O rendimento do trabalho escravo na economia cacaueira: o caso de Argemiro em Ilhéus-Ba (1876-1882)

 

Marcelo Loyola de Andrade1 (PPGHE/USP)

 

Introdução.

A história do sul da Bahia, particularmente a história de Ilhéus, um dos principais municípios produtores de cacau do Brasil, ainda é muito influenciada pela literatura que privilegiou a ação dos coronéis e o mandonismo como foco das análises, sobretudo na fase de esplendor da lavoura cacaueira, ou seja, na Primeira República e no decorrer do século XX.2

Mesmo com o avanço dos estudos históricos sobre o período escravista, ainda persiste na memória coletiva e no imaginário social dos moradores dessa região a ideia de que a escravidão não teve lugar na formação socioeconômica do sul da Bahia, ou quando teve foi de forma residual, causando pouco ou nenhum impacto nas relações sociais que se desenvolveram nesta parte da província.3

A historiadora Mary Ann Mahony já sustentou que essa visão constitui um mito histórico criado pelas elites regionais na luta contra seus inimigos imaginários.4 Com efeito, uma parte da história de Ilhéus foi contratada por membros da elite política local, que a utilizaram como arma para defender seus interesses, ressaltando o protagonismo de seus grupos.

Nas últimas décadas o crescimento dos cursos de pós-graduação no país ensejou o avanço das pesquisas, com contribuições consideráveis para a revisão desses e de outros mitos construídos na História do Brasil. A participação dos grupos menos favorecidos economicamente, sobretudo indígenas e africanos, tanto na sociedade quanto nas diversas atividades econômicas, dentre outros lugares, ganhou destaque na lente dos historiadores e outros cientistas, que buscaram resgatar o protagonismo e a contribuição dessas populações, bem como as diversas formas de escravização que foram submetidas.5

Esse artigo, que integra uma pesquisa mais ampla sobre escravidão na economia cacaueira de Ilhéus (1850-1888), pretende contribuir com os novos estudos que buscam mostrar a importância do trabalho escravo nesse contexto, bem como as suas consequência para sociedade que se estruturou em torno da produção e comercialização do cacau, fruto cuja semente serve de matéria prima para fabricação do chocolate, produto consumido durante o século XIX especialmente na Europa e nos Estados Unidos.

Trata-se de um estudo sobre a rentabilidade da mão de obra escrava. A fonte principal é um auto de contas apresentado no inventário post mortem de um produtor de cacau, em que o curador geral dos órfãos descreve o rendimento do escravo Argemiro, que ficou sob seus cuidados no período em que o herdeiro do patrimônio estava ausente. Pretendemos avaliar a importância do trabalho escravo em Ilhéus no período 1876-1882, calculando o impacto econômico da escravidão na vida do escravista e da pessoa escravizada.


 

O trabalho escravo de Argemiro. Ilhéus, 1876


 

No ano de 1876 Argemiro trabalhava como escravo na Fazenda Pimenta, localizada em Ilhéus, sul da Bahia, com produção de cacau, farinha, coco e outras atividades. Em setembro deste ano foi aberto o inventário da proprietária, a viúva Dona Ana Maria Velozo, que na época detinha um patrimônio calculado no valor de Rs. 3:833$400 (três contos, oitocentos e trinta e três mil, quatrocentos réis).6

A sua fortuna revela que ela não estava entre as pessoas mais ricas de Ilhéus, mas seu patrimônio não era nada desprezível, 25% dos inventariados analisados encontravam-se mais ou menos nessa condição, na categoria dos classificados com fortunas médias, ou seja, que tinha riqueza entre 2:100 e 10:000, conforme estudo de Kátia M. de Queirós Mattoso sobre Salvador no século XIX.7

Olhando de perto para a riqueza dos inventariados de Ilhéus notamos que Ana Maria Veloso fazia parte de um grupo maior de pessoas, das mais diversas condições sociais, que durante o século XIX passaram a investir na produção e/ou comercialização de cacau, com o objetivo de se manter, ou aumentar a riqueza.

Esse processo se intensificou a partir de 1850 e o trabalho escravo foi utilizado em praticamente todas atividades econômicas, impulsionadas pelo desenvolvimento do cultivo do cacau. No interior da província, secas e epidemias prolongadas assolavam parcela expressiva da população, resultando em fome, carestia de alimentos e protestos populares, especialmente em Salvador, capital da província.8

A comarca de Ilhéus apresentava-se nessa época como uma região rica em água doce, madeiras e solos férteis ainda pouco explorados do ponto de vista da agricultura comercial. As condições naturais favoráveis ao cultivo de cacau e café, produtos valorizados no mercado externo, atraiu para a região diversos segmentos da população baiana e o governo provincial estimulou a formação das colônias nacionais e estrangeiras, além da abertura de estradas.9 A introdução da navegação a vapor tornou mais rápido e eficiente o transporte de pessoas e mercadorias, contribuindo para intensificar o povoamento e escoamento da produção.

Nesse contexto o trabalho escravo foi disseminado e alguns cativos aproveitaram a condição favorável para se libertar, comprando a alforria. Outros, no entanto, não tiveram a mesma sorte e permaneceram por anos a fio na escravidão, podendo ser vendidos, doados, trocados ou arrematados em praça pública para pagamento de dívidas. Essa realidade atingiu muitas famílias escravizadas em Ilhéus e em outras partes da Bahia e do Brasil.

Em 1872 a população de Ilhéus conformava o total de 5.682 habitantes, dos quais 1.051 (18%) eram escravos.10 Numa amostra de 345 inventários post mortem de antigos moradores da comarca, distribuídos entre 1850-1888, constatamos que 63% estava diretamente envolvido com plantações de cacau, e encontramos a presença de escravos em 121 casos (36%).

Os donos do Engenho Castelo Novo eram os mais afortunados, possuíam, além dos móveis do engenho, terras, plantação de cacau e 54 escravos, dentre outros bens, com fortuna calculada no valor de Rs. 89:797$030.11 O maior escravista possuía 73 escravos e estava diretamente envolvido com a produção de cacau, era o Tenente Coronel Egídio Luiz de Sá Bitencourt Câmara, dono de fazendas com plantação de cacau na Cachoeira de Itabuna e casa de morada na vila de Ilhéus, dentre outros bens. Sua fortuna foi calculada no valor de Rs.57: 889$448.12

Na Fazenda Pimenta, trabalhavam como escravo, além de Argemiro, cabra de 21 anos de idade, outras quatro pessoas, um homem e três mulheres, correspondendo os mesmos a 58% de todo patrimônio inventariado: Jonino, cabra, 25 anos, doente, (Rs.600$000); Antônia, africana com 58 anos de idade (Rs. 200$000), Paula, crioula, 63 anos, doente (Rs. 100$000); Izabel, cabra, 19 anos (Rs. 650$000).

O melhor avaliado foi Argemiro, na quantia de Rs. 1.000,000 (um conto de réis), equivalendo a 26% do espólio inventariado.13 A morte deste escravo significava redução de um quarto da riqueza, a perca de toda escravaria causaria prejuízo enorme. Isso revela o quanto os escravos eram importantes para proprietária da Fazenda Pimenta.

A riqueza de Ana Maria Velozo estava amparada sobretudo na posse de escravos. Possuir cativos nessa época ainda era um bom negócio, em Ilhéus e outras partes do Brasil. Ela não foge à regra, a historiografia é farta de exemplos como este e poderíamos citar aqui outros tantos casos, que corroboram a nossa hipótese de que a escravidão se disseminou em Ilhéus durante o crescimento do cultivo do cacau, e a exploração do trabalho escravo continuou como fator determinante para manutenção e aumento da riqueza até o limiar da abolição (1888).

Ana Maria Velozo, assim como outros escravistas que viviam em Ilhéus nessa época, consorciava o cultivo do cacau com a produção de gêneros de subsistência, especialmente farinha de mandioca. Os escravos garantiam a sua sobrevivência e a manutenção de sua riqueza.

A Fazenda Pimenta era dotada de casa de morada, casa de farinha e senzala. Entre os móveis de casa encontramos seis cadeiras; uma cômoda; um sofá e uma mesa, todos de madeira Jacarandá. Além disso a fazenda tinha plantação com 85 pés de cacau (Rs. 54$000); 20 pés de coqueiros (Rs.20$000); uma canoa, no valor de Rs. 15$000 e um tacho de cobre, avaliado em Rs. 45$000.14

Os escravos também podiam contar com o os serviços de dois bois de brocha, avaliados em Rs. 130$000, e um cavalo de cangalha por Rs.60$000. A rotina de trabalho desses escravos devia girar em torno dos afazeres domésticos, do cuidado com as plantações, com a criação de animais, com a fabricação de farinha de mandioca, aguardente e melado. A vida da proprietária da fazenda dependia dos serviços dos escravos em quase todos aspectos, certamente eles faziam todo tipo de serviço, inclusive transportar e vender a produção. Nesses espaços deviam se articular e formar pecúlio.

Ao que parece a distância entre a vida de Ana Maria Velozo e a vida de seus escravos era pequena. A casa de farinha foi avaliada em Rs.350,000, o que permite inferir que na época estava bem equipada. As escravas Antônia, africana, 58 anos; Paula, cabra, 63 anos e Isabel, 19 anos, certamente desenvolveram habilidades diferentes e construíram distintas relações sociais e afetivas, com a proprietária, no interior da senzala, e para além das porteiras da fazenda.

Talvez fosse possível a alguns cativos produzir farinha de mandioca, beijus, tapiocas, bolos e outros derivados, colocando-os a venda na vila de Ilhéus. Podiam ter permissão para utilizar canoa e animais. Também podiam alugar seus serviços aos domingos e dias santos, pescar, caçar, tirar coco, madeira e vender os produtos no mercado interno.

O cotidiano de trabalho dos cativos devia extrapolar o território restrito da fazenda, a mobilidade era essencial para o desenvolvimento das atividades produtivas. Transportar o cacau, farinha e outros gêneros em canoas e nos carros de boi, buscar lenha na mata, comprar mantimentos na vila, ir na igreja e nos festejos populares, ou seja, esses espaços deviam constituir parte essencial da rotina dessas pessoas. Eram neles que os cativos conseguiam obter ganhos, desenvolver relações afetivas e participar da vida social.

Certos acontecimentos, no entanto, podiam abalar profundamente essa rotina e alterar a vida das pessoas escravizadas, foi o que aconteceu quando a proprietária da Fazenda Pimenta faleceu, em 05 de setembro de 1876. Ao que parece este fato provocou alterações radicais na vida dos cativos desta fazenda.

Durante a partilha e divisão dos bens as escravas Paula e Antônia, já idosas, apresentaram o valor que foram avaliadas e solicitaram a liberdade. Não sabemos como elas conseguiram o dinheiro, mas certamente envolveu anos de esforços e economias.

Os outros escravos não tiveram o mesmo destino. A inventariada tinha dívidas e alguns bens foram utilizados para pagamento dessas dívidas e das custas do processo. No final, após os descontos, cada um dos dois herdeiros ficou com a quantia de Rs. 1:482$246. (um conto, quatrocentos oitenta e dois mil, duzentos quarenta e seis réis)

Coube ao herdeiro Eduardo Leonel da Costa Souza, filho da falecida, a posse legal de Argemiro (Rs.1.000,000) e outros bens que completaram seu quinhão, mas na época ele não estava em Ilhéus, “[...] se acha ausente desde 1869 e que não se tem notícias desde 1872 [...]”15, por essa razão o juiz nomeou um curador para administrar os bens, no caso Manoel José de Santa Ana, que foi inventariante, cabeça do casal, já que sua esposa era sobrinha da falecida, única herdeira viva, além do filho ausente.

Desse modo, o curador que ficou responsável por administrar os bens do herdeiro ausente teve que prestar constas ao juiz do rendimento do escravo, que ficou sob seus cuidados e gerou renda no período 1876-1882.

É sobre este auto de contas que nos debruçamos para realizar os cálculos do trabalho escravo e tecer algumas considerações sobre o impacto da escravidão na vida do escravista e da pessoa escravizada.


 

Auto de Contas do trabalho escravo de Argemiro. Ilhéus, 1876-1882


 

Desde a abertura do inventário de Ana Maria Velozo, em 1876, até o ano de 1882, o curador Manoel José de Santa Ana prestou contas ao juiz do rendimento do trabalho escravo de Argemiro. Ao que parece essa prestação de contas ocorria a cada dois anos, pois foi em 1878 que o curador realizou a primeira, descrevendo o seguinte:


 

[...] a receita dos dias de serviços do escravo Argemiro, de vinte e três de outubro de mil oitocentos e setenta e seis à 23 do corrente, deduzidos os dias [ociosos] que o mesmo escravo não pode trabalhar, importa na quantia de trezentos e sessenta mil novecentos e sessenta réis, e que as terras pertencentes ao mesmo herdeiro, ditas na Fazenda Pimenta, não deram rendimento algum, ficando deduzido que foram excluídos os dias santificados.16


 

Neste auto de contas temos uma descrição mostrando que em aproximadamente dois anos, excetuados os dias que o escravo ficou sem trabalhar, mais os dias santificados, Argemiro gerou para o seu proprietário a quantia de Rs. 360$960, soma que representa algo em torno de um terço do valor que ele foi avaliado quando da abertura do inventário, em 1876 (Rs. 1:000$000).

Na outra prestação de contas, em 1880, o curador faz a seguinte descrição:


 

O dito escravo do dia vinte e quatro de outubro de mil oitocentos e setenta e oito até hoje trabalhou seiscentos e cinquenta e nove dias, a seiscentos e quarenta réis diário, livres de comedoria e vestiário, importando na quantia de quatrocentos e vinte e um mil, setecentos e sessenta réis, que nesse descenso houveram 190 dias santificados nos quais o escravo não trabalhou e trinta dias de doença conforme atestado que apresenta.17


 


 

Nesta prestação de contas conseguimos identificar o valor da diária que o curador acertou com Argemiro, Rs. $640, livre de comida e vestimentas. Não sabemos quais trabalhos foram realizados, pois a fonte não diz nada a respeito. Contudo, essa informação permite calcular o rendimento anual do trabalho escravo de Argemiro.

Conforme descrito no auto de contas o escravo não trabalhava domingos e dias santificados. Essas informações também aparecem na última prestação de contas, realizada no ano de 1882, quando o curador novamente prestou contas, e o juiz acatou:


 

Achou o juiz que o escravo Argemiro, naquele período trabalhou cinquenta e cinco dias, que a razão de seiscentos e quarenta réis diário, conforme foi arbitrado, soma a quantia de trinta e cinco mil e duzentos reis, por se excetuarem doze domingos e dias santos.

Achou que durante o ano de mil oitocentos e oitenta e um, o dito escravo trabalhou duzentos e noventa e nove dias, que a seiscentos e quarenta reis, soma cento e noventa e um mil trezentos e sessenta reis.

E finalmente que no primeiro de janeiro do corrente ano, ao último de abril, o mesmo escravo trabalhou 95 dias, que a seiscentos e quarenta réis o dia soma sessenta mil e oitocentos réis.18


 

A descrição resumida do último auto de contas revela que o juiz acatou as informações prestadas pelo curador. Para efeito de análise vamos selecionar o ano de 1881, quando o escravo Argemiro rendeu a quantia de Rs. 191$360. No cálculo o curador e o juiz levaram em conta 299 dias de trabalho, pois domingos e dias santos não foram computados, isto é, os 66 dias restantes para completar o ano (365 dias) eram do escravo.

Essa equação suscitou o interesse por calcular qual o tempo necessário para Argemiro, trabalhando como escravo, reembolsar o seu valor ao seu dono e qual o tempo necessário para ele comprar a alforria e se libertar do cativeiro. Nos próximos parágrafos dedicamos atenção a essas questões.


 

Tempo necessário para o escravista reembolsar o valor do escravo. Ilhéus, 1876-1882


 

O tempo que o herdeiro Eduardo Leonel da Costa Souza esteve ausente, e que suscitou a prestação de contas, se estende de 1876 até 1882, aproximadamente seis anos. Nesse intervalo, considerando as declarações do curador e o valor acertado entre as partes, percebemos que foi tempo suficiente para Argemiro reembolsar a quantia que ele foi avaliado ao seu ao proprietário.

Na primeira prestação de contas ele rendeu Rs. 360$960, na segunda Rs. 421$760 e na terceira, somando-se as três contas, temos Rs. 287$360. No computo geral, no intervalo de mais ou menos seis anos, Argemiro rendeu ao seu proprietário a quantia de Rs. 1:070$800, ou seja, um pouco a mais do que ele foi avaliado em 1876 (Rs. 1:000$000).

É oportuno lembrar que neste período o escravo ficou doente e sua idade aumentou. Sobre a primeira questão parece que houve negociação entre o escravo e o curador, pois não foram computados no cálculo os 30 dias em que o escravo esteve doente, porém o curador declarou que apresentou atestado ao juiz. Quanto ao segundo quesito, avanço da idade, parece que isso não influenciou no acerto de contas sobre o rendimento do trabalho escravo. Argemiro permaneceu dentro de uma faixa etária produtiva, entre 21 e 27 anos, tendo que pagar Rs.$640 por dia ao curador.

Não sabemos ao certo se esses fatores provocaram depreciação no preço de Argemiro, a nossa hipótese é que isso não aconteceu, mas o fato da doença ainda ser mencionada no início dos anos 1880 mostra que a situação de saúde do escravo pode ter se agravado. Mesmo assim isso não reduziu o preço da diária, que se manteve no valor de Rs. $640. Portanto, faz sentido pensar que não houve redução drástica da capacidade laborativa do escravo e seu preço continuo o mesmo no decorrer dos anos.

Ao que parece Argemiro permaneceu rendendo ao seu proprietário a quantia de Rs. 191$360 por ano. Se quisermos ser mais precisos nos cálculos podemos dividir o valor do cativo (Rs. 1:000$000) pelo seu rendimento anual (Rs. 191$360) e obter a quantidade exata de anos necessários para o dono de Argemiro reembolsar totalmente o investimento, neste caso 5,2 anos.

Isso significa que se o herdeiro de Argemiro, Eduardo Leonel da Costa Souza, comparecesse em Ilhéus para administrar sua herança em 1882 ele teria à sua disposição no cofre dos órfãos a quantia suficiente para adquirir outro escravo, com características semelhantes às de Argemiro. Com isso ele podia multiplicar sua riqueza e contribuir para aumentar a desigualdade social em Ilhéus.

Cabe indagar agora qual seria o tempo necessário para Argemiro, nessas condições, comprar a alforria e se libertar do cativeiro.


 

Tempo necessário para o escravo Argemiro comprar a alforria. Ilhéus, 1876-1882


 

Considerando que durante o ano de 365 dias eram dados ao escravo 66 dias para sustento próprio e outros fins, e que o valor diário acertado entre as partes foi da quantia de Rs.$640, podemos concluir que nessas condições Argemiro poderia arrecadar para si mesmo a soma de Rs. 42$240 em um ano de trabalho.

Se nada de ruim acontecesse com Argemiro e ele realmente conseguisse acumular essa quantia por ano quanto tempo seria necessário para ele comprar a alforria e se libertar do cativeiro?

O cálculo dessa equação é o mesmo feito na seção anterior, só que agora o rendimento está bem abaixo do valor que Argemiro proporcionava ao seu proprietário.

Dividindo o preço que o escravo foi avaliado no inventário em 1876, que foi da quantia de Rs. 1:000$000 pelo total de rendimento que Argemiro podia alcançar para si mesmo em um ano (Rs. 42$240), concluímos que seriam necessários 23,7 anos de trabalho e duras economias para o cativo se libertar da escravidão.

Esta constatação, ainda que suscite debates e exija que outros fatores sejam levados em conta nos cálculos, o que nós concordamos, ela permite uma aproximação, mesmo que tangencial, sobre o impacto que a escravidão causou na vida das pessoas, sobretudo no que diz respeito ao acirramento das desigualdades socias.

As chances de Argemiro economizar dinheiro e comprar a liberdade eram pequenas se comparadas aos lucros que ele proporcionava ao seu proprietário. Eram necessários 23,7 anos de trabalho escravo, nesse período Argemiro poderia render ao seu dono o valor equivalente à compra de outros quatro cativos, com características semelhantes à sua.


 

Considerações finais


 

Neste ensaio foi possível constatar que em Ilhéus, numa conjuntura marcada pela expansão da economia cacaueira e desmonte do escravismo no Brasil, a posse de escravos podia trazer vantagens econômicas significativas. Para o escravista em questão, cinco ou seis anos de exploração do trabalho escravo eram suficientes para salvar o investimento, dali pra frente, descontando-se as despesas com o escravo, os lucros eram livres.

Para a pessoa escravizada a realidade era bem diferente. Para Argemiro conseguir sair do cativeiro por meio da compra da alforria eram necessárias pelo menos duas décadas de trabalho e economias. Até conseguir juntar o pecúlio necessário poderia já estar idoso. Ademais, no decurso desse tempo muita coisa podia acontecer, influenciando as possibilidades de aumentar ou diminuir os ganhos.

Essa realidade, no entanto, não deve ser estendida absolutamente a todos escravista e a todas as pessoas escravizadas. Sabemos que existiam muitos escravos com especializações e dependo do contexto em que estavam inseridos as chances de acumular pecúlio variavam muito.

Ao que aparece Argemiro empregava-se nas atividades agrícolas. A quantia que ele acertou com o curador (Rs.$640) devia ser razoável para o mercado de trabalho de Ilhéus na época. No inventário de Genésio Malaquias Barbosa, aberto em 1886, consta que antes de morrer ele trabalhou nove dias no serviço de roça por Rs. 9$400. Outrossim, o aluguel de seu boi durante quatro dia rendeu Rs. 3$200.19

É oportuno lembrar que o acerto entre Argemiro e o curador não incluía despesas com comidas e vestimentas, o que de certa forma influenciou no acerto do valor da diária.

Após a morte da proprietária da Fazenda Pimenta, Argemiro continuou trabalhando como escravo, mas agora tinha que sobreviver por conta própria, e entregar uma quantia fixa ao seu novo dono.

A realidade desse escravo se modificou, não sabemos se para melhor ou pior. Em todo caso, se ele quisesse sair do cativeiro comprando a alforria era necessário trabalhar e economizar por anos a fio, para talvez na velhice alcançar este objetivo, como ocorreu com suas antigas parceiras de cativeiro, as escravas Antônia e Paula, que só conseguiram este feito já idosas, 58 e 63 anos, respectivamente.


 

1 Esse texto integra uma pesquisa de doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH-USP, sobre a escravidão na economia cacaueira de Ilhéus, sul da Bahia, entre 1850-1888, na qual utilizo, principalmente, 345 processos de inventários, livros de cobrança de impostos, livro de classificação dos escravos e recenseamento, dentre outras fontes. Agradeço ao CNPq pelo apoio financeiro à pesquisa. E-mail: malandre@usp.br

2 Ver, entre outros, BARROS, Francisco Borges. Memória sobre o município de Ilhéus. 3ª ed. Ilhéus: Editus; Fundação cultural de Ilhéus, 2004; AMADO, Jorge. Cacau. Pósfácio de José de Souza Martins. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; FALCÓN, Gustavo. Os coronéis do cacau: raízes do mandonismo político em Ilhéus, 1890-1930. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). UFBA, Salvador, 1983.

3 Sobre esse premissa ver, entre outros, ADONIAS FILHO. Sul da Bahia, chão de cacau. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976; BAIARDI, Amílcar. Subordinação do trabalho ao capital na lavoura cacaueira da Bahia. São Paulo: Hucitec, 1984.

4 MAHONY, Mary Ann. Um passado para justificar o presente: memória coletiva, representação histórica e dominação política na região cacaueira da Bahia. Tradução Ana Cláudia Cruz da Silva. In: Especiaria -Cadernos de Ciências Humana. Universidade Estadual de Santa Cruz. Ilhéus: Editus, v. 10, n. 18, p. 737-793, 2009.

5 Ver, entre outros, SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988; MAHONY, Mary Ann. “Instrumentos Necessários” Escravidão e Posse de Escravos no Sul da Bahia no século XIX, 1822-1889. Afro-Ásia, Salvador, n. 25-26, p. 95-139, 2001; DIAS, Marcelo Henrique e CARRARA, Angelo Alves (Org.). Um lugar na História: a capitania e comarca de Ilhéus antes do cacau. Ilhéus: Editus, 2007; ANDRADE, Marcelo Loyola de. Nos labirintos da liberdade. Das alforrias na lavoura cacaueira (Ilhéus-BA, 1810-1850) à discussão historiográfica acerca das manumissões no Brasil do século XIX. Dissertação (Mestrado em História) - FFLCH/USP, São Paulo, 2013; CRUZ, Ronaldo Lima da. Conflitos e tensões: conquistas de escravizados e libertos no sul da Bahia (1880-1900). Dissertação (Mestrado em História) - FCHS/UNESP, Franca, 2012; GONÇALVES, Victor Santos. Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888). Dissertação (Mestrado em História) – FFCH, UFBA, Salvador, 2014; SACRAMENTO, Valdinéia de Jesus. Mergulhando nos Mocambos do Borrachudo – Barra do Rio de Contas (século XIX). Dissertação (Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) - CEAO/FFCH/UFBA, Salvador, 2008.

6 APEB. Seção Judiciária. Inventários. Ana Maria Velozo. Est. 02. Cx. 749, Maço 1215, Doc. 5. Ilhéus, 14 de set. 1876.

7 No caso de Salvador, entre 1851-1889, a autora constatou que 37% dos inventariados estava nessa faixa de riqueza. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma província do Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. p. 608 e 611.

8 Ver, entre outros, REIS, João José; AGUIAR, Márcia Gabriela. “Carne sem osso e farinha sem caroço”; o motim de 1858 contra a carestia na Bahia. Revista de História (USP), n. 135, p. 133-161, 2º sem. 1996. PINHO, José Ricardo Moreno. Açambarcadores e famélicos: fome, carestia e conflitos em Salvador (1858-1878). Salvador: EDUNEB; Câmara Municipal de Salvador, 2016.

9 Sobre o assunto ver, CAMPOS, João da Silva. Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus – 3 ed. – Ilhéus, BA: Editus, 2006; LYRA, Henrique J. Buckinghan. Colonos e Colônias: uma experiência de colonização agrícola na Bahia na segunda metade do século XIX. Dissertação (Mestrado em História) – FFCH/ UFBA, Salvador, 1982.

10 Recenseamento Geral do Império do Brasil, 1872. Disponível em: http://www.biblioteca.ibge.gov.br, acesso em 15 de fev. 2019.

11 APEB, Seção Judiciária, Inventários, Ilhéus. Maria José Leola Del Rey e Carolina Leola Del Rey. Est. 02, Cx. 786, Maço 1253, Doc. 06, 28 de fev. 1861.

12 APEB, Seção Judiciária, Inventários, Ilhéus. Rita Constança de Melo Sá, Est. 02 Cx. 759, Maço 1225, Doc. 04, 28 ago. 1880.

13 APEB. Seção Judiciária. Inventários. Ana Maria Velozo. Est. 02. Cx. 749, Maço 1215, Doc. 5. Ilhéus, 14 de set. 1876.

14 APEB. Seção Judiciária. Inventários. Ana Maria Velozo. Est. 02. Cx. 749, Maço 1215, Doc. 5. Ilhéus, 14 de set. 1876.

 

15 APEB. Seção Judiciária. Inventários. Ana Maria Velozo. Est. 02. Cx. 749, Maço 1215, Doc. 5. Ilhéus, 14 de set. 1876.

 

16 APEB. Seção Judiciária. Inventários. Ana Maria Velozo. Est. 02. Cx. 749, Maço 1215, Doc. 5. Ilhéus, 14 de set. 1876.

17 Ibidem.

18 APEB. Seção Judiciária. Inventários. Ana Maria Velozo. Est. 02. Cx. 749, Maço 1215, Doc. 5. Ilhéus, 14 de set. 1876.

 

19 APEB. Seção Judiciária. Inventários. Genesio Malaquias de Castro. Est. 02. Cx. 762, Maço 1228, Doc. 11. Ilhéus, 13 nov. 1886.