada do capital internacional no país, pelo contrário, irá incentivá-la em uma linha de subserviência, dependência e endividamento externo. Se por um lado não fez nenhum esforço para permitir a legalização do PCB, por outro lado, não tomou nenhuma medida autoritária e de perseguição ao mesmo, ainda que se declarasse como anticomumista. Com a Declaração de Março de 1958 o PCB fará uma avaliação deslocada da realidade brasileira e da conjuntura da época em meio a uma dura luta política interna e ao mesmo tempo de forte inserção do partido no movimento sindical e participação nas mobilizações de massa e greves realizadas daquele período. Nesta declaração abandona-se a tática da luta armada e a substitui pela composição com as forças progressistas da burguesia nacional e da pequena burguesia, enxergando o avanço da democracia como um processo inelutável e de acúmulo de forças. Mas não rompia-se com a perspectiva de uma revolução socialista em duas etapas na qual em primeiro momento deveria ser realizada uma revolução democrática burguesa. O elemento central de acordo com aquela declaração era a superação do imperialismo por meio de uma etapa revolucionária antifeudal, antilatifundiária e antiimperialista (EMILIANO JOSE, 1997). 2

O V Congresso do partido realizado em 1960 evidenciará dois campos divergentes, no que tange a tática política e que após debate trará com consequência a exclusão de alguns dirigentes antigos do Comitê Central, entre eles, Diógenes de Arruda Câmara, Maurício Grabois e João Amazonas . Marighella continuará na direção, embora a partir deste momento comece a acentuar-se a sua discordância e crítica no caráter vacilante e dúbio da burguesia nacional, posição também compartilhada por Jacob Gorender, Mário Alves e vários outros. Esta percepção se aprofundará em meados dos anos de 1960 até a sua ruptura com o partido.3

Embora as críticas de Marighella nesse período não indicassem já a ruptura, deixavam evidente o seu descontentamento e oposição tática, no que tange aquela concepção advinda da direção e, particularmente, de Prestes e de Giocondo Dias. A Quarta Conferência do Partido, significou um novo termômetro político na vida da organização, pois as posições de Marighella, Mário Alves e Jover Telles foram vitoriosas e ganharam maioria no partido. Diante deste pleito e disputa interna a direção do PCB se viu obrigada a pressionar cada vez mais o governo de João Goulart em torno da realização e celeridade das reformas de base. Se Prestes e Dias pensavam desta maneira, não parecia dialogar com a maioria do partido que no seu VI Congresso teve a elaboração de teses que criticavam esta posição, entre os colaboradores deste texto estavam Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves e Jacob Gorender. Para este último aquele período dos anos de 1960 como pré-revolucionário (EMILIANO JOSÉ, 1997). Portanto, a fragilidade tática para período histórica de grande turbulência expressa com a Declaração de Março de 1958, foi reafirmada pela direção e liderança principal do PCB durante o seu V Congresso. E as de divergências entre quadros experientes signatários de teses durante a IV Conferência Nacional e o VI Congresso da sigla levou a ruptura. A ação da direção do PCB foi utilizar o autoritarismo e suprimir da sua direção os divergentes.

Se a partir da conferência, Marighella foi perdendo muitas das atribuições que possuía à frente do PCB, no VI Congresso da sigla se dará a sua expulsão do partido que militou durante 33 anos e de mais seis membros: Câmara Ferreira, Mário Alves, Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender, Jover Telles e Miguel Batista (MAGALHÃES, 2012).

 

A ANÁLISE DE CARLOS MARIGHELLA A RESPEITO DA REALIDADE BRASILEIRA DOS ANOS DE 1960: ESTRUTURA ECONÔMICA, SUPERESTRUTURA E PROGRAMA PARA A REVOLUÇÃO BRASILEIRA

Perseguido pela ditadura, após o golpe de 1964, os dirigentes do PCB entram mais uma vez pela clandestinidade e pelo mundo subterrâneo na luta pela liberdade. Marighella e Clara Chaf (a sua companheira), terão que sair às pressas do apartamento que viviam no Rio. A polícia havia entrado pelo elevador, enquanto fugiam pelas escadas. Em breve, Marighella entraria em contato com a sua funcionária para buscar correspondência e algumas peças de roupa que não tivera tempo para reunir. Ao observar que os milicos o seguiam, entra no cinema Eskye-Tijuca, quando é abordado com voz de prisão, resiste e denuncia de maneira emblemática as arbitrariedades da ditadura militar imposta a partir do golpe de 1964. Os tiros que leva no cinema e agressões físicas as quais revida bravamente ocorrem em plena sessão infantil na matinê. Marighella será levado preso e foi solto após pedido de habeas corpus, emitido pelo advogado Sobral Pinto. Ele percorrerá jornais denunciando a arbitrariedade que sofreu e esta experiência constituirá em uma importante fonte empírica e formadora para suas ações e elaborações teóricas posteriores (MAGALHÃES, 2012, EMILIANO JOSÉ, 1997).

O trabalho Por que resisti à prisão é uma preciosa contribuição a respeito da conjuntura brasileira, do debate a respeito dos caminhos da revolução brasileira e de crítica à direção do PCB e da sua liderança, quanto a tática política do partido para aquele período. Que não havia preparado a sua militância para resistir ao golpe de 1964. Discute os interesses do imperialismo e da política estadunidense nos anos de 1960 e o seu conluio com a burguesia brasileira. Suas formulações evoluirão e importante trabalho neste sentido foi o texto, A Crise Brasileira. Marighella traz importantes elementos para compreensão da conjuntura política, a partir de uma teia de argumentos a respeito das particularidades econômicas, políticas e culturais da realidade brasileira. Da movimentação das classes dominantes e mesmo das Forças Armadas a partir da política posta naquele cenário histórico. Seu texto segue o método materialista da história, ao relacionar as condições existentes das relações sociais de produção e a superestrutura política, jurídica e ideológica vigente. Assim como aquilo que é permanente com o que é ocasional ou residual na análise dos fenômenos que analisava. Ao mesmo tempo que discorria sobre programa e a economia posta em prática pela ditadura militar, avaliava as condições históricas e aquilo que considerava virtualidades concretas para a luta das classes subalternas. Assim, de maneira totalizante, compreendia o programa e política econômica posto em prática pela ditadura em constante processo de retroalimentação ao recrudescimento da violência política e institucional perpetrado no período no qual foi marcado por todo tipo de arbitrariedades.

Antes mesmo do golpe de 1964, durante uma democracia restrita, a inflação prosseguia, os trustes norte-americanos do imperialismo mandavam e o latifúndio das classes abastadas relegava à ignorância milhões de trabalhadores, que sequer podiam votar. Modelo de “democracia” no qual se procurava impossibilitar mudanças na sua estrutura econômica por meio de um programa que alavancasse as reformas de base. Marighella apontava que as condições para uma revolução estavam condicionadas ao desenvolvimento da sociedade e tem a ver com as relações sociais de produção e sistema de propriedade. Dizia que embora para uma revolução a questão do poder seja fundamental, a mesma não se traduz na retirada de homens que ocupam os seus postos de comando, por outros, dentro dos aparelhos de Estado, pois o prolema é saber que novas classes chegaram ao poder derrubando aquelas velhas classes (MARIGHELLA, 1965).

Já que pari passu com o problema da passagem de novas classe ao poder, surge a questão de saber qual o novo sistema de propriedade estabelecido. Que classes passam a ser proprietárias daí por diante? Quem passa a ser dono dos meios de produção? Que nova estrutura econômica e social é estabelecida? Que superestrutura passa a ser levantada ou entra em vigor? Que novas instituições políticas, jurídicas e sociais entram em ação? Sem isto, que são coisas elementares, não há revolução (MARIGHELLA 1965, pg 107 e CHUNG 2014).

Afirmou que as bases do fascismo político e militar era fruto das condições do sistema de propriedade brasileiro e de fatores conjunturais relativos ao aumento da concentração dos monopólios para despertar ou dar maior concorrência dos EUA, subsidiando o seu argumento a partir de uma análise do comunista italiano Palmiro Togliatti em documento que o mesmo escreveu antes de falecer. Argumentou também que o desenvolvimento deste fascismo era consequência da competição entre os sistemas mundiais opostos- o imperialista e o socialista. O que justificava os interesses e ações da burguesia brasileira entreguista e do latifúndio que de maneira alguma tinha interesse em continuar as reformas de base do governo de Goulart. Mais do que isso, o governo imposto em 1964

modificou a lei de remessa de lucros, comprou concessionárias norte-americanas de serviços de luz e de energia elétrica da AMFORP, restabeleceu o domínio privado das refinarias particulares nacionalizadas, abalando o já enfraquecido sistema do monopólio estatal do petróleo, entrega as reservas de minérios brasileiros ao truste norte-americano de HANNA e lhe concede um porto particular, realiza a desnacionalização do país sob o pretexto de eliminar as áreas de atrito com o capital estrangeiro, permite e subvenciona o levantamento aerofotogramétrico de nosso território pelos norte-americanos (desvendando aos EUA o panorama completo de nossas riquezas minerais e entregando os mapas ao governo norte-americano, num insofismável atentado à nossa soberania e à segurança nacional) (Marighella, 1965, pg 117 e 118).

Marighella em seguida continua análise e caracterização das condições de vida dos trabalhadores que sofriam com o desemprego que ficavam a mercê da política salarial do governo, dos camponeses que necessitavam de uma reforma agrária que modificasse que lhes desse terra e alterasse as relações de produção no campo e perseguição imposta de vida e morte pelo latifúndio e da classe média que se vivia com total restrição às suas liberdades e cujo padrão de vida havia sido reduzido. Trouxe também como reflexão todas as condições para o exercício da hegemonia burguesa criadas pela constituição de 1946, que, assim como nos anos de 1960, impossibilitou a emergência de qualquer reforma agrária ou redistribuição de terras ou alterasse a situação vigente de analfabetismo também dos trabalhadores da cidade (Marighella, 1965).

Também no texto, A crise brasileira, escrito no ano seguinte, Marighella caracterizou a crise brasileira como uma crise de estrutura com todos os seus aspectos decorrentes. A crise era: econômica, política e social, resultado da inadaptabilidade das relações sociais de produção e da forma de distribuição das riquezas ou dos bens materiais. Pois estas já não se harmonizavam com as condições exigidas para o progresso e desenvolvimento e que, portanto, constituíam em um obstáculo ao avanço das forças produtivas em virtude da ação do imperialismo na sociedade brasileira e crise da economia capitalista. A crise brasileira também era reflexo da crise geral do capitalismo. E isto

se torna evidente pelo domínio do imperialismo norte-americano sobre a propriedade e a economia brasileira, pela predominância eu monopólio da propriedade territorial latifundiária, pelo desajuste na apropriação dos frutos do trabalho, pela desproporcional distribuição dos bens materiais, acentuando a acumulação das riquezas em mãos de uns poucos privilegiados, enquanto milhões de brasileiros vegetam, reduzidos à mais rasa miséria.

Nessas relações de produção configura-se, assim, um quadro onde verdadeiros pontos de corrosão ameaçam fazer ruir a estrutura econômica.

Oriunda da base econômica que a sustenta e à qual está intimamente ligada, a atual superestrutura da sociedade brasileira padece de muitos males. Os pontos de corrosão da base econômica não cessam de atuar sobre essa superestrutura, também em crise, e asperamente minada pelas contradições, antagonismos e conflitos que a sacodem (Marighella, 1966, pg 55).

E seguiu a sua linha de argumentação, identificando elementos que considerou centrais para o atraso do desenvolvimento econômico do Brasil e da sua condição periférica em que se encontrava comparado aos países do centro da economia capitalista. Enquanto o capitalismo brasileiro desenvolvia de maneira mais pujante a sua estrutura econômica a partir do momento que implantou a sua indústria siderúrgica, do petróleo e da energia elétrica, o centro da economia capitalista que já estava na sua fase imperialista, além da divisão que já existia no mundo com a formação de dois sistemas mundiais: o imperialista e o socialista. Portanto, o Brasil não conseguiu alcançar os países altamente desenvolvidos, no entanto, estes não podem seguir a trajetória clássica daqueles que se elevaram ao capitalismo por meio da revolução industrial. Pelo fato de não ter tido condições de impulsionar o seu desenvolvimento industrial por meio das empresas privadas e de já ter encontrado as condições essenciais do capitalismo contemporâneo. A burguesia brasileira teve que buscar no Estado o seu promotor para criação das condições de desenvolvimento da indústria básica nacional. Esta originalidade do processo histórico e econômico brasileiro ocasionou o aparecimento de contradições mais profundas em seu processo e de agravamento da crise econômica (Marighella, 1966).4

 

A PROCESSUALIDADE E EVOLUÇÃO DA RUPTURA DE MARIGHELLA COM A SUA CONCEPÇÃO DE PARTIDO/ORGANIZAÇÃO NA SUA PRÁTICA E TEORIA

Também no texto Por que resisti à prisão, além de denunciar e descrever em detalhes as arbitrariedades da polícia e do regime militar, após o golpe de 1964, Marighella defenderá a luta contra a ditadura como o elemento central da ação dos comunistas e de outras forças políticas, por meio de uma frente única de combate a mesma, com a participação da burguesia nacional e da pequena burguesia, dos operários e camponeses, de quaisquer setores das classes proprietárias que se opusessem à ditadura e sem excluir a participação de nenhum partido, alas e agrupamentos e (Marighella, 1965 e 1994).

Dava importância às forças populares e nacionais, em especial

da aliança da pequena-burguesia urbana e rural, cabeça de ponte do fortalecimento e expansão da aliança de operários e camponeses.

É preciso trabalhar intensamente no campo, com as massas rurais- o calcanhar de Aquiles da revolução brasileira- e, por toda a parte-dedicar atenção aos problemas da pequena burguesia. O futuro próximo do país, em essência, está em saber para que lado inclinará a pequena burguesia. E nada será conseguido no sentido de avanço das forças populares e nacionalistas se a pequena burguesia não se decidir pela justiça da posição em que se coloca o proletariado (Marghella, 1965, p.g.36).

Entretanto, frisa no mesmo texto, logo em seguida, a importância do trabalho de base e da não ilusão quanto a liderança da burguesia neste processo, a necessidade do caráter agressivo e firme da luta pelas forças populares e nacionais, mesmo que considere impossível a não aliança com a burguesia nacional. Também afirma que as forças populares e nacionalistas resistiram ao golpe e não capitularam diante do mesmo, embora tenham sido derrotadas em virtude da capitulação de setores burgueses que tinham meios de resistir, mas, por medo da ascensão das esquerdas ao poder, recuaram historicamente (Marighella, 1965 e 1994).5

Em seguida, traz uma lista extensa de categorias e setores da sociedade que resistiam ao golpe de 1964 que já, desde o seu início, cometia uma série de arbitrariedades, inclusive, praticando a tortura nos seus porões. Denuncia a responsabilidade da ditadura em desencadear ações baseadas na violência e desta acusar esta iniciativa a partir das classes subalternas. Vê como iminente o aparecimento da luta armada por meio da guerra de guerrilhas e outras formas de luta advindas das massas. E sinaliza que esta luta, sustentada a partir de uma frente única, poderia demorar, mas alcançaria o seu objetivo imediato de derrubar a ditadura a partir de uma luta revolucionária de massas, extensa e profunda (MARIGHELLA, 1965 e 1994).

E aponta o exemplo da experiência da Revolução Cubana como único meio possível de conquistar a independência e o progresso social, caracterizando as eleições como termômetro social para as classes dominantes utilizarem o emprego da violência, do estado de sítio e golpe, quando se faz necessário para garantir os seus interesses e impedir um projeto que defenda os interesses das massas por meios constitucionais e legais. Sem que o povo organize a sua própria força por meio da ação e insurreição armada, apenas confiando na burguesia, torna-se impossível a libertação do povo (Marighella, 1979 e 1994). E afirma que não existem modelos ou fórmulas prontas, já que

a lição da experiência de Cuba não está em localizar as nossas “sierras maestras” ou em produzir cópias de situações, mas em saber apreciar a validez das teses táticas e princípios revolucionários postos em ação para decidir a vitória de um povo como o cubano. Teses, táticas e princípios que sempre assumem características próprias, quando aplicadas à realidade concreta deste ou daquele país da América Latina. E não será difícil vir a compreender as razões da vitória do povo cubano e do acerto da posição de Fidel Castro e seus companheiros.

O futuro do Brasil pertence ao Socialismo. Então as fontes de riquezas serão estatizadas e novas relações de produção entrarão em harmonia com as forças produtivas. E será eliminada a farsa de uma liberdade que as elites tem plena expansão e para as massas apenas o significado de um mito.

As forças populares e nacionalistas constituem hoje, na medida da intensidade e consequência de sua ação contra a ditadura, o grande ponto de apoio para este desejado futuro. E dentro das forças populares e nacionalistas, os comunistas, com o seu partido, que deve ser unido, combativo, revolucionário, preparado política e ideologicamente para enfrentar as situações (MARIGHELLA, 1965 e 1994).

 

NÃO MAIS UM PARTIDO. SOBRE A ALN

A organização política militar Ação Libertadora Nacional (ALN) é resultado das discordâncias e lutas no interior do CC do PCB que surgem de maneira mais virulenta a partir do V Congresso deste partido e da sua IV Conferência. Ainda que a opção da luta armada apenas tenha se iniciado a partir de 1967, esta ruptura formal após a expulsão de Marighella e escolha de um novo caminho estão profundamente entrelaçados com a crise da hegemonia burguesa no Brasil no período do pré-golpe de 1964 e acontecimentos posteriores nos anos seguintes de ditadura. Não é a toa que a espinha dorsal dos quadros da ALN será a militância de São Paulo, que inicialmente terá como nomo o chamado “Agrupamento Comunista de São Paulo”. Naquela cidade, Carlos Marighella foi o seu principal dirigente durante período considerável. Alguns militantes oriundos do PCB e uma nova geração de jovens formaram aquela organização que teve o maior contingente de militantes durante o período da luta armada no Brasil e desenvolveu também o maior número de ações urbanas na luta contra a ditadura. (MAGALHÃES, 2012).

O nome da sigla é uma homenagem a Aliança Nacional Libertadora (ANL), outra sigla que representava uma Frente para além do PCB na luta contra o fascismo durante a década de 1930.6

Embora tenha atuado enquanto quadro dirigente de um partido que adotava o centralismo democrático como regra fundamental, advinda da cultura política marxista simbolizada, deste o início do século, pelos bolcheviques que dirigiram a Revolução de Outubro de 1917, após décadas de militância seguindo uma linha política reformista, Marighella adotará uma concepção de organização horizontal e não mais vertical. Uma organização que primava pela ação como método para forjar a sua vanguarda.

Formada por Grupos Táticos Armados (GTAS) deveriam desenvolver ações armadas de guerrilha no meu urbano como assaltos a bancos e outros locais como meio de angariar os fundos para a criação da infraestrutura necessária para deflagrar a guerra de guerrilhas no meio rural. Além destes grupos, existiam os Grupos que cuidavam da infraestrutura e apoio logístico para estas ações, que não apenas se resumiram aos assaltos a bancos. A ALN em ação conjunta com a MR-8, realizou o sequestro do embaixador dos EUA no Brasil, exigindo em troca da libertação deste a soltura de quinze militantes de organizações guerrilheiras que padeciam nos porões da ditadura. E da leitura do Manifesto em rede de televisão nacional. Sem falar que aquilo inspirou a esquerda mundial dos anos de 1960 e 1970.

A ideia era por meio das ações táticas e de combate da guerrilha urbana e contestação armada à ditadura, propaganda e publicidade destas ações, criar meios para denunciar o regime e divulgar as ações da guerrilha e os seus reais motivos para fazer aquela luta. Mesmo diante do cerco de uma ditadura que censurava. Assim a partir do lema “ A ação faz a vanguarda”, e de uma concepção estratégia de luta pelo método da Guerra de Guerrilhas, construiam uma práxis que prezava pela moral da ação. Ainda que a teorização da luta revolucionária fosse, naturalmente, objeto e fonte de busca de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, conforme haviam ensinado Marx, Engels e Lenin.

Compreendia a luta urbana como luta tática para criar as condições de uma luta estratégica que se desenvolveria no meio rural. As ações urbanas, além de meio para angariar os fundos necessários para a sobrevivência da organização e criar as bases logisticas das ações armadas, também seriam um local de propaganda da organização e denúncia das atrocidades cometidas nos porões da ditadura pelos agentes do Estado.

Grupos que formariam as colunas guerrilheiras no campo viajavam a Cuba para treinamento militar em Guerra de Guerrilhas, afim de retornar para o país já mais qualificadas tecnicamente e formar as futuras colunas guerrilheiras no campo e do futuro Exército de Libertação Nacional.

Voltando ao texto, A crise brasileira, ele fará um balanço dos erros táticos do partido diante dos acontecimentos que levaram ao golpe militar de 1964, quando a sua direção apostou na resistência do governo (e também em algum dispositivo de segurança do mesmo). João Goulart tinha plena consciência da conspiração que existia para o depor, não tomando nenhuma medida drástica de defesa para evitar o golpe. Além da equivocada tática que o PCB sustentou por meio de uma leitura errónea em relação a formação política e ideológica das Forças Armadas, como se existissem forças políticas no seu interior substancialmente nacionalistas e mesmo populares, dispostas a defender os interesses das massas diante do privilégio das classes dominantes. Outras questões são apontadas nesta formulação, como a falta de aproximação do partido com a radicalidade de setores da pequena burguesia como os marinheiros e sargentos, falta de unidade ideológica, subestimação da direção coletiva e falsos métodos de direção. Mas ainda avalia como necessária a aliança com a burguesia nacional sob a liderança do partido e das massas populares (MARIGHELLA, 1966).

A crise brasileira na sua avaliação decorre decorre da atual estrutura económica do país e formas de distribuição de riquezas e bens materiais, o que gera os choques e antagonismos presentes na sua superestrutura. Analisa a passagem da escravidão ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil e a sua subserviência ao imperialismo estadunidense e cita a contribuição teórica do historiador Nelson Werneck Sodré, a respeito dos condicionantes da sociedade brasileira. Discorre sobre a manutenção das relações de dependência do Brasil ao imperialismo e do latifúndio, avaliando também a experiência de alguns avanços com o desenvolvimentismo, mas, que no fundamental, se constitui como sacrifício para as massas, aumento da pobreza, exploração e miséria. Discorre ainda como o proletariado cresceu com as lutas políticas de massa dos últimos anos, as grandes campanhas nacionais pró siderurgia, da defesa do monopólio estatal do petróleo e das riquezas naturais, da indústria elétrica e nacional. E afirmou que determinadas condições históricas permitiram a hegemonia da burguesia, mas que o proletariado não deveria curvar-se a uma condição de coadjuvante em relação à liderança burguesa. Até porque, esta classe sabe que o proletariado fará oposição aos interesses daquela, do imperialismo e do latifúndio a partir de um determinado momento. Assim, o trabalho mais importante, de caráter prioritário, seria na sua avaliação trabalhar no campo com

o deslocamento das lutas para o interior do país, a conscientização do camponês. No esquema estratégico brasileiro, o pedestal da ação do proletariado é o trabalhador rural. A aliança dos proletários com os camponeses é a pedra de toque da revolução brasileira. Ela significará um grande passo à frente- ou seja-, a substituição do esquema burguesia-proletariado por um plano estratégico marxista. Nesse plano, o camponês e o campo desempenharão o papel decisivo no apoio à luta das massas urbanas. E é sob esse aspecto que se trata de abrir uma segunda frente. O que quer dizer que não devemos limitar a nossa ação exclusivamente às cidades, onde, aliás, além dos entendimentos de cúpula, necessitamos de uma profunda penetração entre o proletariado das grandes cidades. Isso é indispensável. Mas não haverá possibilidade de êxito estratégico, a não ser com a segunda frente, no campo (MARIGHELLA, 1966.pg 62).

Os acontecimentos subsequentes irão inviabilizar a permanência de Marighella no partido e em 1967 pede a sua demissão da executiva, quando da sua ida a Cuba para participação na OLAS. Criticou os métodos cupulistas e individualistas que não levavam às decisões para o conjunto da militância e, sobretudo, o despreparo político e ideológico da cúpula e liderança do partido, que não preparou a militância para a reação ao golpe de 1964. Já que, na prática, aquela direção possuía concepções fatalistas de que a burguesia é a força dirigente da revolução brasileira, já que a Executiva perde a sua iniciativa ao abandonar o proletariado e às suas posições de classe. Ficando à espera dos acontecimentos, quando, por exemplo, Carlos Lacerda propôs a política de Frente Ampla, aceita pela direção do partido em nome do combate ao sectarismo e esquerdismo. Ao invés de reafirmar a independência, a autonomia e a ideologia de classe do proletariado. (MARIGHELLA, 1966).

Marighella absorverá muitos aspectos das experiências da China, de Cuba e do Vietnam. Além de tudo que viveu no PCB da cultura política bolchevista em quase quatro décadas de atuação política. Em aliança com Fidel Castro e com o exemplo de libertação nacional e Socialista de Cuba, construirá uma concepção de vanguarda política, de programa e estratégia para a revolução brasileira e luta Socialista. Possuía uma práxis dirigente e revolucionária.

A luta armada nas cidades, o ingresso e atuação tenaz de segmentos da pequena burguesia na luta guerrilheira, o deslocamento para o campo e deflagração da guerrilha formaria as condições históricas e subjetivas para a formação de colunas guerrilheiras destinadas a formar um Exército Guerrilheiro de Libertação Nacional. A luta deveria ser popular e de massas. Possivelmente, Marighella compreendia que a processualidade da luta revolucionária naturalmente apontaria para a constituição de algum tipo futuro de centralização política a partir da ação e legitimidade da moral militante.

 

ALGUMAS QUESTÕES DO PROGRAMA DA ALN

E no seu texto “Chamamento ao povo brasileiro”, escrito em 1968 descreveu a situação atual da educação brasileira, por meio do acordo MEC/USAID que visou iniciar o processo de privatização do ensino e a negação de vagas para os estudantes que são obrigados a enfrentar as balas da polícia; a situação dos trabalhadores com o arrocho salarial; os despejos dos camponeses em um país no qual predomina a ocupação ilegal das terras; a fome, a miséria e a doença dos nordestinos. A falta de liberdade intelectual no país e a perseguição religiosa para aqueles que ousavam enfrentar a ditadura; a inflação e o mísero aumento de apenas 20 por cento para os servidores públicos,; o aumento dos alugueis e da corrupção. E justificou a sua resistência por meio da luta armada em meio ao recrudescimento da violência institucional do Estado Brasileiro, negando qualquer luta por mudanças por meios pacíficos ou eleitorais, mas apenas a resposta pela violência diante da violência perpetrada pelas forças repressivas da ditadura. Ações revolucionárias praticadas pelos revolucionários que não devem pedir licença para tal (Marighella, 1968).

Além de ter caracterizado neste documento a sua tática para a luta armada, descrevendo os tipos de ação logística que vislumbrava no meio urbano e rural (aprofundará estas questões em outras formulações) esboçou algumas das questões fundamentais do programa da revolução brasileira e da aliança entre operários, camponeses e estudantes que formaria o exército revolucionário de libertação nacional, cuja a guerrilha é o seu embrião.

Na opinião de Florestan Fernandes, embora Marighella não tenha conseguido “redimir” o povo brasileiro por meio da consolidação da vitória que pretendia, atravessou as contradições que vergavam o PCB enquanto instrumento de luta com coragem e certa lucidez na ação e a partir da larga experiência política que possuía, ainda que tenha ficado preso à algumas terminologias equivocas e ultrapassadas. Mas, de acordo com o mesmo, prescindiu do papel de coordenador e dinamizador da luta de classes e da revolução a ser exercido pelo partido e simplificou a experiência cubana em relação a quanto o amadurecimento das condições objetivas naquele país foram fundamentais para a vitória daquela experiência. Mesmo assim, negou soluções “importadas” de quaisquer outros países que construíram processos revolucionários (FERNANDES, 1995).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É conhecida a importância estratégica de um país continental como o Brasil na geopolítica mundial e os temores que representava para os interesses da política estadunidense e de frações importantes da burguesia brasileira as reformas de base propostas pelo governo de João Goulart em um cenário histórico e político de crise da hegemonia burguesa no Brasil durante o início dos anos de 1960. Temores também de que se repetisse no Brasil a experiência de uma revolução, tal como em Cuba no ano 1959, liderada por Fidel Castro e proclamada como uma revolução socialista em 1961. Mas o Brasil é um país com outras dimensões. A China já havia demonstrado o seu exemplo para o mundo com a vitória da Revolução Popular chinesa de 1949, dirigida por Mao-Tsé-Tung, após décadas de luta.

A práxis revolucionária de Fidel Catro e Che Guevara passaram a representar um ideário anticapitalista e Socialista de luta para os povos da América Latina a partir do seu exemplo. A Revolução Cubana teve profundo impacto, pois além de representar possibilidade concreta de eclosão e vitória de uma revolução Socialista em um país periférico, dependente e subdesenvolvido, resultado de todas vicissitudes do processo histórico colonial, figurava a poucos quilômetros de distância dos EUA. Aquela revolução teve influência, inclusive, no que diz respeito a possibilidade de êxito de um modelo de organização política e militar que prescindiu de uma organização partidária (pelo menos momentaneamente, do partido, no seu sentido mais clássico) para criar as condições subjetivas e potencializar dentro de determinadas circunstâncias históricas objetivas a tomada pelo poder e consolidação de um regime Socialista. Diferente das experiências da Rússia em 1917 e da China em 1949, com todas as suas particularidades históricas, econômicas e políticas, países aos quais Marighella visitou ou mesmo estudou atentamente às suas experiências revolucionárias.

Entretanto, entende-se que o modelo de organização que orientou a direção do movimento 26 de Julho durante o período que se inicia após a tentativa de tomada insurrecional do quartel Moncada em 1953 e do início da guerra de guerrilhas deflagrado na Sierra Maestra, até os primeiros anos da vitória e consolidação da Revolução Cubana, não foge às características fundamentais do modelo de uma organização marxista e leninista. Em termos gerais, uma organização com quadros profissionais e disciplinados, dedicados e centralizados nas tarefas de agitação, propaganda e elaboração de um programa para a revolução. Dedicados também no fortalecimento das organizações dos operários, nas suas lutas espontâneas e econômicas, mas dando um sentido programático geral e partidário para as suas lutas e criando as condições para dirigir o processo revolucionário, tomar o poder e implantar o socialismo. Importante também destacar as condições históricos nas quais Lenin revigorará o marxismo, por meio do aprofundamento prático, teórico e conceitual a respeito da concepção de um partido revolucionário e do papel da sua vanguarda.

Enquanto os bolcheviques eram a fração mais resoluta e que agia como partido no interior do POSDR, no caso chinês a luta revolucionária não prescindiu de um partido comunista desde seu início, de uma luta de massas, da guerra de guerrilhas e de forte caráter nacional , antiimperialista e Socialista. No caso cubano ainda que o Movimento 26 de Julho não fosse um partido em termos clássicos, possuía direção centralizada em termos políticos e militares e um programa bem definido de luta pela sua soberania nacional, antiimperilista, antimonopolista, antilatifundiário e mesmo Socialista. 7

Após luta de Carlos Marighella no PCB durante quase quarenta anos, se processará uma inflexão da sua concepção de partido/organização na sua prática e teoria. Suas críticas terão ponto culminante com a sua ida a OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade), ruptura com o PCB após carta dirigida a sua Executiva e fundação da ALN (Ação Libertadora Nacional).

Mas é importante destacar que esta evolução processual não se dará de maneira deslocada da sua análise a respeito das condições históricas e econômicas da conjuntura política vigente dos anos de 1960 e de importantes reflexões a respeito da “herança” estrutural e oriunda da nossa formação social. Neste sentido, a sua contribuição termina por reafirmar a análise totalizante da “tradição” marxista de outros revolucionários, sua ação e concepção prática e teórica percorreu um caminho de dinamicidade e compreensão dialética dos condicionantes econômicos impostos pelas classes dominantes e da conjuntura do golpe de 1964 que instalou uma ditadura. E também deu-se a partir da experiência e compreensão dos limites práticos e teóricos, da baixa força política ou capacidade do maior partido da esquerda brasileira dar impulso ou estar disposto a criar as condições subjetivas para a luta revolucionária naquelas circunstâncias históricas as quais Marighella considerava das mais favoráveis para este processo, quando compara-se a outros períodos que viveu da política brasileira.

Ainda assim, o partido que militara por tantos anos foi expressão do maior partido de massas (ou com a maior capilaridade junto as massas) da história política brasileira, mobilizador de grandes greves, campanhas e de maior capacidade de fazer filiações, ainda mais se levarmos em consideração os períodos que seus quadros e militantes viveram na clandestinidade e outros fatores. E teve muitos quadros, artistas e intelectuais nas suas fileiras. Neste sentido a lista é muito grande. Assim como uma das bancadas mais combativas e qualificadas da história política brasileira. Este partido tentou, mesmo com todas as suas insuficiências citadas aqui ou outras que não foi possível abordar neste texto, praticar, em alguma medida, uma concepção de luta e organização a partir de uma vida militante orgânica. No entanto, por uma série de fatores, isto se mostrou insuficiente para preparar e organizar o proletariado para os combates que ocorreriam, bem como a sua própria direção. Seguramente, um dos mais importantes, foi a sua tática reformista em alguns períodos, ou a sua leitura doutrinária em outros momentos. Também, possivelmente, a sua visão cupulista e insuficiências práticas e teóricas que predominavam na sua direção.

Embora tenha sido objeto de crítica de outras organizações que não abandonaram o modelo do partido ou de estudiosos do tema, é preciso sempre lembrar as circunstâncias e dificuldades históricas que fizeram Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira fundar uma organização de outra natureza e prescindir , momentaneamente, ou não, de uma organização partidária em termos mais clássicos.

 


* Nascido na Bahia no ano de 1979. Concluiu o mestrado em Ciências Sociais pela Ufba em 2009. Também possui especialização em História Social e Educação pela Ucsal.

* * Nascido na Bahia e Doutor em Ciência Política pela Puc e em História Econômica pela Usp

1 Importante fonte o texto escrito por Anita Leocádia Prestes, intitulado: Memória do PCB: Duas táticas e uma mesma estratégia- Do “Manifesto de Agosto de 1950” à Declaração de Março de 1958”.

2 Muitos dos aspectos trazidos no texto de Emiliano José, também estão presentes na obra de Mário Magalhães (2012), inclusive, algumas questões são discutidas de forma mais detalhada por tratar-se de um trabalho mais extenso. A obra de Frei Betto, Batismo de Sangue, centra a sua análise na colaboração dos Padres Dominicanos com o dirigente comunista e a emboscada que levou ao seu assassinato praticado pelos aparelhos da repressão da ditadura.

3 Conforme Mário Magalhães (2012) assinala e também observamos, a Resolução do V Congresso do PCB reafirma o mesmo texto contido na Declaração de Março de 1958

4 Debate fundamental a respeito desta questão no tocante à realidade brasileira é a discussão entre o desenvolvimentismo e os autores da escola marxista da teoria da dependência. Ver Marini (2013). Também na página 56 do texto, A crise brasileira, Marighella abordará a questão da transferência de certas tecnologias do centro da economia capitalista para os países periféricos. A respeito desta questão de maneira mais profunda consultar Marini (2013)

5 Caio Prado Júnior (2004) discute a questão da burguesia nacional chinesa. Merece melhor estudo se esta questão influenciou Marighella quanto a importância que dava a burguesia brasileira nacional na criação das condições para um processo revolucionário, já que existem relatos de que o líder comunista estudou muito no período que esteve na China.

6 Para esta questão, ver Magalhâes (2012). Além do exposto e das evidentes diferenças entre as duas siglas, entendemos que, além de afirmar a especificidade de uma concepção etapista nacional/antiimperialista e socialista, também pretendia utilizar uma simbolia que pudesse dialogar com os segmentos da Sociedade Civil progressistas e nacionalistas. Esta questão merece melhor estudo

7 Embora acreditemos que em termos clássicos José Martí não se definisse como Socialista, podemos afirmar que a sua percepção do mundo, da realidade, dos dilemas e problemas do homem, da luta nacional e dos povos e das questões internacionais tenham uma visão próxima ou mesmo idêntica com o ideário proposto pelo marxismo.