“E A NATUREZA OS ENTREGOU AO JOGO DOS TEMPOS”: UMA CRONOLOGIA DE INTEMPÉRIES NAS CAPITANIAS DE PERNAMBUCO E ANEXAS

 

Mariely de Albuquerque Mello Felipe (PPGHE/FFLCH/USP)*

 

Um dos primeiros relatos de secas na América portuguesa deve-se a Fernão Cardim, que enquanto Jesuíta frequentou as capitanias da Bahia e Pernambuco, onde se encontrava quando, em 1583, teria havido uma estiagem tão grande que as “fazendas de canaviais e mandioca muitas se secaram”. Segundo Cardim, a falta de chuvas teria provocado uma grande escassez de alimentos no sertão pernambucano, afetando principalmente os indígenas que “desceram do sertão apertados pela fome, socorrendo-se aos brancos quatro ou cinco mil índios” 1. Crises climáticas como a de 1583 parecem ter afligido os indígenas desde antes da chegada dos colonos portugueses, que além de descerem para o litoral em busca de refúgio em momentos críticos, encontravam outras formas de lidar com a ausência de chuvas na região. Em seu “Tratado Descritivo do Brasil em 1587”, Gabriel Soares e Souza não registrou a ocorrência de secas, entretanto, ao descrever as plantas alimentícias da região, registrou o uso de algumas delas como alimento e alívio em períodos de seca e escassez. Como o embú, fruta encontrada:

pelo sertão, no mato que se chama càtinga, que está pelo menos afastado vinte léguas do mar, que é terra seca, de pouca água, onde a natureza criou estas árvores para remédio da sede que os índios por ali passam(...)e que a gente que anda pelo sertão mata a sede onde não acha água para beber, e mata a fome comendo esta raiz, que é mui sadia2.

Tais artimanhas utilizadas pelos indígenas para escapar da fome e da sede em tempos de águas escassas teriam sido incorporadas pelo homem branco em seu cotidiano e andanças pelos sertões. Além do embú, a palmeira ouricurí também era fonte de sustento em momentos de crises, pois era “cheio de um miolo alvo e solto como o cuscuz”, que era retirado e cozido, considerado um mantimento sadio “substancial e proveitoso aos que andam pelo sertão” 3.

No decorrer do século XVII ocorreram quatro secas, em 1603, 1614, 1645 e 16924, que afetaram principalmente as capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Segundo registros de Pereira da Costa, a seca de 1645 foi rigorosa por ser no meio do verão, da qual teriam sobrevindo doenças contagiosas de “catarros, pontadas e febres malignas, das quais morreu muita gente por toda capitania”. O contagio teria se alastrado para o Recife, perdurando por mais um ano, fazendo grande número de vitimas principalmente entre os Holandeses5·. Já a ultima estiagem do século, ocasionou prejuízos principalmente aos rebanhos e as populações interioranas6, “tendo morrido à fome na capitania da Paraíba inúmeros escravos de ordens religiosas que não puderam adquirir viveres para sua manutenção” 7. Os relatos sobre as faltas de chuvas ao longo dos seiscentos são escassos e pontuais, impossibilitando uma análise mais profunda sobre as mesmas. Foi só no século seguinte que os registros sobre estiagens se tornaram mais frequentes e completos, graças ao alargamento das fronteiras agrícolas e pecuárias, a partir da ocupação e fixação de contingentes populacionais em regiões interioranas, mais suscetíveis à instabilidade climática.

Tentativas de adentrar os interiores continentais já haviam sido realizadas desde o século XVI, sem avançarem muito em direção ao oeste. Foi só a partir da segunda metade dos seiscentos, com a restauração das capitanias do norte pela jurisdição portuguesa que o interesse na região foi se tornando mais forte8. A justificativa para a expansão estaria, segundo Puntoni, nas dificuldades da situação econômica da colônia após a expulsão dos holandeses em 1654, com fatores internos que penalizaram as atividades produtivas, como epidemias, secas, e, principalmente, fatores externos, como a concorrência interimperial, a partir do crescimento da produção antilhana, e a inflação dos preços dos escravos9. Assim, a Coroa buscava alternativas para repor os prejuízos no trato colonial, e ao lado do esforço da recuperação da economia açucareira, a empresa colonial voltou-se para a expansão territorial em direção ao interior da América portuguesa. O processo de ocupação das regiões mais interioranas foi, então, dinamizado pelo incremento do povoamento e diversificação das atividades produtivas.

A divisão entre o cultivo da cana e a pecuária resultava do sistema da economia colonial, onde “as terras aproveitáveis, tanto pela sua qualidade como localização ao alcance do comércio exterior, foram avidamente ocupadas, não sobrando espaço para outras indústrias” 10. Desta forma, a pecuária foi empurrada para longe dos núcleos litorâneos, com o propósito de resguardar a terra cultivável para a cana. Com o mesmo objetivo, a Coroa proibia a criação de gado a menos de dez léguas da costa em 170111. Longe dos canaviais, os currais foram seguindo os cursos dos rios, uma vez que o clima da região não favorecia travessias que se afastassem dos caminhos fluviais, partindo dos dois mais importantes núcleos urbanos da zona da canavieira: Salvador e Olinda12.

Ao longo da segunda metade do Século XVII, a pecuária foi tomando paulatinamente as áreas interioranas, se defrontando com a resistência daqueles povos que chamavam de índios bravios. Foi um processo longo e pouco unificado, com diversas frentes e várias guerras estourando mais ou menos ao mesmo tempo, em conflitos referidos pela Coroa com o nome genérico de “guerra dos bárbaros” 13. Em finais do século XVII, o sertão já se encontrava totalmente devassado e explorado, “ainda que esparsamente ocupado por uma rala população” 14. Nos primeiros decênios do século XVIII o norte da colônia já estava ponteado de fazendas de gado, onde, segundo descrição de Antonil, o sertão pernambucano totalizava oitocentos currais15.

Em 1712, o capitão-mor da Paraíba, João da Maia da Gama, escrevia ao Rei para informar da estiagem que atingia a capitania há quase dois anos. Iniciada em 1710, a seca teria, já no ano seguinte, levado a morte “muitos milhares de gado nesta capitania, pois houve fazenda de 3 mil cabeças que não ficou mais de 600”. A seca parece não ter se restringido às regiões mais interioranas, alcançando os canaviais que “arderam e as plantas secaram”, sendo, segundo Maia da Gama, a razão e causa de não terem havido lances no contrato do açúcar, que ficou “andando meses na Praça” 16. Apesar dos problemas apontados pela autoridade local, a falta de chuvas destes anos parece não ter tardado a chegar ao fim, se restringido à Paraíba, uma vez que não encontramos menções para além da supracitada em Pernambuco, ou em outras anexas.

Alguns anos mais tarde, a falta de chuvas voltou a assolar a região, e “no cursos dos sucessivos anos de 1722 e 1723 padeceram todas as províncias do Brasil de uma geral e rigorosa secca”. De forma diversa da sua precedente, a estiagem atingiu quase toda a extensão das capitanias do Norte, onde, segundo Rocha Pita,

abrasava o sol com excessivo ardor a toda nossa América, secando as aguas, estragando os fruto, esterilizando as lavouras e matando os gados, de forma que além da falta de todos os víveres era maior a da farinha de mandioca, que é o pão comum dos moradores desse Estado17

Nesse mesmo período, João de Abreu Castel Branco, então Capitão-mor da Paraíba, relatou a difícil situação da capitania com a seca, carestia e falta de víveres, “de sorte que a maior parte dos moradores se tem sustentado de raízes do mato impróprio para o alimento e por esta causa tem perecido grande numero de pessoas, e particularmente escravos” 18. A morte por ingestão de alimentos inadequados para o consumo, como carnes em estado de putrefação e raízes venenosas não são incomuns em relatos de período de secas, uma vez que a escassez de alimentos, e os preços exorbitantes dos poucos que restavam, cobravam reações insanas na garantia de sobrevivência. Diante da exacerbada morte de escravos, “desamparando os seus donos na impossibilidade de os sustentar”, senhores de engenhos e lavradores solicitavam ao Rei a introdução de algumas embarcações de escravos na capitania, para que pudessem “restabelecer os engenhos e partidos”. E solicitavam que o pagamento pelos cativos fosse realizado ao fim de quadro ou cinco anos, tempo julgado necessário para que os plantios se recuperassem da seca19.

Com a continuidade da seca, a tensão provocada pela escassez também se refletiu no crescimento da criminalidade. A este respeito, Castel Branco alertava sobre “o estrago que faziam os continuados furtos que encaminhava a uma desordem e perdição geral”, onde “nas Capitanias vizinhas de Goiana e Pernambuco se faziam já repetidas mortes por este respeito e nesta começavam já a roubar com armas”. Os principais alvos dos roubos eram os currais e as plantações de mandioca, que muitas vezes eram arrancadas precocemente pelos ladrões, destruindo as covas que haviam sobrevivido ao mau tempo. Visando reduzir os furtos, e ponderando que destes roubos podia resultar o “extermínio da semente da mandioca que é o pão da terra”, o capitão-mor solicitava, então, enrijecer as penas contra esse delito para além do que “permite a jurisdição”, determinando “poder executar até a pena de arcabuzar na forma do castigo militar”. Além dessa medida, mudas de mandioca foram providenciadas a fim de que com a melhora do tempo se pudesse plantar um roçado perto da cidade, para que dentro de seis meses o gênero pudesse “abundar para todos”20.

Pouco tempo depois da seca ter tido fim, uma nova calamidade veio a afligir a região. Dessa vez não era a falta de chuvas, mas o excesso delas que causava estragos nas plantações. Como já vimos na discussão sobre a climatologia da região, da mesma forma que podem ocorrer longos períodos de escassez de chuvas, também pode acontecer de chover o esperado para meses em apenas um dia, ou semanas. A este respeito, Inácio Accioli de Cerqueira e Silva registrou em suas Memórias históricas e políticas da província da Bahia,

a irregularidade da estação do ano de 1728, e alguns anteriores, durante os quais a seca foi bastante prejudicial, sucedeu o extraordinário inverno, que ocasionou consideráveis danos à cultura do açúcar, sendo tal a inundação que chegou a demolir alguns engenhos, com perda de escravos e gados21.

O excesso de chuvas desse ano e as suas consequentes inundações, não ficaram restritas à Bahia, atingindo também Pernambuco e anexas em um cenário de grande devastação. Em requerimento de setembro de 1731, Manuel da Silva Lima, morador da vila de São José do Ribamar, no Ceará, informava da “tão grande e extraordinária” inundação, que não havia se limitado apenas aos vales, áreas mais baixas da região, mas que tinha “chegando a cobrir partes mais altas, levando muitas casas e a maior parte dos mantimentos que estavam nos campos”, além de afogar bois e cavalos que andavam pela Ribeira do Jaguaribe22.

Na Paraíba o cenário não parece ter sido muito distinto, onde, em 1729, Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, então capitão-mor, solicitou em nome de senhores de engenhos e lavradores, que esses não fossem executados em suas fábricas pelas dívidas que possuíam devido ao difícil estado em que se encontravam. A justificativa dos solicitantes era a forte cheia, alegando que:

Sucedendo haver repetidas chuvas nos sertões mais distantes e veio uma cheia tão repentina e extraordinária que inundou as vargens desta Capitania, destruiu engenhos, matou gados e bestas e levou a maior parte das caixas dos moradores dela. Homens e mulheres se viram por muitos dias subidos em árvores para poderem escapar da morte esperando que o Rio lhes desse lugar a poderem baixar delas, e não foi poderosa a caridade e diligência dos homens para que deixassem de morrer varias pessoas afogadas. Havendo engenhos que ficaram totalmente arruinados, [...] ficando nenhum gênero de lavouras de roças e legumes de que estes homens se pudessem e assevero a Vossa Majestade que se faz esta perda digna da maior compunção, além da pobreza em que continuadas secas tem posto estes moradores23.

A década de 1730 parece ter seguido o mesmo caminho da anterior, com o registro de um ano seco em 173624 e de chuvas excessivas após o evento. Nesse sentindo, Pedro de Monteiro de Macedo informava a Coroa a respeito do “grande castigo” de que padece esta capitania “com a seca de sete anos e com a inundação de dois anos, tudo sucessivo”. A alternância dessas adversidades climáticas teria causado inúmeros prejuízos, fazendo “perecer de fome quase todos os negros”, e com a carestia dos gêneros de subsistência, “exaurir de cabedais os mais ricos para o alimento de suas famílias” 25.

Os discursos acima foram produzidos com o nítido objetivo de delimitar um quadro de miséria e desespero, visando principalmente o abrandamento de dívidas com o Estado português. Possíveis exageros à parte, essas narrativas, tanto sobre as crises motivadas por secas, como por cheias, pontuam cenários de escassez de víveres e destruição de plantações, mostrando o forte impacto da periódica instabilidade climática sobre toda a região.

As três décadas seguintes foram de certa tranquilidade no que diz respeito a crises climáticas, com o registro de duas secas pontuais, em 1743 e 1754. Segundo Studart, o Ceará teria sofrido com uma seca “desde meio do ano de 43”, ocasionando a mortes de algumas cabeças de gado que seus moradores criavam no sertão. A respeito desse ano de chuvas escassas, a Câmara da Vila do Aracati informava que escravos se aproveitaram do momento para fugir de seus senhores, “refugiando-se a quaisquer Aldeias e Missões” 26. As fugas possivelmente teriam sido ocasionadas pela fome causada pela falta de víveres de primeira necessidade, inerente a períodos secos na região, uma vez que é de se esperar que em momentos como esse os senhores optassem por direcionar os gêneros para seus familiares, além de comprar menos víveres devido à carestia, limitando ainda mais a alimentação da escravaria. Para além desse registro, em 1754 o Governador de Pernambuco se queixava de uma seca que havia se abatido naquela capitania, interferindo na produtividade das minas dos Cariris Novos27.

Depois de pouco mais de vinte anos sem a ocorrência de estiagens, em 1775, José Cesár de Meneses, governador de Pernambuco, relatava que na capitania já “se começa a experimentar seca, e com maior excesso no sertão”, onde já teria causado a morte de várias reses. A estiagem teria se estendido também para a ilha de Fernando de Noronha, onde, segundo César de Meneses, já faltavam as chuvas há quase um ano, ocasionando “grande mortandade de gados, e algumas doenças”28. A ausência de frutas frescas e de uma alimentação rica em nutrientes provocou uma verdadeira epidemia de Mal de Luanda, escorbuto, na ilha, “de que já tinham falecido doze, inclusos neste numero quatro soldados” 29. A falta de chuvas em Fernando de Noronha foi particularmente difícil, uma vez que o seu isolamento e a ausência de fontes de água doce a colocava em uma posição ainda mais delicada e vulnerável. Sobre isto, o comandante de sumaca recém-saída da ilha informava

que naquela ilha tem havido rigorosa seca, que tem morrido muito gado; que as cacimbas se acham secas; e que se o senhor os não socorrer com alguma chuva morrerão todos [...] e que fica socorrido de mantimento até quinze de setembro do corrente ano30.

Para além do sertão e da Ilha de Fernando de Noronha, a falta de chuvas também alcançou a zona da mata e os canaviais, onde, Segundo Felipe Melo, o fenômeno teria de fato motivado uma baixa na produção açucareira em 177731. Neste mesmo ano, a Mesa da Inspeção de Pernambuco, informava a respeito da diminuta “colheita de açúcares”, que não chegava à metade dos anos comuns, motivada pela “grande falta de águas do ano próximo passado, nos meses competentes”. Tal informação nos leva a crer que a estiagem teria ocorrido justamente na quadra chuvosa da região, entre os meses de fevereiro e maio, período considerado de extrema importância para o cultivo de qualquer gênero, uma vez que a ocorrência de chuvas é ainda mais incerta nos demais meses. Diante da pequena colheita, e visando compensar os prejuízos, a Mesa de Inspeção solicitava, então, que cada arroba de açúcar fosse acrescido em duzentos réis. O pedido, entretanto, foi imediatamente barrado pela Diretoria da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba32. A situação nos canaviais só teve melhora no ano posterior, quando, segundo o governador, graças ao tempo favorável os engenhos estavam moendo, e prometia “este ano haver uma boa safra” 33.

Anos depois, como já era costumeiro, não foi a seca, mas o excesso de chuvas que causou prejuízos aos agricultores e moradores da região. A respeito desse episódio, Dom Tomás José de Melo relatou que os donos de partidos e senhores de engenho da Paraíba se encontravam “reduzidos à ultima miséria pela violenta e inesperada cheia” que se deu entre os anos de 1789 e 1790. A calamidade teria feito a produção do açúcar cair de 527 caixas para apenas 89, no ano posterior à inundação, com uma rápida recuperação já na safra de 1791, que teria rendido 502 caixa34. Nesse mesmo momento, o excesso de chuvas, e a consequente cheia, teriam desencadeado problemas relacionados à saúde da população no Ceará.

Segundo Ana Carolina Viotti, em finais dos setecentos já se tinha conhecimento da estreita ligação entre o clima e as doenças, e o ambiente já era relacionado como “causador do mal”, responsável por diversas moléstias, como febres intermitentes e remitentes, e disenterias35. Em 1791, João Lopes Cardozo Machado, comissário e Juiz delegado de medicina foi enviado para socorrer o sertão cearense, onde “em todos os invernos padeceram sempre febres intermitentes”, que atacavam principalmente os “desacautelados e indigentes”. Entretanto, depois das “grandes águas de 1789”, estas febres se tornaram mais comuns, tendo sua principal causa nos “muitos corpos de animais mortos arrastados por aquelas cheias”36. A situação teria se agravado pela fome e pela procura por “alimentos nocivos”, uma vez que segundo Machado além do tratamento com remédios, a dieta com bons alimentos era “uma das condições necessárias para a felicidade na cura”, e a pobreza e a falta de carne fresca tornavam a enfermidade incurável. Nesse momento, o número de mortos já havia chegado a quatrocentos e oitenta, apenas na Freguesia de Sobral37.

Não encontramos mais informações sobre a epidemia para além das supracitadas, desta forma não sabemos como teria ocorrido a sua possível recuperação. Entretanto, não tardou para que essa população voltasse a sofrer com as consequências da falta de estabilidade do clima da região, e apenas dois anos depois das cheias uma seca generalizada alcançou toda a faixa territorial que ia de Pernambuco ao Ceará.

Em suas andanças pelos sertões das capitanias do Norte em finais dos setecentos, o padre Joaquim José Pereira observou que as secas atingiam “aquelles povos de dez em dez annos”, de modo que estavam “sempre no estado de principiarem”. Acompanhando o fenômeno da estiagem de perto, bem como as suas consequências para a população local, a seca que teve principio em 1791 foi alvo de sua particular atenção. Segundo Pereira, no ano de 1791 teriam ocorrido chuvas limitadas e irregulares, de forma que “plantagens e sementeiras não produziram todas”, com uma safra muito reduzida de gêneros. Já no ano seguinte, teria sucedido uma rigorosa seca, assolando todo o sertão do Apody e toda a capitania de Pernambuco, onde “acabaram todos os víveres e morreram os gados, e a mesma gente que os habitavam perderam as vidas”. A seca andava de mãos dadas com a fome e com a morte, e impelia levas de pessoas a deixarem seus lares em busca de sobrevivência:

Quaes outras formigas errantes do seus formigueiros pareciam as família d’quelle sertão, procurando o sustento a aventura, cruzando os caminhos e nelle encontrado-se umas com as outras. Pelas estradas se viam os mortos, uns aqui outros acolá, que pareciam querer despovoar os termos e capitanias de seus domicílios38.

Já em 1793 a Câmara de Montemor-o-novo, no Ceará, informava sobre o lastimável estado em que se encontravam graças a “mais vigorosa e longa seca”, cujos efeitos imediatos haviam sido a falta de pasto e água para o sustento dos animais, o que num curto prazo teria ocasionado uma “geral mortandade de gado vacum e cavalar nas fazendas”. A pequena produção de alimentos pela falta de água fez surgir a carestia, subindo o valor da farinha de mandioca, e “não havendo já espécie alguma de legumes ou víveres da Europa que não subisse 200 ou 300 por cento mais do que seu valor preterido” 39. A contínua despesa gerada pela compra de víveres a altos preços aproximava abastados e pobres, “confundidos na miséria”, onde “os primeiros desapropriaram seus melhores móveis e os últimos descansavam eternamente” 40.

A fome causada pela estiagem impunha a muitos uma morte na mingua, e na dieta do desespero qualquer coisa servia como comida. Segundo Joffily, os três anos da “grande seca” na Paraíba teriam sido marcados por inúmeras doenças e mortes causadas pela ingestão de alimentos impróprios, como “macuná, xique-xique, potó e por muitas outras plantas silvestres de que usavam os famintos” 41. A dieta com poucos nutrientes abria espaço para doenças e podia desencadear problemas ainda mais profundos e duradouros sobre as populações. A este respeito, Le Roy Ladurie apontou mudanças relacionadas à fecundidade das mulheres, com a ocorrência de amenorreias pela fome durante as crises alimentares europeias dos séculos XVII e XVIII42. Não podemos excluir a hipótese de que tal fenômeno também possa ter ocorrido durante as crises alimentares nas capitanias do Norte.

Simultaneamente aos relatos de generalizada estiagem, a Câmara de Assunção ao mesmo tempo em que se queixava da “grande seca que houve naquela Vila”, se lastimava também da ruina que “lhe causou a grande inundação de águas” no ano de 1793 43. A grande cheia do Rio São Francisco teria derrubado o prédio da câmara e outras casas da mesma vila. Como ainda não haviam se recuperado da seca, os homens da câmara queixavam-se de não terem renda suficiente para levantar o prédio derrubado pelas águas. Eles alegavam que o gado estava escasso por causa da seca, e que as ilhas que a câmara possuía no mesmo rio, arrendadas ao povo para as despesas do senado, “ficaram extintas de seu valor pela inundação da dita água, e por este modo sem alguma capacidade de ser povoada” 44. Não temos como saber com exatidão a causa da cheia do Rio São Francisco em pleno ano de seca, mas pelo histórico de mudanças climáticas repentinas da região, é possível supor que a mesma tenha se dado pela ocorrência de chuvas intensas durante um curto período de tempo.

Apesar da referida cheia no São Francisco, longe da sua ribeira a estiagem também continuou a causar estragos. Cinco anos após a falta de chuvas ter tido fim, o govenador da Paraíba, vendo o “miserável estado e total ruína a que ela vai caminhando”, e ao indagar respeito da causa primeira da sua decadência, chegou a conclusão de que havia sido a “grande seca que houve em 1791, 92 e 93”, por ter extinguido a maior parte das “forças que se encaminhavam para o seu aumento”45. Pouco tempo depois, em 1802, um semelhante flagelo já voltava açoitar a região46.

As intempéries climáticas foram uma constante na história das capitanias de Pernambuco e suas anexas, onde períodos de tempos favoráveis alternaram-se incessantemente com anos de secas e episódio de chuvas excessivas ao longo de séculos. De maneira que esses fenômenos, definitivamente, atuaram como elementos perturbadores e desorganizadores da estrutura produtiva, trazendo inúmeros prejuízos. Onde cada crise climática teve suas especificidades, aliada a fatores que poderiam contribuir para aprofunda-las ou ameniza-las.

 


** Mestranda em História Econômica. Agência financiadora: FAPESP.

1 Livro: Fernão Cardim. Tratado da terra e gente do Brasil. São Paulo: Companhia EditoraNacional/MEC, 1978, p. 199.

2 Livro: Gabriel Soares de Souza. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000, p. 192.

3 Livro: Gabriel Soares de Souza. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000, p. 192.

4 Livro: Joaquim Alves . História das secas. Mossoró: Fundação Guimarães Duque/ ESAM, 1982, p. 24.

5 Livro: Francisco Augusto Pereira da Costa. Anais Pernambucanos. v. 1. Recife: Secretaria do Interior e Justiça, 1951-1966, p. 503.

6 Livro: Irenêo Joffily. Notas sobre a Parahyba. Brasília, Thesourus, s/d, p. 90.

7 Livro: Joaquim Alves . História das secas. Mossoró: Fundação Guimarães Duque/ ESAM, 1982, p. 28.

8 Livro: Kalina Vanderlei Silva . Nas Solidões Vastas e Assustadoras: A conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: CEPE, p.136.

9 Livro: Pedro Puntoni. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Editora Hucitec, 2002, p. 25

10 Livro: Caio Prado Jr.. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 197.

11 Livro: Luís Mott. Piauí Colonial: População, Economia e Sociedade. Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985, p. 72.

12 Livro: Kalina Vanderlei Silva . Nas Solidões Vastas e Assustadoras: A conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: CEPE, p.136

13 Idem

14 Livro: Pedro Puntoni. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Editora Hucitec, 2002, p. 36.

15 Livro: André João Antonil. Cultura e opulência do Brasil. Lisboa, 1711, p. 184.

16 AHU - Avulsos da Paraíba , D. 329 . Paraíba, 27 de maio de 1712.Carta do Capitão- mor da Paraíba, João da Maia da Gama, ao rei, D. João V, sobre os prejuízos com a seca de 1710 a 1712.

17 Livro: Sebastião da Rocha Pita. História da América Portugueza. Bahia: Imprensa Econômica, 1878, p 436

18 AHU – Avulsos da Paraíba, D. 416. Paraíba, 24 de junho de 1724. Carta do Capitão-mor da Paraíba, João de Abreu Castel Branco, ao rei , D. João V, sobre a difícil situação da capitania, em consequência da seca e o lançamento de um bando para punir vadios e ladrões.

19 AHU - Avulsos da Paraíba, D. 452. Paraíba, 21 de julho de 1725. Carta do Capitão-mor da Paraíba, João de Abreu Castel Brando, ao rei, D. João V, sobre as dificuldades com a calamidade da seca e morte de mais da metade dos escravos.

20 AHU – Avulsos da Paraíba, D. 416. Paraíba, 24 de junho de 1724. Carta do Capitão-mor da Paraíba, João de Abreu Castel Branco, ao rei , D. João V, sobre a difícil situação da capitania, em consequência da seca e o lançamento de um bando para punir vadios e ladrões.

21 Livro: Ignacio Accioli de Cerqueira Silva. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Salvador: Typ. Do Correio Mercantil, 1835, p. 163.

22 AHU- Avulsos do Ceará, D. 124. Ceará, 06 de setembro de 1731. Requerimento de Manuel da Silva Lima e Jerônimo da Fonseca, moradores na vila de São José do Ribamar , ao rei, D. João V, a pedir sejam perdoados parte dos dízimos que arremataram por causa de uma violenta cheia que matou o gado.

23 AHU - Avulsos da Paraíba, D. 606. Paraíba, 19 de outubro de 1729. Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. João V, sobre a carta do capitão-mor da Paraíba, Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, informando da cheia que houve na Capitania, destruindo engenhos e lavradores, em que solicitam para não serem executadas em suas fábricas as dívidas que possuem.

24 AHU – Avulsos da Paraíba, D. 796. Paraíba, 13 de abril de 1736. Carta do capitão-mor da Paraíba, Pedro Monteiro de Macedo, ao rei D. João V, sobre o empréstimo que recebeu da Coroa de quatrocentos e oitenta mil réis, para a capitania e a dificuldade em honrar o compromisso, devido à falta de moedas de ouro, por não ser essa cidade terra de negócio, e em razão da grande seca, não virem mineiros comprar cavalos.

25 AHU – Avulsos da Paraíba, D. 830. Paraíba, 14 de janeiro de 1738. Carta do capitão-mor da paraiba, Pedro monteiro de Macedo, ao rei, D. João V, sobre as dificuldades com uma seca, uma inundação e a falta de pagamento.

26 AHU – Avulsos do Ceará, D 325. Aracati, 18 de dezembro de 1748. Carta da câmara da vila do Aracati ao rei D. João V, sobre a seca que desde o ano de 1743 tem assolado a Capitania do Ceará e a falta de escravos, que se refugiam nas missões.

27 AHU- Avulsos de Pernambuco, D. 6306. Recife, 14 de janeiro de 1754. Ofício do Governador da capitania de Pernambuco, Luis José Correia de Sá, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça Corte Real, sobre a seca que se abateu naquela capitania

28 AHU - Avulsos de Pernambuco, D. 9081. Recife, 4 de abril de 1775. Ofício do governador da capitania de Pernambuco, José César de Meneses, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre a seca que assola a dita capitania, principalmente o sertão, chegando até a ilha de Fernando de Noronha.

29 AHU - Avulsos de Pernambuco, D. 9308. Recife , 6 de março de 1776. Ofício do governador da capitania de Pernambuco, José César de Menezes, ao Secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre o destacamento enviado para a ilha de Fernando de Noronha e os desertores e soldados presos por desordens e crimes também enviados à mesma; informando também da seca que continua assolar a região e do falecimento de várias pessoas com o mal de Luanda e bexigas.

30 AHU- Avulsos de Pernambuco, D. 10163. Recife, 7 de maio de 1780.Oficio do governador da capitania de Pernambuco, José César de Meneses, aos secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre o envio de presos e mantimentos para o presídio de Fernando de Noronha, e informando acerca da rigorosa seca e elevada mortandade de gado naquela ilhas, e que há madeira no porto de Jaraguá pronta para ser embarcada para o Reino.

31 Dissertação: Felipe Souza Melo. O negócio de Pernambuco: financiamento, comércio e transporte na segunda metade do século XVIII. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP/FFLCH/PPGHE, 2017, p. 31 - 32.

32 AHU- Avulsos de Pernambuco, D. 9574. Recife, 6 de março de 1777. Oficio da Mesa da Inspeção da capitania de Pernambuco ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre se acrescentar 200 réis em cada arroba de açúcar, para acrescentar o referido gênero, por causa da diminuta colheita do dito ano.

33 AHU - Avulsos de Pernambuco, D. 9889. Recife, 17 de outubro de 1778. Ofício do governador da capitania de Pernambuco, José César de Meneses, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de melo e Castro, sobre uma boa safra de açúcar no ano de 1778, devido ao tempo favorável, mas que a seca assola o sertão provocando a morte do gado.

34 AHU- Avulsos de Pernambuco, D. 12437. Recife, 16 de agosto de 1791, agosto, 16, Recife. Carta do governado da capitania de Pernambuco, D. Tomás José de Melo à Rainha D. Maria, Informando a representação dos oficiais da Câmara da Paraíba sobre os prejuízos causados pelas enchentes e os benefícios que pedem o senhores dos engenhos, donos de partidos e lavradores de cana.

35 Dissertação: Ana Carolina Viotti. As práticas e os saberes médicos no Brasil Colonial (1677-1808). Dissertação de Mestrado. Franca: Unesp/ FCS/ PPGH, 2012, p. 54-55.

36 AHU – Avulsos de Pernambuco, D. 12587. Recife, 25 de maio de 1792. Ofício do governador da capitania de Pernambuco D. Tomás José de Melo, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, remetendo os documentos referentes a epidemia na capitania do Ceará.

37 Biblioteca Nacional – Manuscritos, cmc_ms618_10_23.

Correspondências oficias do governador de Pernambuco e de membros do governo interino referentes à administração da mesma capitania. Recife, Pernambuco,1790-1799.

38 Livro: Joaquim José Pereira. Memória. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LXII, p. 179.

39 AHU – Avulsos (BG), D. 2345. Lisboa , 25 de janeiro de 1794. Consulta do Conselho Ultramarino à rainha (D. Maria) sobre a carta do juiz e mais oficiais da Câmara da Vila de Montemor-o-novo, da capitania de Pernambuco acerca do estado miserável que se acham reduzidos os moradores daquele continente, por causa da seca que assola a região desde 1791, os sucessivos roubos dos malfeitores e as execuções que fazem os credores.

40 AHU – Avulsos (BG), D. 2345. Lisboa, 25 de janeiro de 1794. Consulta do Conselho Ultramarino à rainha (D. Maria) sobre a carta do juiz e mais oficiais da Câmara da Vila de Montemor-o-novo, da capitania de Pernambuco acerca do estado miserável que se acham reduzidos os moradores daquele continente, por causa da seca que assola a região desde 1791, os sucessivos roubos dos malfeitores e as execuções que fazem os credores.

41 Livro: Irenêo Joffily. Notas sobre a Parahyba. Brasília, Thesourus, s/d, p. 433.

42 Livro: Emmanuel Le Roy Ladurie. História dos Camponeses Franceses. Da peste negra à revolução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 86-87.

43 AHU – Avulsos de Pernambuco, D. 12682. Lisboa, 08 de fevereiro de 1793. Aviso do Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, ao governador da capitania de Pernambuco, D. Tomás José de Melo, ordenando que sejam averiguados os rendimentos da Câmara Real da Vila de Assunção e se verifique os custos da reedificação da mesma vila devido a inundação lá ocorrida.

44 AHU – Avulsos de Pernambuco, D. 12897. Recife, 14 de junho de 1994. Ofício do governador da capitania de Pernambuco, D. Tomás José de Melo, ao Secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, remetendo parecer sobre a carta enviada pela câmara da Vila de Assunção, referente a ruína que as inundações causaram na dita vila.

45 AHU- Avulsos da Paraíba, D. 2428. Paraíba, 01 de agosto de 1798. Ofício do Governador da Paraíba, Fernando Delgado Freire de Castilho, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Rodrigo de Sousa Coutinho, informando as consequências das secas de 1791- 93, que arrasam as plantações e mataram gados e escravos; e queixando-se de Pernambuco sufocar o comércio da Paraíba.

46 AHU - Avulsos da Paraíba, D. 2801.Paraíba, 28 de fevereiro de 1803. Oficio do governador da Paraíba, Luis da Mota Fêo, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Visconde de Anadia, informando do plano adotado para socorrer as necessidades públicas fome e carestia, em consequência das secas dos anos de 1791, 1792, 1793.