A PARTICULARIDADE BRASILEIRA NO INÍCIO DA DÉCADA DE 60: O DEBATE HISTÓRICO EM TORNO DO CARÁTER DO GOVERNO JOÃO GOULART

 

Valquiria Kelly Zanzarini Braga (PPGHE/USP)1

 

A querela sobre o que nos caracteriza como país não é nova. Não cabe aqui situarmos o debate, que perpassa diversas vertentes das ciências humanas, sobre o caráter nacional brasileiro. No entanto, a questão da particularidade do capitalismo brasileiro nos parece ser a pedra de toque que ilumina as principais questões da história e do futuro de nosso país; ampliada e relacionada ao seu universal correspondente, a particularidade talvez seja uma das chaves tão buscadas para abrir os caminhos para um novo modelo social onde reine a emancipação humana. Nossa opção pelo tema, provisoriamente batizado de “O conceito de populismo e o a particularidade do capitalismo brasileiro 1930-1964” se explica basicamente por dois motivos: primeiramente, a importância das transformações na realidade brasileira e a centralidade das questões que se colocam no período entre 1930 e 1964 para a elucidação dos elementos particulares de nosso capitalismo e, em segundo lugar, o peso do conceito de populismo para o entendimento não somente do referido período, mas também para a realidade atual. A Segunda República está intrinsecamente ligada com o debate que se fazia desde o início do século XX a cerca do modelo socioeconômico a ser adotado no Brasil. A crise do modelo agroexportador abre com maior clareza a perspectiva de uma mudança nos padrões de acumulação do capitalismo doméstico, se colocando a industrialização como opção na dinâmica da economia nacional. A vitória do varguismo expressa uma das opções do embate e as décadas de 30 e 40 são expressões da maior ou menor execução desse projeto, sempre dialogando com elementos agroexportadores teoricamente característicos do momento anterior. A década de 50, por sua vez, nos mostra a vitória do modelo internacionalista proposta por JK. A década de 60 e a ascensão de Goulart se inserem nesse debate, a saber, qual projeto nacional o Brasil deveria seguir. Assim, foi entre as décadas de 30 e 50 que se delinearam as opções dos modelos de acumulação capitalista possíveis em nosso país e foi no governo Goulart que as forças sociais, a favor ou contra este ou aquele modelo se digladiaram pela vitória. A ditadura militar imposta em 1964 não deixa dúvidas de qual foi o vencedor desse embate.

Para contribuir com tal tema, apresentaremos brevemente as interpretações dominantes sobre o período tratado – a teoria do populismo –, os debates dela decorrentes bem como apontaremos algumas de suas falhas. Em seguida apresentaremos nossa hipótese teórica baseada na pouca explorada categoria marxista de particularidade e então relacionaremos tal categoria à realidade brasileira, buscando demonstrar que alguns elementos do capitalismo se perfazem de maneira específica no tocante ao desenvolvimento brasileiro.

Ressaltamos ainda que nossas pesquisas ainda estão em andamento, sendo os resultados e conclusões aqui expostos incompletos e provisórias.

 

AS INTERPRETAÇÕES SOBRE O PERÍODO E O DEBATE EM TORNO DO CONCEITO DE POPULISMO

Realizando-se um panorama sobre as interpretações mais importantes a cerca do período por nos tratado, rapidamente podemos notar a ênfase no conceito de populismo, comumente utilizado para caracterizar todo período entre 1930 e 1964. Assim, para entendermos o debate teórico que abarca nosso tema, precisaremos de um duplo movimento: apresentar os principais autores que tratam do “populismo” e retroceder historicamente até 1930, período essencial para se aclarar as questões que tangem a década de 1960. Apresentaremos, portanto, brevemente, as teorias de Francisco Weffort e Octávio Ianni, os chamados teóricos do populismo, destacados intelectuais que ditaram regra sobre esta questão por muito tempo e ainda influenciam intensamente o debate em torno das principais questões nacionais no que confrange ao nosso período. Sem querer esgotar o tema, muito menos diminuir a importante contribuição desses autores, buscaremos traçar algumas linhas gerais das quais comungam os teóricos do populismo, elucidando conceitos amplamente utilizados não só por esses teóricos quanto por inúmeros outros autores por eles influenciados2.

Estes teóricos escrevem nas décadas de 1960-80 na tentativa de elaborar uma síntese da lógica de desenvolvimento brasileiro, mais especificamente, da passagem de um Brasil agrário para um Brasil industrialmente desenvolvido e, tomando como hipótese central que a Segunda República brasileira, descortinada com a “Revolução” de 1930 e encerrada pelo golpe de 1964, seria regida por governos populistas, elaboram a teoria da “crítica do populismo”.

Buscando entender a historicidade própria de nosso país, Weffort e Ianni elaboram uma chave explicativa para a modernização capitalista no Brasil. Nesse sentido, a forma política populismo seria desencadeada por uma “crise de hegemonia” nas relações de poder nacionais. Fragilizadas pela crise de 29 e seus desdobramentos para setor agro-exportador, a oligarquia cafeeira dominante até então teve seu poderio abalado. Ao mesmo tempo surgindo em cena estão novos atores na sociedade brasileira: a burguesia industrial, setores da classe média e o operariado urbano. Assim como a velha elite oligarca, também a burguesia industrial aparece como figura frágil uma vez que, novas no cenário político, ainda não havia concretado seu poder. O operariado urbano, por sua vez, o novo ator decorrente do processo de desenvolvimento urbano-industrial capitalista, se apresentaria como uma questão a ser solucionada: como incorporar as massas populares ao processo político? Ao mesmo tempo em que demandam condições de vida e trabalho, as massas também representam um enorme poder, uma vez que são numericamente enormes e crescentes. A “disponibilidade política” dessa fatia da sociedade vai de encontro à fraqueza dos demais setores em formação e da velha oligarquia cafeeira. A solução encontrada pela classe dominante foi o Estado de Compromisso de líder populista, que inclui no pacto entre os grupos dominantes e a classe média também as massas populares, mas na forma de manipulação.

Essa inserção não teria sido feita pela classe, mas sim de forma individual. Aí se entende porque falam em massa: a ausência de consciência de classe faz com que o operariado não se relacione com a classe dominante como classe operária, mas como indivíduo e líder populista/Estado. O caráter manipulatório do Estado populista ocupa papel de destaque na interpretação, uma vez que as concessões dadas às massas seriam apenas uma forma de acalmá-las e mantê-las sob a tutela de tal Estado, enquanto que em realidade eram atendidos os interesses das classes dominantes.

Os sindicatos, neste contexto, em sua estrutura corporativista, serviram para legitimar e aprofundar a ordem populista, uma vez que, vinculados ao Estado e submissos às orientações do MTIC – Ministério do Trabalho Indústria e Comércio -, contribuíam para a massificação dos operários ao afastá-los de seus reais interesses de classe e privá-los de sua autonomia.

Com relação ao papel desempenhado pelas esquerdas no período tratado, a posição dos autores é de condenação do Partido Comunista Brasileiro como partido que teria caído no ardil populista e se limitada à célebre aliança com a burguesia. Indicado como uma das causas para subordinação dos trabalhadores às chancelas do populismo o PCB se torna um dos responsáveis pela falta de atitude do movimento operário frente aos desmandos da elite.

A ausência de consciência de classe, acirrada pelas falhas dos grupos de esquerda, pelo sindicalismo atrelado ao Estado e pela influência carismática do líder, faz com que o proletariado não se veja e não atue como classe, convertendo-se, portanto, em massa, sendo relegada a mero ator coadjuvante no embate político.

No entanto, o populismo não se limita à manipulação da massa, mas seria um fenômeno político singular, um tipo específico de dominação política e de participação popular, que se deu na época do desenvolvimento industrial e urbano brasileiro, caracterizado pela incapacidade política dos setores dominantes em fazerem-se dominantes. Ou seja, para entender a forma de atuação das classes populares no período, necessariamente deve-se levar em consideração a forma política populismo.

Apesar de as leituras de Weffort e Ianni serem o referencial teórico mais comum na análise do tema aqui debatido e espelho para diversos autores que escrevem sobre o período, cada vez mais se acirra o debate acerca da validade destas interpretações para o entendimento do desenvolvimento nacional.

Jorge Ferreira, tentando realizar uma revisão das análises empreendidas por tais teóricos, é responsável pela organização de uma coletânea de textos que buscam problematizar o conceito de populismo.3 Nesta, o organizador reafirma a importância da categoria populismo nas análises sobre política e história brasileira, mas enxerga os limites desta análise.

O autor indica como fonte do construto teórico elaborado por Weffort e Ianni as proposições de autores como Gino Germani, Torcuato di Tella e Guerreiro Ramos, que caracterizam o populismo na política brasileira baseados na chamada teoria da modernização. Para esses teóricos, o populismo se trata de uma manifestação típica da passagem de uma sociedade tradicional para uma sociedade moderna, mas da forma pela qual essa transição ocorreu na América Latina; diferente dos casos clássicos, por aqui essa transição se deu de maneira atabalhoada, configurando-se o populismo como um “descompasso, retrocesso ou desvio” do modelo ideal da social democracia europeia.

Segundo Ferreira, tanto Weffort quanto Ianni não ressaltam a especificidade brasileira, igualando figuras diversas sob o rótulo populista. Essa generalização não deixa de fora a atualidade, sendo ainda hoje usada para explicar governos e governantes tanto pelo senso comum quanto pela academia:

“Assim, João Goulart, Leonel Brizola, (...), todos filiados a um partido político, o PTB, bem como uma tradição política, o trabalhismo, surgem no mesmo patamar que Jânio Quadros e Adhemar de Barros (...). Eles por sua, vez, são igualados à ala direitista-golpista da UDN, como Carlos Lacerda, ao general Eurico Dutra e JK”4.

Ferreira ressalta, ainda, que as análises que tomam como centro o populismo, reduzem a história do movimento operário “a uma espécie de ‘conspiração’ das classes dominantes”, acabando por estabelecer uma relação onde o Estado aparece como todo poderoso e a sociedade, em especial a classe trabalhadora e seus líderes, são vistos como vítimas inertes diante desse enorme poder, afirmando que a esquerda cai, desta forma, na armadilha da direita, que quer ver na relação desigual Estado/sociedade e na incapacidade desta última, as razões para os problemas nacionais. “Culpabilizar o Estado e vitimizar a sociedade, eis alguns dos fundamentos da noção de populismo”5.

É a partir dessa crítica que Ferreira desenvolve sua hipótese teórica. Alega que, por mais que de fato tenha ocorrido intervenção estatal no período, esta não é suficiente a ponto de moldar a mente e o comportamento das massas e muito menos a classe proletária é passiva e sem iniciativa própria como daria a entender uma interpretação centrada na dualidade Estado poderoso/ sociedade manipulada.

Ferreira afirma que nos governos trabalhistas houve sim certa consciência de classe, deixando os trabalhadores de aparecerem como passivos, tornando-se sujeitos de sua própria história, de forma que suas reivindicações foram, se não totalmente, pelo menos parcialmente atendidas. Assim o autor realiza um regate positivado da tradição trabalhista e das práticas do PTB, afirmando que a opção pelo trabalhismo não foi fruto de manipulação e sim uma escolha consciente dos trabalhadores, rompendo-se, segundo ele, a dicotomia referida entre Estado e Sociedade. Assim o autor propõe a substituição do termo populismo pelo termo trabalhismo, mais eficaz e assertivo para caracterizar o período.

Outra crítica à análise dos “teóricos do populismo” foi empreendida por Murilo Leal6. Em um trabalho inovador, rico em análises de fontes históricas, Leal busca analisar a classe operária a partir da perspectiva de E. Thompson, examinando não apenas os movimentos sindical e grevista, mas também as manifestações culturais desta classe. Assim, baseado na análise dos trabalhadores de São Paulo, Leal consegue asseverar que:

“Ao contrário, portanto, do que se afirmava na bibliografia crítica ao populismo, a consciência de classe dos operários não se diluiu na condição de ‘massa’ (...). Em vez disso, constituíram-se alianças, organizações e programas para enfrentar a questão trabalhista, da carestia, da moradia e da representação política a partir do ponto de vista dos interesses operários e populares” 7.

Percebe-se, portanto, que Leal busca descontruir as noções tipicamente populistas que tomavam o movimento operário como subordinado ao Estado, carente de uma consciência própria e pouco combativo: “E a massa desarticulada, manipulada pelo Estado ou pelas lideranças políticas de plantão, passou a ser entendida como uma classe que, no interior de condições que não escolhe, é capaz de fazer sua própria história, tanto quanto ser feita por esta”8.

Em debate com as três interpretações citadas, muito relevantes são as contribuições de pesquisas recentes que buscam reafirmar as teorias do populismo e ressaltar sua origem marxista. Felipe Abranches Demier e Demian Mello, cada um na especificidade de suas pesquisas, tem em comum intensa crítica a Jorge Ferreira e demais autores do trabalhismo, afirmando que estes empreenderam uma análise simplista de Weffort e Ianni. Desta forma, ao analisar a eleição e legitimação dos “líderes populista” como uma escolha livre e consciente dos próprios trabalhadores, como se estes tivessem optado racionalmente pelo trabalhismo e não por qualquer outro partido de esquerda, Ferreira estaria reduzindo a complexidade de temas como manipulação e hegemonia a termos de supervalorização dos atores e negação das determinações sociais do processo histórico.

Para Melo, Ferreira teria reafirmado a mesma análise do populismo, mas com sinal trocado, uma vez que, se para Ianni e Weffort o Estado e o líder carismático são criticados por serem conservadores e dominantes e as massas são tomadas como manipuladas, para Ferreira Estado e líder são vistos como efetivamente representantes das classes subalternas, que, por sua vez, se encontram realizadas e plenamente representadas por tais líderes, adquirindo, portanto, consciência de classe ao realizar a melhor escolha. O termo populismo teria sido cunhado, portanto, não por uma esquerda insatisfeita, mas sim pelos conservadores em reação. A interpretação do populismo elabora por Weffort e Ianni é substituída por uma visão que atribui à esquerda “falta de apego pela democracia” (uma vez que não reconheceu a democracia quando ela estava a sua frente – o trabalhismo). Nessa perspectiva, a esquerda brasileira deixa de ser vítima de manipulação populista e passa a ser a vilã responsável pela derrota do modelo ideal, o trabalhismo. A crítica à Ferreira se dá no sentido da afirmação de que o sistema capitalista como um todo estar em crise naquele momento da realidade brasileira, sendo iminente a derrocada daquele ciclo progressista. De forma que é impossível a validação do raciocínio feito por Ferreira, de que o trabalhismo foi um momento pleno de nossa história, sendo este idealizado por tal autor.

Ao propor uma nova forma de interpretação da realidade brasileira Demier lança mão dos conceitos de bonapartismo cunhado por Marx e Trotsky. Caracterizado por uma forma de dominação política em que o Estado adquire relativa autonomia frente às classes e frações de classe em conflito no jogo político, o bonapartismo apareceria em casos de crise de hegemonia, ou seja, o Estado assume papel de árbitro, se colocando acima das classes, uma vez que nenhuma delas teria poder suficiente para se tornar hegemônica. Na medida em que o bonapartismo tem como característica controlar e reprimir o movimento operário de forma preventiva, evitando sua organização e ação, na busca como fim último de preservar a ordem capitalista, se realiza, diante da pressão das massas, um compromisso. Como este compromisso tenha sido firmado, por parte da classe dominante, com o objetivo de controle, “pode–se dizer que o reformismo e o corporativismo de Estado foram impostos ao aparelho estatal bonapartista à classe dominante ‘para próprio bem desta'”.

Claramente se pode perceber, e o autor reafirma isto ao longo de seu trabalho, que as noções de populismo e bonapartismo se assemelham em muitos aspectos: ambas partem de uma crise de hegemonia para desenhar o esquema populista ou bonapartista, ambos dialogam com a noção de “Estado de compromisso” e com certa autonomia ou superioridade do Estado frente às classes sociais.

José Chasin insere os autores do “populismo” em um conjunto mais amplo de intelectuais que elaboraram teorias de peso para a interpretação da realidade nacional, a chamada analítica paulista.9 Segundo Chasin, essas teorias surgem com o objetivo de corrigir as ações de uma esquerda sem radicalidade, uma vez que esta, na figura do PCB, deixou-se cair na aliança de classes com a burguesia. Esta “reação” que propõe uma retomada da radicalidade operária será a base teórica para as ações “de esquerda” da década de 70 em diante. Afirmando que os citados teóricos se baseiam em noções marxistas abstratas e que, portanto, falseiam a realidade, Chasin percebe a inversão realizada pelos teóricos da “crítica do populismo” ao relegar para as “massas”, a culpa pela manutenção da situação brasileira:

“De fato, para a teoria do populismo, a democracia, o partido e o líder populista são em conjunto ou cada um per si o feiticeiro nefasto, que executa a mágica insuperável de atar as massas aos setores dominantes. Isto é, no quadro das hegemonias impossíveis, acabam por ser as massas, uma vez que reconhecem a dominação constituída, as responsáveis pela sustentação do status quo dominante (...)”10.

Além de deixar o espólio do capital nas mãos das massas, os teóricos do populismo acabam por não cumprir sua missão inicial, a saber, dar uma solução para a tipicidade da formação brasileira. Ou seja, é uma das bases do capitalismo em geral – e não particular ao populismo - a afirmação da solidariedade entre capital e trabalho, bem como o uso das noções de pátria, povo e nação, não bastando isso para especificar a singularidade do capitalismo brasileiro. A teoria do populismo erra também ao condenar toda e qualquer aliança política, no afã de combater os erros da esquerda tradicional (PCB), marcados por sua famosa política de aliança de classes, acabando por pregar o isolamento político.

Lívia Cotrim, partindo dos trabalhos de Chasin e desdobrando-os de forma singular, propõe, da mesma forma que Ferreira, situar as origens do pensamento dos teóricos do populismo na teoria da sociedade de massas. De forma que, tomando a liberal-democracia como ideal a ser alcançado, os teóricos do populismo reduzem e as demais formas políticas como corrupção mais ou menos desenvolvidas desse ideal. Influenciadas diretamente pela análise weberiana, essa forma de entendimento da sociedade toma cada forma política como tipos ideais, imputando na realidade as características do modelo. Assim é eliminado tanto o caráter histórico, quanto, consequentemente, a particularidade de cada caso concreto, reduzindo-se a análise a generalizações abstratas, incapazes de perceber as diferenças entre as formações sociais tratadas.

A teoria do populismo, por mais que tenha levantado uma questão legítima – como encontrar uma saída para a questão nacional da perspectiva do trabalho – ao partir de referenciais equivocados, toma como horizonte a democracia, não se desvinculando da esfera do capital e incutindo em um erro igual ou maior do que a esquerda que buscava criticar11.

 

A CATEGORIA PARTICULARIDADE

O entendimento pleno do materialismo histórico tal qual desenvolvido por Marx, já nos aponta para a direção da categoria particularidade, uma vez ser enfatizado pelo autor citado, a historicidade dos fenômenos humanos. Com relação à forma concreta que esses fenômenos históricos podem assumir, Marx já nos indicava a especificidade do caso alemão, que seria uma forma diferenciada, em relação aos casos francês ou inglês, de objetivação do capitalismo. Na “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, mais especificamente na Introdução publicada nos Anais Franco-Alemães em 1844, Marx reflete sobre o caráter particular do caso alemão para introduzir-nos na problemática relação entre filosofia e política nesse país. Afirmando que a filosofia hegeliana e sua teoria sobre o direito estão à frente da realidade concreta do país, sendo, portanto, idealizações abstratas dessa mesma realidade, Marx compara a realidade alemão com formações capitalistas modernas: “Se quisermos nos ater ao status quo alemão, mesmo da maneira mais adequada, isto é, negativamente, o resultado será ainda um anacronismo. (...) Se nego a situação alemã de 1843 dificilmente atinjo, segundo a cronologia francesa, o ano de 1789, e ainda menos o centro vital do período atual”12. Fica claro em toda esta Introdução a tentativa de Marx de elucidar o caráter atrasado do capitalismo alemão, sendo este ainda marcado pela presença forte de elementos do ancien régime no momento em que as nações europeias avançadas apenas lidam com as sombras deste fantasma: “A luta contra o presente político dos alemães é a luta contra o passado das nações modernas, que ainda se vêem continuamente importunadas pelas reminiscências do seu passado. Para as nações modernas, é instrutivo ver o ancien régime, que na sua história representou uma tragédia, desempenhar um papel cômico como espectro alemão”13.

De forma que o atraso econômico, prático, alemão é refletido tanto em atitudes ultrapassadas na economia e na política quanto na teoria desenvolvida por seus intelectuais: “Por conseguinte, na Alemanha, começa-se com aquilo que já terminou na França e na Inglaterra. A ordem antiga e podre, contra a qual estas nações se revoltam teoricamente e que apenas suportam como se suportam grilhões, é saudada na Alemanha como a aurora de um futuro glorioso que, até agora, a custo ousa mover-se de uma teoria astuta para uma prática implacável”14.

A razão que leva Marx a realizar a crítica da filosofia do direito de Hegel é justamente este descompasso entre uma realidade atrasada e uma filosofia que idealiza esta realidade, sendo, portanto, incoerentes as propostas da teoria hegeliana para a prática alemã, ou seja, “A Alemanha não (...) atingiu ainda na prática os estágios que já ultrapassou na teoria. Como poderia a Alemanha, em salto mortale, superar não só as próprias barreiras mas também as das nações modernas, isto é, as barreiras que na realidade tem de experimentar atingir como uma emancipação de suas próprias barreiras reais?”15.

As explicações, segundo Marx, das contradições alemãs estão justamente nesse desenvolvimento precário de seu capitalismo, uma vez que este conjuga elementos velhos, ultrapassados e novos, modernos, sem, no entanto, gozar das benesses do seu desenvolvimento. De sorte que a Alemanha “experimentou também as dores deste desenvolvimento sem participar nos seus prazeres e satisfações parciais” pois, “Se examinarmos agora os governos alemães, veremos que devido às condições da época, a situação da Alemanha, o ponto de vista da cultura alemã e, por último, o seu próprio instinto afortunado, tudo os impele a combinar as deficiências civilizadas do mundo político moderno(de cujas vantagens não desfrutamos) com as deficiências bárbaras do ancien régime (de que fruímos na quantidade de vida)”16.

Lênin também, em seus estudos, se dedica ao tema, apontando a diferenciação não só do caso alemão – batizada por ele de Via Prussiana -, mas dos casos russo e norte americano.

O filósofo húngaro Lukács, seguindo o direcionamento de Marx e Lênin, sintetiza os casos concretos em teoria, desenvolvendo a categoria de particularidade. Lukács afirma que, sendo o concreto síntese de múltiplas determinações, e sendo estas determinações historicamente dadas, o universal capitalismo pode assumir particularidades que não negam ao todo que lhes deu origem, mas antes o reafirmam de forma concreta. O capitalismo, portanto, ē uma abstração, uma forma universal, que só toma sentido se analisado no seu evolver histórico, ou seja, nas formas particulares que assume. De forma que o caso particular contém o universal.

A respeito da particularidade, referida por Lukacs, aplicada ao caso brasileiro, acreditamos ser José Chasin, o intelectual que mais longe levou o desenvolvimento de tal questão. Chasin afirma, em comunhão com Lukacs e se baseando em Marx que “a sociedade pode se apresentar mais ou menos desenvolvida do ponto de vista capitalista, mais ou menos expurgada de elementos pré-capitalistas, mais ou menos modificada pelo processo histórico particular de cada país. De maneira que há modos e estágios de ser , no ser e no ir sendo capitalismo, que não desmentem a anatomia, mas que a realizam através de concreções específicas”17, ou seja, Chasin comunga com Lukacs quando este percebe que a realidade é dotada de particularidades em seus casos concretos, não deixando, no entanto, de se pregar a anatomia universalizante que as determina e lhes confere contornos (no caso, o modo de produção capitalista).

 

A PARTICULARIDADE BRASILEIRA: CARACTERÍSTICAS E CONVERGÊNCIAS

Como arremate de nossa pesquisa, faremos a correlação da categoria particularidade com a realidade brasileira, buscando identificar quais são os elementos particulares do capitalismo brasileiro. Para isso nos usaremos de teóricos de grande envergadura e que, a nosso ver, se destacam do restante da intelligentsia do período justamente por identificar, de maneira mais ou menos clara, os constituintes dessa particularidade.

Entre todos os autores que abordaremos, se destaca José Chasin. Este, que foi pioneiro na introdução do pensamento lukácshiano no Brasil, é o único que estabelece uma relação direta entre a categoria particularidade e a realidade brasileira, servindo-nos como farol para guiar nossa busca em torno do que nos caracteriza. José Chasin realiza grande esforço teórico para entender de que forma o capitalismo se objetiva no Brasil, quais são seus contornos estruturais, bem como suas carências e, a partir de tanto, seus caminhos resolutivos. Partindo da noção de Via Prussiana, denominada por Lênin, Chasin identifica certas determinações gerais comuns ao modo de configuração dos capitalismos alemão e brasileiro que os especifica em relação aos casos clássicos:

“a grande propriedade rural é presença decisiva; de igual modo, o reformismo pelo ‘alto’ caracterizou os processos de modernização de ambos, impondo-se, desde logo, uma solução conciliadora no plano político imediato, que exclui as rupturas superadoras, nas quais as classes subordinadas influiriam(...). Também, nos dois casos o desenvolvimento das forças produtivas é mais lento, e a implantação e a progressão da indústria, isto é, do ‘verdadeiro capitalismo’, do modo de produção especificamente capitalista é retardatária, tardia, sofrendo obstaculizações e refreamentos decorrentes das forças contrárias e adversas. Em síntese, num e noutro casos, verifica-se, (...) que o novo paga alto tributo ao velho”.18

Chasin afirma, todavia, que o caso alemão não deve ser tomado como modelo, tendo cada caso sua objetividade específica, na medida em que é fruto de um conjunto de determinações únicas decorrentes do modo pelo qual a realidade se coloca.

O Brasil principia sua formação, assim como nos indica Caio Prado Júnior, como mero acessório da empresa mercantil colonialista que se realizava na Europa, servindo simplesmente de quintal para Portugal e Inglaterra atingirem sua acumulação primitiva. Este é o sentido da colonização brasileira e o norte que orienta a formação do latifúndio agrícola escravista: abastecer mercados externos. Percebe-se já aí a ausência de processos revolucionários na história brasileira: enquanto nos casos clássicos o rompimento com o historicamente velho se faz por meio de processos revolucionários e rupturas, aqui está presente a conciliação entre o novo e o velho, bem como estão excluídas as massas dos processos sociais.

Avançando-se na história brasileira, também o processo de industrialização segue a norma da época colonial: enquanto a burguesia se liga às antigas classes dominantes, o modelo de industrialização escolhido, baseado em bens de consumo duráveis produzidos por empresas estrangeiras, complementado pela exportação de produtos primários, novamente reforça a dependência externa e impede a autonomia nacional, bem como se baseia na exclusão das massas, uma vez que a obtenção do lucro repousa sobre a superexploração do trabalhador. De sorte que o capitalismo que se entifica na Via Colonial – variante brasileira da Via Prussiana, cunhado por Chasin - mais que atrasado é, nas palavras de Chasin, hiper-tardio e subordinado. Nesse capitalismo tipicamente brasileiro, não se realizou a ruptura com o historicamente velho como ocorreu em outros casos históricos, pelo contrário, aqui houve uma conciliação entre o velho – o modelo agroexportador encabeçado por uma burguesia agrária – e o novo – a burguesia industrial. Essa característica, a ausência de rupturas, é marca da história brasileira desde a época colonial e será fundamental para o entendimento do período por nós estudado.

Chasin ainda ressalta que, como consequência direta do caráter atrófico do capitalismo brasileiro é que se desenha outro elemento fundamental deste mesmo capitalismo, a saber, a autocracia. Caracterizado como um capitalismo extremamente explorador e que nega minimamente a integração da classe trabalhadora ao desenvolvimento e à democracia, o capitalismo brasileiro não consegue dominar a não ser pela força.19

Lívia Cotrim, como já indicamos, é outra intelectual que sopesa a questão, partindo dos pressupostos apontados por Chasin, analisa os discursos de Getúlio Vargas com o objetivo de compreender as singularidades, objetivadas nos governos deste presidente, da forma particular brasileira.

A análise dos discursos getulianos revela a Cotrim a existência de um projeto bem estrutura de nação, descortinando-se que no caso específico deste, muito mais estava em jogo do que mera manipulação como afirmam os teóricos do populismo. Partindo da proposta de um capitalismo nacional autônomo, Vargas teria estruturado suas ações de forma a realizar a modernização capitalista necessária à industrialização do país em um molde nacionalista que rompia com a dependência dos mercados internacionais e com elementos progressista na questão social. Projeto burguês, portanto.

No entanto, não ocorreu um rompimento total com o historicamente velho – a estrutura agrária e dependente – conservando-se intactos, mesmo no projeto modernizante getulista, muitos elementos da subordinação típica de nosso país. A estrutura agrária brasileira, herança colonial, dependente das condições externas, acaba por determinar a forma como a industrialização ocorre no Brasil, uma vez tendo sido conservados seus elementos essenciais.

De sorte que mesmo a industrialização tendo ocorrido, os interesses da burguesia industrial brasileira, por mais que sejam muitas vezes diversos dos da burguesia agrária, nunca se constituíram numa oposição a velha estrutura, operando-se, então, uma conciliação entre novo e velho e não uma ruptura. Cotrim ressalta, no entanto, que a coexistência com a estrutura agrária dependente cobra um preço caro ao modelo industrial, barrando seu pleno desenvolvimento na medida em que a conservação de elementos típicos do modelo agroexportador muitas vezes entra em contradição com as necessidades do desenvolvimento industrial.

Percebe-se, portanto, a incongruência entre a conciliação entre o novo e o velho e a integração dos trabalhadores a esta estrutura nacional. Não haveria como atender os trabalhadores se mantendo aquela estrutura; atendê-los seria limitar a superexploração da força de trabalho, base que permitia a sobrevivência de ambos, novo e velho, dentro de um mesmo sistema: daí se entende tanto o temor das classes dominantes diante das demandas dos trabalhadores quanto a violência com que estas demandas eram reprimidas.

Assim, a demagogia populista, na linguagem dos teóricos do populismo, se bem que muitas vezes presente, é substituída, em sua essencialidade, por um projeto real de modernização capitalista, nunca escondido por seus líderes como parece ser a questão para estes teóricos.

Não será surpresa, portanto, a afirmação de Cotrim da impossibilidade de um sistema democrático em um país onde reina a referida estrutura econômica, tendo em vista a democracia ser característica do capitalismo industrial. A forma política que corresponde a esta burguesia será, então, a autocracia,

Após esta caracterização da forma particular que assume o capitalismo brasileiro, Cotrim pode realizar a contraposição às teorias populistas: estes se limitam a imputar à Vargas as características de um líder conciliador e demagogo igualável com qualquer outra liderança com mais ou menos apelo às massas, como ocorreu aos montes ao longo da história.20 “De modo que, se a demagogia pode também estar presente no discurso, não é esse elemento de sua fala que esclarece seu sentido. Ao contrário, é o teor não demagógico que melhor evidencia seu limite e seu conservadorismo.”21

Outro autor que consideramos, guardadas diferenças a se assinalar, trabalhar na mesma linha de José Chasin é Francisco de Oliveira. Em suas obras, Oliveira realiza acurado exame da economia brasileira do período tratado pelos teóricos do populismo e, apesar de usar o termo populismo, apresenta uma contraposição de peso a tais análises.

Assim como Chasin, também afirma o caráter dependente e atrasado do capitalismo brasileiro, situando, assim como Caio Prado Jr, a constituição da economia brasileira na expansão e acumulação europeias, de forma que assumimos o papel de alimentar tais economias.

Segundo Oliveria, seu principal objetivo é apreender a “especificidade do capitalismo no Brasil”22, de forma que o autor, mesmo sem se referir à categoria particularidade, a descreve em suas características e relações com o universal capitalismo, asseverando que meramente afirmar que o Brasil é capitalista e, portanto, reproduz as características desse sistema, não nos é suficiente para captar o movimento constante que caracteriza o desenrolar histórico, sendo, portanto, necessário apreender o que existe de peculiar na formação brasileira tal qual se deu em nosso evolver histórico: “Essa especificidade não é a negação de que o sistema sócio-econômico-político aqui existente seja capitalista; ao contrário, nos termos de Marx, busca-se, através da negação da negação, encontrar o concreto do capitalismo aqui e agora”23.

E se aproximando ainda mais da categoria particularidade, descreve-a inserindo-a no pós-30:

“é evidente que a história e o processo da economia brasileira nos pós-anos 30, contêm alguma ‘especificidade particular’; isto é, a história e o processo da economia brasileira podem ser entendidos, de modo geral, como a da expansão de uma economia capitalista — que é a tese deste ensaio —, mas esta expansão não repete nem reproduz ‘ipsis literis’ o modelo clássico do capitalismo nos países mais desenvolvidos, nem a estrutura que é o seu resultado”24.

Assim, Oliveria busca ir à essência da formação brasileira na tentativa de responder como se articulam o velho – a burguesia agroexportadora, principalmente a cafeeira – e o novo – a burguesia industrial - para resultar em um país de industrialização tardia e formas políticas não-democráticas.

De sorte que, o ponto crucial para Oliveira é o mesmo que para Chasin; nas palavras de Oliveira há no Brasil uma “integração dialética” entre o velho e o novo de forma a permitir que a acumulação de capital beneficie os dois setores e o que gera essa necessidade de conciliação é a ausência de uma base capitalista de produção. Ainda, de acordo com Chasin, o modelo de acumulação, apesar de conectado intrinsecamente ao externo, decorre da especificidade e da dinâmica internas.

Desta forma, a lógica da economia brasileira até o século XX era a exportação e a industrialização só ocorrerá quando da crise mundial da agroexportação e a consequente necessidade de financiamento interno da economia. No modelo agroexportador tanto a intermediação quanto o financiamento econômico são externos, o que faz com que uma vultuosa fatia do ganho fique nas mãos desses intermediários e financiadores estrangeiros, de forma que a economia acaba se autoconsumindo para arcar com os custos desse processo. A insustentabilidade da economia é agravada pela inexistência de um sistema financeiro/de financiamento internos, fazendo com que sempre se dependa da moeda estrangeira e, consequentemente, da exportação, para conseguir essa moeda – inclusive para se importar tudo aquilo que nossa frágil economia não produzia.

Esse dilema explica as constantes crises cambiais por que passamos na primeira república e entra em colapso geral quando da crise de 1929: a necessidade soma-se a possibilidade de um financiamento interno da economia e uma nova forma de organização do capital de base interna. Fundamental é ressaltar que Oliveira afirma que o elemento que nos leva a mudança de 1930 não é somente externo, mas sim fruto da dinâmica interna do capitalismo brasileiro. De sorte que essa dinâmica, apesar de alterada, não será rompida, ocorrendo uma conciliação entre os setores dominantes, tendo em vista a necessidade de divisas para importar e pagar a dívida pública. Coloca-se, então, nesse novo momento, com Getúlio Vargas, um elemento novo nessa dinâmica – uma burguesia industrial, um financiamento interno – mas as bases do modelo ainda se mantém, uma vez os recursos do financiamento interno serem advindos da apropriação do excedente da agroexportação e se impor ainda a necessidade dessa exportação.

Com o governo Juscelino Kubitscheck e o foco no departamento três da economia, a dependência externa se mantém, uma vez que sem uma base suficiente do departamento um, continuamos reféns das importações de máquinas e tecnologia que se encontra nas economias centrais. À solução paliativa encontrada para a contínua crise de financiamento foi o apelo ao capital estrangeiro: essa fonte de financiamento permitiu o salto dos 50 anos em 5 mas cobrou a alta conta quando, além de repassar parte dos ganhos nacionais via juros da dívida externa galopante, esse capital estrangeiro entra em setores chaves e acaba controlando a economia brasileira.

Já no governo João Goulart, Oliveira ressalta a crise econômica que nos abatia, mas enfatiza que essa crise longe de ter origem política, como queriam os autores da teoria do populismo, ocorre devido ao aguçamento das contradições do capitalismo tipicamente brasileiro: o aumento da concentração de renda decorrente desse modelo faz com que os salários percam o poder de compra a ponto de levar os trabalhadores a romper com o pacto populista e irem às ruas. João Goulart, tentando impedir a penalização excessiva dos trabalhadores acaba por ser retirado do poder.

Ruy Mauro Marini é outro autor que se debruça na análise do período 1930-1964 pela avaliação econômica. Segundo Marini, a industrialização do Brasil se deu em um momento específico da crise da agroexportação e Vargas simboliza o compromisso entre o setor em crise e a burguesia industrial ascendente. Esse compromisso, apesar de mais ou menos estável, recebe forte abalo com a crise econômica da década de 50 e o compromisso firmado é rompido. A saída para tal crise é a entrada maciça de capital estrangeiro empreendida pelo governo JK, que permite nova fonte de financiamento e as divisas necessárias para a economia nacional. Marini afirma, portanto, assim como Chasin e Oliveira, que esta saída permitiu a reconciliação entre os setores dominantes nacionais, mais uma vez se optando pela conciliação e não ocorrendo ruptura.

Como os outros dois autores citados, Marini também enxerga a dependência industrial das divisas advindas da agroexportação, afirmando que não raras vezes operou-se até transferência de rendas industriais para financiar a agro exportação, o que evidencia que este corrobora com a afirmação de Chasin de que “o novo paga alto tributo ao velho”. Complementando esse raciocínio, Marini afirma ser a estrutura agro exportadora da economia brasileira grande obstáculo para a industrialização e exemplifica essa constatação identificando na concentração de terras típica do país, empecilho para a criação de um mercado interno forte para a indústria nacional. Outro exemplo levantado por Marini é a necessidade de divisas para pagar a dívida externa brasileira e as importações de máquinas e tecnologia, fato que nos faz reféns das divisas advindas da agro exportação.

Situando o governo João Goulart neste debate, Marini afirma que a contradição inerente ao sistema se aguça neste período, resultando em rebaixamento de salários e aumento dos preços, o que leva a intensa mobilização. Essa mobilização, somada a maior organização sindical adquirida ao longo do século, leva a quebra do arrocho salarial como forma de acumulação. De forma que o compromisso é rompido porque o sistema em que se baseia a economia que já não se sustenta por si só, não resiste à pressão operária. Jango, apesar de tentar arbitrar novamente o dilema, esbarra na impossibilidade de se conciliar as necessidade da burguesia – aumento do mercado interno via reforma agrária – com as do setor agro exportador – que obviamente seria prejudicado com a reforma agrária – com as da classe operária – uma vez que também é interesse dos dois setores dominantes conter o avanço salarial. A saída encontrada com o golpe militar jogou os custos desse jogo nas costas dos trabalhadores e aguçou a superexploração inerente ao modelo.

Apesar de nossas investigações ainda serem parciais, acreditamos que nossa exposição tenha deixado claro primeiramente a fragilidade das interpretações que tomam o tipo ideal populismo como referencial; o extenso debate em torno do conceito mostra sua insuficiência e necessidade de revisão. Igualmente, destarte a parcialidade da pesquisa, buscamos demonstrar a existência de uma linha comum entre todos os autores aqui referidos – José Chasin, Francisco de Oliveira, Ruy Mauri Marini, Caio Prado Júnior -, sendo possível, através de suas obras, encontrar um fio condutor que nos esclareça os elementos particulares do capitalismo brasileiro – nossa dependência externa, o caráter subordinado e tardio de nosso capitalismo, a conciliação entre o novo e o velho e a consequente autocracia no plano político. Por fim, como não poderia deixar de ser, dado tratar-se de uma pesquisa pautada no marxismo, esperamos minimamente poder apontar alguma perspectiva rumo às soluções dos problemas nacionais tão caros ao povo brasileiro e contribuir para o caminho rumo à emancipação humana.

 


1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo. Bolsista Capes. valquiriak.braga@bol.com.br

2 Entre importantes autores que usam o conceito populismo tal qual elaborado por Ianni e Weffort estão José Álvaro Moisés, Décio Saes, Armando Boito Jr, Régis de Castro Andrade, René Dreifuss, etc

3 Jorge Ferreira. O Populismo e sua História: debate e crítica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 2010. Na mesma coletânea, ainda sobre o debate acerca da validade do conceito de Populismo, apropriado e desdobrado por Weffort e Ianni também se destaca Estado e Trabalhadores: O Populismo em questão de Daniel Aarão Reis, no artigo é apontado a revisão do conceito de populismo por Ângela de Castro Gomes e outros autores, bem como o entendimento da gênese do termo entre os autores brasileiros. Escolhemos aqui, Jorge Ferreira pois entendemos que seu pensamento é essencialmente similar e representativo dos demais teóricos do trabalhismo.

4 Ib. p.7.

5 Ib. pp. 61-62.

6 Escolhemos Murilo Leal como representante de uma corrente maior, fruto de uma tendência que se inicia na década de 80 de revalorização da historia do trabalho. De inspiração thompsoniana, esta corrente dá ênfase a elementos menos tradicionais na história do trabalho, enfatizando o estudo das bases e de elementos como a cultura, a vida cotidiana, as identidades sociais, etc.. Buscando reconciliar o movimento operário e sindical, bem como os trabalhadores como um todo, esta corrente se contrapõe às interpretações clássicas dos teóricos populistas. Fazem parte desta tendência, entre outros autores: Alexandre Fortes, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da costa, Antônio Luigi Negro, Paulo Fontes, etc. Outro trabalho fundamental para o debate é Trabalhadores e sindicatos na conjuntura do pré-64: a experiência carioca de Marcelo Badaró Mattos.

7 Murilo Leal. Op. Cit. p. 27.

8 Id.

9 A expressão analítica paulista formulada por Chasin compreende os participantes do famoso seminário sobre O Capital de Marx e que, posteriormente vieram a formar o CEBRAP que, criado em 1969, abarcava intelectuais de grande monta, exercendo grande influência sobre a formulação das interpretações da realidade brasileira e sendo, ainda hoje, referência para o debate dos problemas nacionais e das ciências sociais. Dentre os intelectuais que se destacam na analítica paulista podemos citar: Weffort, Ianni, José Álvaro Moisés, Giannoti, Fernando Henrique Cardoso, Francisco de Oliveira, Leôncio Martins Rodrigues, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Bresser-Pereira, Bolivar Lamounier, etc.

10 José Chasin. A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda. In: A Miséria Brasileira. São Paulo: Ensaios Ad Hominem. 2000.p.251.

11 Outros autores realizarem significativa crítica ao conceito de populismo. Destacamos: João Marcelo Ehlert Maia. A história de um conceito: o populismo no Brasil. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2001. e Rubem Barbosa. Populismo: Uma revisão Crítica, Tese de Doutoramento - Universidade Federal de Juiz de Fora, mimeo.

12 Karl Marx. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005. P. 146.

13 Ib. P. 148.

14 Ib. P. 149

15 Ib. P. 152

16 José Chasin. Op.Cit.. p. 153

17José Chasin. A Via Colonial de entificação do capitalismo. In: A Miséria Brasileira - 1964-1994: Do golpe militar à crise social. São Paulo: Ad Hominem, 2000, p. 38.

18 José Chasin. A Via Colonial de entificação do capitalismo. In: A Miséria Brasileira - 1964-1994: Do golpe militar à crise social. São Paulo: Ad Hominem, 2000, pp. 43-44.

19 Lívia Cotrim. Apresentação. In: A Miséria Brasileira - 1964-1994: Do golpe militar à crise social. São Paulo: Ad Hominem, 2000, p VII.

20 Id. P. 260

21 Id. P. 253.

22 Francisco de Oliveira. A economia da dependência imperfeita. Rio de Janeiro: Edições Graal,1989. P. 1.

23 Id.

24 Francisco de Oliveira. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo. 2003. p. 32-33.