Modernização Paulista, Letargia Nordestina e o Mercado de Trabalho na Primeira República

 

Marcelo Freitas Soares de Moraes Cruz (FFLCH-USP)1

 

Introdução

Em Formações Econômicas Pré-Capitalistas, Karl Marx aponta para a centralidade que o trabalho assalariado tem no capitalismo2. Durante a segunda metade dos oitocentos, formas residuais de assalariamento conviviam com a escravidão no Brasil. Entretanto, não era a venda da força de trabalho que estruturava os arranjos de mão de obra mobilizados nas diversas regiões econômicas que compunham o Império. Mesmo durante o processo histórico de superação do escravismo, o assalariamento não imprimiu sua marca sobre a organização social do trabalho nas diferentes parcelas da estrutura produtiva3.

A presença da escravidão nega a formação do mercado de trabalho. Enquanto instituição, esse mercado requer a existência de trabalhadores formalmente livres, capazes de compor uma força de trabalho dotada de mobilidade geográfica. Diferentemente de outros modos de produção, no capitalismo o trabalhador não é condição de produção, apenas sua força de trabalho se configura como tal. A força de trabalho é tratada como um ativo pertencente ao trabalhador.

Além disso, esse tipo de mercado só ganha densidade quando a renda monetária passa a exercer um papel preponderante no engajamento dos trabalhadores nas atividades econômicas. Apenas sob essa condição o mercado atua no sentido de alocar oferta de trabalho para as atividades que o demandam e podem remunerá-lo. A mercantilização do trabalho é estimulada pelo crescimento da renda e da produtividade do trabalho durante ciclos econômicos expansivos. Afinal de contas, a demanda por trabalho se torna mais intensa em função do crescimento econômico.

Este artigo visa remontar o panorama econômico do Centro-sul e do Nordeste do Brasil e as transformações em curso nas relações sociais travadas no mundo do trabalho durante o começo do século XX. Mais especificamente, buscamos compreender tais mudanças a partir do enquadramento das respectivas regiões na economia-mundo capitalista industrial, marcada pelo avanço da economia dos Estados Unidos nos rumos ao centro do sistema4.

Do ponto de vista espacial, a análise jogará luzes sobre São Paulo (estado e capital), o estado do Rio de Janeiro, a Capital Federal, e os estados da Bahia e de Pernambuco. Assim, poderemos compreender as diferenças entre o Centro-sul e o Nordeste do Brasil de maneira mais ampla.

Além desta Introdução, o presente artigo é composto por mais quatro seções. A segunda é dedicada ao exame da situação das economias agrícolas, com ênfase sobre as exportações e as relações sociais de produção organizadas em torno da lavoura nas duas regiões. A terceira remonta a expansão da indústria de transformação nas duas primeiras décadas do século passado sob uma ótica regional. A quarta traz algumas evidências acerca das dimensões tomadas pelo assalariamento e da grande indústria capitalista nas regiões selecionadas. Trata-se de indicadores dos impactos das diferentes dinâmicas de expansão industrial sobre mercados de trabalho fragmentados, incompletos e dotados de contornos geográficos locais. As principais conclusões serão apresentadas na última seção.


 

2. As raízes rurais da questão regional brasileira


 

Ao longo do período compreendido entre o final do Império e toda a República Velha, o Brasil se assemelhava a um mosaico produtivo baseado em atividades rurais. Cada região econômica era identificada com uma miríade de gêneros primários produzidos tanto para o mercado interno quanto para o externo. Porém, não eram tantas as culturas que tinham capilaridade no setor exportador da economia.

Nossa ótica de análise contrapõe o Complexo Cafeeiro5 ao Complexo Nordestino6. Enquanto o primeiro seria formado pela produção cafeeira e as atividades econômicas inter-relacionadas a essa lavoura, como as ferrovias, os bancos, o comércio exportador e a indústria, o segundo seria composto por dois segmentos. De um lado, o complexo açucareiro, situado na faixa úmida nordestina. De outro, o complexo que mesclava a pecuária à produção algodoeira, que se espalhava tanto pelo Agreste quanto pelo Sertão nordestino.

É válido destacar que o avanço da industrialização para segmentos tecnologicamente avançados, típicos da Segunda Revolução Industrial, e a disseminação espacial do capital nas economias mais dinâmicas do Atlântico Norte intensificaram tanto a urbanização quanto a expansão do mercado de trabalho no centro ampliado do sistema mundial. Tais processos históricos impulsionaram o crescimento das classes sociais assalariadas. Assim, o mercado internacional de commodities (matérias primas e alimentos), que passou a operar com volumes até então desconhecidos, ganhou contornos geográficos globais7.

O crescimento da demanda por primários nas regiões onde o capitalismo industrial ganhou seus contornos mais bem delineados, durante o século XIX, irradiou estímulos para que as economias da América Latina seguissem especializadas na produção de alguns desses gêneros. Essa constatação levou Celso Furtado a identificar o setor exportador como o principal motor da economia brasileira até pelo menos 19308.

Não podemos negar a importância econômica dos setores rurais voltados às demandas domésticas, sobretudo em um conjunto de décadas caracterizadas pelo crescimento demográfico nas cidades. Entretanto, o funcionamento do sistema econômico e a organização de parte relevante da demanda agregada nas regiões de maior relevo econômico eram dependentes dos setores movidos por alavancas externas.

O comércio cafeeiro teceu laços firmes entre o Centro-Sul do Brasil e as principais economias capitalistas. Segundo as estimativas de Deanslow, a demanda externa por esse gênero cresceu 5% ao ano entre 1870 e 19109. Lembremos que ainda nos oitocentos o predomínio brasileiro na oferta internacional da rubiácea fez com que o país se tornasse o price maker do gênero agrícola em escala global. O Oeste Paulista convertera-se na nova fronteira mundial da cafeicultura10.

Em situação oposta estavam o açúcar e o algodão. Havia oferta excessiva de ambos os produtos no âmbito do mercado internacional. Nesse contexto competitivo, os fazendeiros brasileiros encontravam muita dificuldade em penetrar seus produtos nos mercados externos. O principal problema enfrentado por eles era a dificuldade em rivalizar com produtores que historicamente operavam com níveis mais elevados de produtividade.

No caso do açúcar, era difícil fazer frente à produção cubana. Os fazendeiros da ilha dispunham de terras mais férteis e de uma firme conexão com os Estados Unidos. A evolução da economia açucareira cubana vinha contando com significativos aumentos de produtividade desde os tempos escravistas. No começo do século XX, a modernização da produção açucareira em Cuba foi facilitada tanto pelo mercado de capitais quanto pela própria entrada das grandes empresas norte-americanas na ilha caribenha. A Cuban American Sugar Company, por exemplo, possuía seis usinas em Cuba que eram responsáveis por quase 10% da produção total da ilha na primeira década do século XX11. Além do dinamismo cubano, devemos mencionar que a oferta de açúcar era incrementada na própria Europa através da fabricação do açúcar de beterraba.

No caso do algodão, os fazendeiros nacionais não conseguiram se fazer competitivos diante da produção do Sul dos Estados Unidos, que desde o século XIX foi pioneira no que diz respeito à mecanização da produção desse gênero. Recentemente, estudos realizados por economistas vêm desmontando a identificação da lavoura algodoeira do Brasil oitocentista como “cultura de pobres” através da revelação do significativo potencial que esse segmento da agricultura tinha em concentrar escravos no Nordeste12. Entretanto, não devemos perder de vista que as fazendas algodoeiras estiveram quase sempre em desvantagem em relação às açucareiras no que diz respeito ao uso de terras férteis, emprego de maquinaria e instalação de infraestrutura de apoio à lavoura. Entre o terceiro quartel do século XIX e o primeiro do XX, o Brasil caiu do posto de terceiro para sexto maior produtor mundial dessa fibra. Do ponto de vista da quantidade produzida, as fazendas brasileiras atingiram cerca de 2% da totalidade produzida no Sul dos Estados Unidos no começo do século passado13.


 

Tabela 1

Principais produtos da pauta de exportações brasileira - em % - 1889/1923

Período

Café

Açúcar

Cacau

Fumo

Algodão

Borracha

Couros e Peles

Outros

1889-1897

67,6

6,5

1,1

1,7

2,9

11,8

2,4

6

1898-1910

52,7

1,9

2,7

2,8

2,1

25,7

4,2

7,9

1911-1913

61,7

0,3

2,3

1,9

2,1

20

4,2

7,5

1914-1918

47,4

3,9

4,2

2,8

1,4

12

7,5

20,8

1919-1923

58,8

4,7

3,3

2,6

3,4

3

5,3

18,9

Fonte: IBGE - Anuário Estatístico do Brasil 1939-1940, p. 1379-8; Brasil em Números, p. 87.


 

O exame da Tabela 1 aponta para o grande peso relativo do café na pauta exportadora. Seu peso variou de dois terços a metade do total exportado pelo país. A queda de participação entre o primeiro e o último intervalo da série histórica deve-se unicamente ao bom desempenho da borracha entre o final do século XIX e o período da Primeira Guerra Mundial. Em situação oposta estava o açúcar. Notamos que esse gênero perde espaço de forma intensa nas exportações ao cair de 6,5 para apenas 0,3% entre 1889/97 e 1911/1913. Ele só volta a atingir a marca de 5% em um contexto excepcional, como o do pós-guerra. Os demais gêneros exportados pelo Nordeste, como fumo, cacau e algodão, representavam individualmente apenas cerca de 3% do total exportado. A Bahia se destacava pela produção fumageira. Contudo, os produtores baianos também tinham posição marginal no mercado internacional.


 


 

Tabela 2

Café e Açúcar no Setor Exportador da Economia Brasileira - 1911/1930

Período

 

Café

 

 

Açúcar

 

 

Qtde.

Valor (libras)

% nas X

Qtde.

Valor (libras)

% nas X

1911/1920

120.503 sacas

364. 842

53%

624.205 t

20. 364

3%

1920/1930

139.532 sacas

561.035

69,6%

810.032 t

11.389

1,4%

Fonte: CARONE, Edgar. A República Velha, p. 44-52


 

A Tabela 2, por sua vez, permite um cotejo mais nítido entre a situação do café e a do açúcar durante a Primeira República ao apresentar evidências que relacionam o quantum exportado à quantidade de divisas produzidas pelas mesmas exportações. Os dados em tela apontam para o crescimento da produção rural entre a segunda e a terceira década do século XX. Entretanto, as oscilações das receitas de exportação do café e do açúcar tomaram sentidos contrários nesse contexto histórico. De um lado, o aumento de 15% no total exportado de café foi acompanhado do crescimento médio de 53% do valor exportado em divisas. De outro, o crescimento de 30% da produção exportada de açúcar produziu um volume de divisas 44% menor.

Podemos afirmar, então, que durante o período estudado o setor exportador nordestino esteve deprimido. Diante do quadro externo adverso, restava para a açucarocracia nordestina duas saídas. Uma delas era modernizar sua estrutura produtiva com a finalidade de tornar-se competitiva através das elevações da produtividade do trabalho e do capital instalado. Essa opção seguia a trajetória da produção cubana. Outra possibilidade era contentar-se com o suprimento da oferta interna do gênero.

Tabela 3

Produção de açúcar nos banguês e nas usinas - em toneladas métricas - 1920

Região

Banguês

Usinas

Produção Total

% das Usinas na Produção Total

Bahia

23.949,1

23.557,4

47.506,5

49,5%

Pernambuco

50.124,6

91.357,5

141.482,1

64,5%

Rio de Janeiro

44.686,6

57.120,0

101.806,6

56,1%

São Paulo

30.614,2

25.759,4

56.373,6

45,7%

Brasil

455.522,9

239.739,0

695.261,9

34,5%

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Censo de 1920, DGE, Recenseamento Geral de 1920, Vol V, Parte III, Estatísticas Complementares do Censo Econômico, 1929, p. XLIX.


 

Os dados compilados na Tabela 3 servem para dar contornos empíricos à situação da produção de açúcar nas principais regiões produtoras do Brasil. Os pernambucanos seguiam liderando a produção nacional. Contribuíam com 20% do total produzido, sendo que 70% de sua produção já era destinada ao mercado interno. A Bahia aparece no momento captado pelos dados do censo econômico de 1920 como um destaque negativo. Participava com menos de 7% do total produzido. Além disso, era o estado que menos produzia açúcar nas modernas usinas.

Metade da produção baiana era proveniente dos antigos engenhos, ou banguês. Ou seja, sua produção passou por uma remodelação muito tímida de suas estruturas produtivas, se comparadas aos demais produtores nacionais, tanto do Nordeste quanto do Centro-Sul. Significa dizer, então, que os produtores baianos ficaram para trás em relação à possibilidade de elevar a produtividade no fabrico do açúcar para ganhar competitividade, inclusive no mercado interno. Segundo Inaiá de Carvalho, uma das formas de adaptação desses produtores às condições de mercado adversas foi a manutenção de formas de trabalho arcaicas e extremamente precárias14.

De acordo com Manuel Correia de Andrade, os corumbas supriam o pico de demanda por trabalho típico das épocas do plantio e da colheita de cana. Essa parcela da força de trabalho era formada por migrantes provenientes do Agreste e do Sertão. Geralmente, trabalhavam na lavoura canavieira em troca do acesso à terra para o plantio de alimentos. Quando recebiam remunerações monetárias, estas eram baixíssimas15.

Já os moradores de condição formavam uma parcela da força de trabalho mobilizada de forma mais regular na Zona da Mata e no Recôncavo Baiano. Trabalhavam no plantio e na colheita da cana. O custo de seu trabalho era sensivelmente reduzido pelo oferecimento de alimentação e disponibilidade em levantar roças na área da fazenda. Notamos que essas figuras sociais do campo representavam relações sociais de produção semi-assalariadas. O uso da terra para a subsistência dos trabalhadores era fundamental na organização de um mundo do trabalho no qual a relação salarial era elemento marginal.

O segmento mais pobre do Complexo Nordestino, que unia a pecuária ao plantio algodoeiro, representava uma estrutura socioeconômica espalhada por diferentes partes do Nordeste. Ele tinha capacidade de absorver muita mão de obra. No entanto, era caracterizado por baixíssimos níveis de produtividade e por ser suscetível a crises hídricas. A parceria era a relação social fundamental desse sistema. Ela garantia o acesso à terra por parte dos trabalhadores, que cultivavam o algodão nas terras de proprietários de cabeças de gado.

O produto monetário obtido com a venda do algodão no mercado local era dividido entre o parceiro e o dono das terras. A subsistência da força de trabalho também era garantida pela permissão dada pelos fazendeiros para que os trabalhadores levantassem seus roçados nas terras reservadas para os algodoais. Tais roças respondiam por parte considerável do produto agrícola nestas. Por isso, esse segmento do complexo nordestino deve ser visto como uma estrutura produtiva extremamente heterogênea baseada na produção de gêneros mercantis que conviviam com vastas áreas de auto-consumo.

Tanto na região úmida quanto nas secas, o cambão era disseminado. Foi o principal passivo escravista para o mundo do trabalho rural nordestino da Primeira República. Trata-se de uma forma de pagamento pelo acesso à terra através do oferecimento de dias de trabalho para o proprietário da fazenda16. Esse mecanismo de mobilização de força de trabalho sintetiza a relação entre a desigualdade da estrutura fundiária e a brutal exploração dos trabalhadores sem terra. Esse era um caso limite, no qual o engajamento do fator trabalho na produção tangenciava por completo qualquer tipo de remuneração monetária, impondo barreiras ao próprio desenvolvimento da demanda interna ao negar qualquer tipo de divisão funcional da renda.

A compreensão da crise de oferta no mercado internacional de açúcar concatenada ao esquadro de relações sociais que estruturavam o arranjo de força de trabalho nos leva a concluir que a expansão da demanda agregada no Complexo Nordestino encontrava barreiras estruturais tanto por parte dos reduzidos efeitos multiplicadores derivados do setor agrícola exportador quanto da própria expansão da força de trabalho. Eram limitados os benefícios sobre a renda interna advindos da incorporação de mais trabalhadores à lavoura.

Outra trajetória histórica foi traçada em São Paulo, mais especificamente na região do Oeste Paulista, no que concerne às relações entre economia e sociedade, no geral, e às formas de mobilização do trabalho, em particular. Definitivamente, a região em tela serviu de palco para o caso mais peculiar de reorganização da força de trabalho durante o processo abolicionista. As particularidades regionais destacadas dizem respeito tanto à montagem de um novo arranjo de força de trabalho no qual a mão de obra nacional era mesclada ao trabalho de europeus17 quanto à maior disseminação de formas monetárias de remuneração.

As famílias imigrantes recebiam uma quantidade de dinheiro fixa pelo tratamento de mil pés de café e outra quantidade variável pela quantidade de café colhido e outros serviços prestados na fazenda. A parcela variável da remuneração monetária obtida na lavoura era mais significativa do que a fixa18. Ela dependia diretamente da qualidade das terras. Por isso, os imigrantes circulavam pelo interior do estado em busca das fazendas mais produtivas para maximizar sua remuneração. Além disso, também recebiam pequenos lotes de terra onde poderiam criar animais e plantar. O levantamento de roças em meio às próprias fileiras dos cafezais também era prática comum. De maneira geral, as fazendas brasileiras eram unidades produtivas responsáveis pela produção de mercadorias e também pela reprodução física e social da força de trabalho.

José de Souza Martins considera que a parcela não monetária da remuneração – produção familiar de alimentos e o produto da venda de seu excedente em mercados locais - era mais relevante do que a parte monetária propriamente dita para o sustento das famílias estrangeiras19. Thomas Holloway deu contornos empíricos à hipótese de Martins. Segundo ele, a renda monetária de uma família inserida na cafeicultura paulista era de apenas 30% do rendimento total, sendo que o restante da renda era formado pela moradia, alimentação e o produto das vendas de alimentos em mercados locais20.

Além do colonato, a parceria também teve relevo na formação dos arranjos de força de trabalho no interior paulista. Ela era um ponto de congruência entre o mundo do trabalho rural nordestino e o paulista. Entretanto, as semelhanças eram restritas à forma dessa relação social. No caso nordestino, o compartilhamento de riscos de rentabilidade típico da parceria pesava de forma desfavorável aos trabalhadores. Este não era o caso dos trabalhadores da fronteira agrícola cafeeira.

Com exceção do período inicial da Primeira Guerra Mundial, o preço do café na Bolsa de Nova York cresceu 46% entre 1906 e 1913. Era uma conjuntura na qual o dinamismo da demanda externa era potencializado pela Política de Valorização do Café. Além disso, a taxa de câmbio manteve-se estável em um patamar que conferia competitividade externa ao café nesse período. Houve desvalorização durante os anos de guerra por conta da ruptura do Padrão-Ouro, que pode ter amortecido a redução da lucratividade dos agentes cafeeiros em mil-réis durante a Guerra. Durante a reconstrução europeia, o preço da rubiácea elevou-se em 38%21. Ou seja, as condições de mercado vigentes nas duas primeiras décadas do século passado favoreciam a expansão da renda tanto de fazendeiros quanto de seus parceiros.

Colonato e parceria não eram formas plenas de assalariamento, uma vez que o acesso à terra continuava sendo um incentivo fundamental na organização social do trabalho. Eram formas de socialização de relações sociais de produção quase assalariadas em São Paulo22. Contudo, o engate das regiões de fronteira e maior produtividade da economia cafeeira na demanda norte-americana abriu uma brecha importante para o desenvolvimento do mercado interno através da expansão da força de trabalho organizada em torno desses moldes. Diferentemente do caso nordestino, os trabalhadores paulistas fizeram parte de um polo de uma divisão geográfica global do trabalho articulada pela economia-mundo capitalista industrial23. Os trabalhadores nordestinos, inseridos em atividades econômicas cada vez mais dependentes do circuito interno de acumulação, seguiam submetidos a formas de trabalho nas quais tarefas produtivas eram vistas por eles como não remuneradas.


 

3. Desigualdade espacial na expansão da indústria de transformação


 

A abertura das primeiras fábricas no Brasil ganhou ímpeto em meados do século XIX devido tanto à elevação das tarifas alfandegárias, em 1844, quanto à aprovação da Lei Eusébio de Queirós, em 1850. Enquanto a primeira atuou no sentido de encarecer os produtos importados em relação à potencial fabricação nacional, a segunda liberou capitais que até então eram investidos no tráfico atlântico para serem empregados em outras atividades. Além disso, o próprio crescimento populacional dos principais núcleos urbanos também incrementava a demanda por bens de consumo. O Nordeste e, em particular, a Bahia foram destaques nesse primeiro surto de expansão manufatureira. Segundo Magalhães, dois terços da produção de tecidos estavam situados no Nordeste na década de 186024.


 

Tabela 4

Estimativa da distribuição espacial das principais fábricas de tecidos de algodão no Brasil - 1866/1885

Província

 

1866

1875

1885

Bahia

 

5

11

12

Pernambuco

 

0

1

1

D.F. e R.J.

 

2

5

11

São Paulo

 

1

6

9

Brasil - Total

 

9

30

48

Fonte: STEIN, Stanley, Origens e Evolução da Indústria Têxtil no Brasil: 1850-1950, Rio de Janeiro, Campus, 1979, p. 36.


 


 

Os dados da Tabela 4 confirmam a preponderância da Bahia no que diz respeito ao número de fábricas têxteis instaladas no território nacional. Entre metade e um terço das principais fábricas do mais representativo ramo industrial da época estava posicionado nessa província entre 1866 e 1875. O peso relativo desse estado continuava relevante em 1885. Entretanto, os mesmos dados indicam que nessa última década o ritmo do crescimento industrial era reduzido no Nordeste, principalmente na Bahia, e acelerado no Centro-Sul.

Nesse último ano, a produção de tecidos de algodão realizada na província do Rio de Janeiro e na Capital Federal já era duas vezes e meia maior do que a baiana. Contudo, a produção desse estado era superior à soma do que era produzido em São Paulo e em Minas Gerais. Significa dizer, então, que a Bahia seguia sendo um polo têxtil relevante do ponto de vista da produção.25

O crescimento industrial requer mercado consumidor, força de trabalho disponível, oferta de energia, infraestrutura de apoio ao comércio e à circulação de mercadorias, uma classe empresarial disposta a ingressar nessa atividade, divisas para a importação de máquinas e equipamentos, alguma dose de proteção tarifária à nascente indústria e instituições que possam realocar recursos da sociedade em prol do investimento industrial. Essas instituições - que podem ser corporificadas em agentes do comércio, bancos, bolsas de valores etc. - tiveram papel relevante nas dinâmicas de crescimento industrial das três primeiras décadas do século XX.

Cano remonta o papel do capital cafeeiro no vazamento de recursos acumulados no âmbito do comércio externo em benefício das novas atividades urbanas, dentre as quais a indústria foi relevante26. Trata-se do paradigma café/indústria. Wilson Suzigan rastreou as relações entre o desempenho do setor exportador e o desenvolvimento do setor industrial. Segundo ele, houve uma nítida congruência entre os picos de exportação de café e os picos de importação de maquinaria para a indústria entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX27. Ao lado de fazendeiros, os importadores fizeram parte da base social de formação da burguesia industrial em São Paulo28.

Saes recuperou toda a produção historiográfica regional sobre as dinâmicas de expansão industrial durante a Primeira República. Segundo ele, o capital mercantil urbano atuou como fonte de concentração e alocação de capital para a indústria que se desenvolveu tanto na Capital Federal quanto na cidade de Salvador ao largo das primeiras décadas do século passado29. Significa dizer, então, que o dinamismo da expansão industrial tinha origens diferentes, ligadas a circuitos regionais de valorização do capital. Por conta disso, o crescimento da indústria seguiu ritmos distintos em cada região.

Cabe destacar também a vigência da fase de expansão financeira do ciclo sistêmico de acumulação de capital britânico entre 1870 e 191430. Essa fase é marcada pela expansão dos fluxos globais de capitais. A maior parte dos capitais empossados na esfera financeira da economia britânica encontraram meios de valorização na economia dos Estados Unidos. Contudo, parte do capital originário no Atlântico Norte foi direcionado para áreas da periferia que se destacava do ponto de vista das exportações. Dessa forma, São Paulo recebeu investimentos em infraestrutura que favoreceram a formação de capital na indústria.

A Tabela 5 arrola informações sobre o crescimento industrial a partir de uma ótica espacial. Ela atesta a potência do capital cafeeiro em promover o desenvolvimento industrial em São Paulo, a ponto de dotar a capital desse estado de um verdadeiro perfil industrial por volta dos anos 1920.

Também indica que os agentes da praça mercantil de Salvador, que atuavam tanto na exportação das commodities ali produzidas quanto na importação de bens manufaturados, produziram uma dinâmica de expansão material com diversificação das estruturas produtivas urbanas menos intensa. Nesse sentido, a crise de oferta do açúcar e a estreiteza do mercado local ajudam a entender a lentidão relativa da ampliação do tecido manufatureiro baiano.


 

Tabela 5

Distribuição espacial da produção industrial - valor bruto da produção (VBPI) - 1907/1920

Região

Estado

1907

1920

Nordeste

 

16,7%

16,1%

 

Bahia

3,4%

2,8%

 

Pernambuco

7,4%

6,8%

Centro-sul

 

58,2%

66,1%

 

Distrito Federal

37,8%

28,2%

 

São Paulo

15,9%

31,5%

Brasil - Total

 

100%

100%

Fonte: Olímpio de A. Galvão, Concentração Industrial no Brasil segundo os Censos - 1907/1980. Em: Análise Econômica. Rio Grande do Sul, 1991, março, p. 163.


 


 

A análise clássica desses dados já amplamente utilizados por economistas e historiadores econômicos31 sugere que houve, entre 1907 e 1920, estagnação da indústria no Nordeste, desaceleração do ritmo do crescimento na Capital e intensificação do ritmo de expansão da indústria em São Paulo.

O problema é que essa análise econômica da evolução industrial é distorcida sob a ótica espacial, devido à subestimação da realidade industrial existente para além do Rio de Janeiro em 1907. Segundo as fortes críticas realizadas por Dean, essa subestimação chega a um terço da indústria de São Paulo32.

Apesar dos problemas da fonte, esse censo nos ajuda a refletir sobre a realidade industrial do Brasil da primeira década do século XX. Em primeiro lugar, podemos afirmar que a dispersão espacial era uma das grandes características desse setor da economia. Conforme ensina Antônio Barros de Castro, diversos tecidos manufatureiros, nos quais os segmentos leves predominavam, foram instalados próximos aos principais centros consumidores entre o final dos oitocentos e o começo do século passado. Além de atender demandas locais, as firmas em tela processavam matérias primas produzidas regionalmente33.

Em segundo lugar, levando em conta a problemática maior do documento, é possível inferir que a indústria de São Paulo, apesar do porte inferior em relação à do Rio, era maior do que a captada no censo. Dessa forma, o ritmo da arrancada industrial nesse estado foi menos intenso do que o interpretado por Cano. Seguindo a mesma linha de raciocínio, é possível sugerir que o problema da estagnação industrial no Nordeste teve contornos mais dramáticos do que o apresentado na fonte. Em vez de ligeira – quase insignificante – perda de peso relativo no VBPI, houve, de fato, redução mais abrupta do peso nordestino na totalidade da indústria brasileira, uma vez que a realidade industrial era mais robusta do que a captada no censo de 1907.

Trata-se, então, de um declínio relativo da indústria nordestina já significativo nas duas primeiras décadas do século XX. Não sugerimos que houve redução no número de estabelecimentos industriais, trabalhadores manufatureiros, valor da produção ou no estoque de capital empregado. O fato é que o crescimento desses indicadores se deu em um ritmo muito inferior ao praticado no Centro-sul do país. Essa última região, em 1920, contribuía com dois terços do valor da produção industrial nacional. É a inversão da realidade industrial descrita por Simonsen para a década de 1860. São Paulo, por si só, era responsável por quase um terço do valor bruto da produção do setor manufatureiro nacional, enquanto a Bahia, por exemplo, contribuía com apenas 2,8% do valor da produção industrial e cerca de 3,5% do valor do capital instalado por essa atividade econômica no país34.

Podemos agrupar as hipóteses que procuraram explicar o maior dinamismo paulista em relação às demais regiões em cinco aspectos básicos: (1) o maior potencial de geração de uma massa de capitais posta à disposição do investimento industrial; (2) as menores tarifas de fretes cobradas em São Paulo, devido ao aprimoramento da malha ferroviária; (3) o papel da disseminação de forma de trabalho quase assalariado no alargamento da demanda interna; (4) os menores custos relativos de produção e distribuição de energia elétrica.

Saes destacou o custo e a oferta de energia elétrica como um dos fatores diferenciais relevantes no protagonismo industrial paulista35. Pelo lado da oferta, podemos afirmar que enquanto 44% da oferta nacional total desse tipo de energia estavam concentradas em São Paulo, cerca de 8% desse mesmo total eram ofertadas na Bahia e em Pernambuco. A produção total da região do Rio de Janeiro atingia pouco mais da metade da paulista. A atuação da empresa Light and Power, no bojo das transformações operadas no âmbito da economia-mundo, foi um capítulo importante na expansão da infraestrutura na região mais dinâmica do Brasil.

Segundo dados do próprio censo de 1920 analisado, cerca de dois terços das fábricas baianas e pernambucanas utilizavam o carvão como força motriz36. Mais antigo, o tecido industrial baiano era dominado por manufaturas que baseavam sua produção em um estoque de capital fixo relativamente atrasado.

A dificuldade em realizar a passagem do carvão para a eletricidade impedia a expansão da produtividade via aquisição de maquinaria mais moderna no Nordeste. As fábricas que por ventura conseguissem importar máquinas elétricas deveriam adquirir também geradores particulares para a operação fabril. Isso majorava em demasia os custos de produção em uma realidade social na qual a demanda interna era restrita. Além disso, cabe mencionar as dificuldades existentes na importação de carvão por parte de economias regionais caracterizadas por setores agrícolas exportadores deprimidos.


 

4. As evidências sobre o segmento manufatureiro do mercado de trabalho


 

Nesta seção, apresentaremos dados referentes ao mundo do trabalho a partir dos dados do censo de 1920. Voltamos nossos olhos para essas fontes com o objetivo de remontar os contornos empíricos do desenvolvimento das relações sociais de produção especificamente capitalistas sob a ótica espacial no Brasil.

Os recenseamentos industriais e demográficos arrolam qualquer tipo de unidade produtiva responsável pelo emprego de trabalhadores que efetue transformação de matérias primas em bens mais elaborados, independentemente do tamanho dos estabelecimentos e, principalmente, de sua natureza. Por isso, pequenas oficinas são agrupadas ao lado de fábricas propriamente ditas.

De acordo com Lenin, a relação salarial só é compatível com certos segmentos da manufatura capitalista e, sobretudo, da grande indústria. A forma de separação do estrato genuinamente capitalista da produção industrial das atividades de natureza artesanal, proposta por ele, é quantitativa37.

Seguindo Lenin, Sérgio Silva, a partir do censo industrial de 1920, delimitou o assalariamento da grande indústria capitalista diante dos demais tipos de relações sociais de produção travadas na manufatura, separando os operários que trabalhavam em fábricas com mais de 100 trabalhadores daqueles inseridos nos estabelecimentos que empregavam um número inferior a este38. Nossa contribuição para o conhecimento acerca das relações sociais de produção no Brasil da Primeira República traz duas novidades.

A primeira é a produção de evidências empíricas semelhantes para os principais estados do Nordeste. A segunda, por sua vez, parte da concepção de que a grande indústria também pode ser definida pelos aspectos técnicos da produção, como o emprego de maquinaria moderna ou o uso intensivo de energia elétrica por parte das empresas.

Os dados do censo econômico de 1920 não trazem informações sobre o número de trabalhadores inseridos em fábricas que predominavam no uso de energia elétrica. A aproximação possível concerne em recortar as empresas que se organizavam sob a forma de Sociedades Anônimas (S.A.) em relação às demais. As empresas que tinham ações em bolsa de valores eram as maiores nas regiões estudadas. Além de se destacarem do ponto de vista do valor do capital instalado, utilizavam mais de 60% da energia elétrica consumida pela indústria em todas as localidades em tela39. Tendo em vista esses apontamentos, reproduzimos os principais resultados na tabela seguinte:


 

Tabela 6

Dimensões da Grande Indústria - 1920

Região

Operários inseridos em fábricas com mais de 100 trabalhadores

% no total dos ocupados na indústria na região

% na PEA da região

Operários empregados em sociedades de capital (S.A.)

% no total dos ocupados na indústria

% na PEA

Estado

Cidade

 

 

 

 

 

 

Bahia

 

11.621

8,3%

1%

6.053

4,3%

0,6%

Pernambuco

 

11.073

15%

1,7%

7.414

10%

1,1%

Rio de Janeiro

 

13.651

23%

2,5%

12.396

20%

2,3%

 

D.F.

35.554

23%

7%

27.303

18%

5,3%

São Paulo

 

54.123

23,6%

3,6%

43.705

19%

3%

 

S.P. Capital

37.186

37,5%

15,5%

*******

******

*****

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados arrolados nos censos industrial e demográfico de 1920.


 

Comecemos a análise dos dados pelo critério primeiramente proposto por Lenin. Como era esperado, a letargia econômica baiana se traduziu em limitadas dimensões tomadas pela grande indústria. Conforme indicam os dados, apenas 8,3% dos trabalhadores da Bahia estariam inseridos no núcleo mais dinâmico do setor secundário. Em Pernambuco, o principal núcleo industrial nordestino, cerca de 15% dos operários teriam vivenciado a experiência da labuta na grande indústria nos anos 1920.

A expansão do setor mais avançado da indústria atingiu patamares diferentes no Centro-sul. Quase um quarto dos trabalhadores manufatureiros estariam inseridos nesse segmento industrial tanto na Capital Federal quanto nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Ainda de acordo com amostra produzida com os dados censitários, podemos afirmar que o mercado de trabalho posicionado na cidade de São Paulo era aquele que detinha maior densidade em relação aos demais. Nessa cidade, 37,5% dos ocupados na indústria, mais que a terça parte do total, vivenciariam o trabalho no segmento capitalista da manufatura.

Era nessa cidade na qual a grande indústria teria atingido as dimensões mais relevantes diante da fração manufatureira do mercado de trabalho. Dessa forma, afirmamos que esse era o mercado de trabalho mais dinâmico no sentido da socialização da inserção produtiva da mão de obra típica da Revolução Industrial. Segundo Barbosa, a grande indústria paulistana seria responsável por quase 14% dos assalariados do país40. Significa dizer que essa cidade era um caso excepcional no que tange à promoção do assalariamento no começo do século passado.

Passemos para a outra forma adotada de dimensionar a grande indústria. De acordo com as evidências produzidas pelo trabalho empírico, o emprego em Sociedades Anônimas era responsável pela inserção produtiva de apenas 4% dos trabalhadores manufatureiros empregados na Bahia e 11% em Pernambuco. Esse pequeno peso relativo na fatia manufatureira do mercado de trabalho faz sentido diante de uma região letárgica do ponto de vista econômico, dotada de um tecido industrial predominantemente artesanal. O panorama da grande indústria no Centro-sul traçado por esse procedimento metodológico é mais homogêneo. Seguindo as informações da Tabela 6, em torno de 20% dos ocupados na manufatura na Capital Federal e nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro estariam vinculados produtivamente a esse estrato da produção. Infelizmente, não há dados de emprego de força de trabalho nas S.A. da cidade de São Paulo.

O assalariamento não era um privilégio apenas da grande indústria. Segmentos da manufatura capitalista também detinham potencial em espraiar formas de trabalho que passavam pela forma salário. A tabela que segue foi produzida a partir da separação dos trabalhadores empregados em estabelecimentos nos quais atuavam 20 ou mais indivíduos em relação aos demais trabalhadores arrolados no censo econômico.


 


 

Tabela 7

Trabalhadores potencialmente assalariados da indústria - 1920

Região

Operários potencialmente assalariados

% nos ocupados na indústria

% na PEA

Estado

Cidade

 

 

 

Bahia

 

13.013

9,3%

1,2%

Pernambuco

 

13.747

19,5%

2%

Rio de Janeiro

 

15.073

25,8%

2,8%

 

D.F.

48.528

31,4%

9,4%

São Paulo

 

67.676

29,5%

4,6%

 

S.P. Capital

46.697

46,5%

19,5%

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do censo demográfico e industrial de 1920.


 

Consideramos que os números absolutos contidos na Tabela 7 representam uma proxy do total de assalariados na indústria nas diversas regiões selecionadas. Os dados demonstram que os trabalhadores potencialmente assalariados na indústria baiana não atingiam a décima parte dos trabalhadores manufatureiros do estado. Em Pernambuco, onde o segmento industrial era mais robusto, o assalariamento unia 20% dos ocupados na manufatura.

Nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, o assalariamento potencial ultrapassava um quarto do total de ocupados na indústria. Os destaques estavam para as cidades nas quais essa atividade havia se desenvolvido mais: a capital federal e a paulista. No Distrito Federal, o assalariamento tocava quase um terço dos empregados manufatureiros. Em São Paulo, o potencial assalariamento atingia 46,5% do total, ou seja, quase metade dos trabalhadores da manufatura. Se a cidade de São Paulo assumia seu perfil industrial já nas primeiras décadas do século passado, o nascente mercado de trabalho já contava nesse momento com uma relevante fração industrial.

As dimensões da grande indústria e do assalariamento potencial formam um lado da moeda no que diz respeito à disseminação de relações sociais de produção compatíveis com a acumulação de capital de maneira geral. O outro lado dessa moeda é representado pelo amplo espectro de formas de trabalho não plenamente assalariadas que compunham o quadro geral do espaço de transação de força de trabalho. Tão relevante quanto buscar os contornos demográficos da novidade, no que concerne ao trabalho, é buscar as dimensões da mobilização de força de trabalho por parte dos estratos manufatureiros identificados com as formas artesanais de produção, nas quais a maquinaria praticamente inexiste.


 

Tabela 8

Inserção dos trabalhadores nas atividades de natureza artesanal da manufatura - 1920

Região

Artesãos

% nos ocupados na indústria

% na PEA

Estado

Cidade

 

 

 

Bahia

 

126.078

90%

11,6%

Pernambuco

 

56.566

80%

8,6%

Rio de Janeiro

 

43.210

74%

8,1%

 

D.F.

105.869

68,5%

20,6%

São Paulo

 

161.604

70,4%

11%

 

S.P. Capital

53.691

53,4%

23,3%

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do censo demográfico e industrial de 1920.


 

Captamos o segmento não capitalista da manufatura através da soma dos trabalhadores inseridos nos menores estabelecimentos (menos de 20 artesãos) com a diferença entre o número de trabalhadores manufatureiros arrolados no censo demográfico em relação ao censo econômico41. O artesanato formava um setor desorganizado da produção manufatureira, identificado com o uso de mão de obra familiar. Além disso, nesse segmento manufatureiro não havia separação entre o patrão e o empregado, sob a qual a relação salarial se fundamenta.

Como era esperado, os trabalhadores inseridos em atividades de natureza artesanal da manufatura compunham 80% e 90% do total de ocupados no setor secundário, respectivamente, em Pernambuco e na Bahia. O segmento artesanal absorvia mais de 70% dos trabalhadores manufatureiros nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Havia grandes fábricas no interior - como as de Petrópolis, Campinas, Sorocaba etc. Entretanto, o trabalho em pequenas oficinas e, sobretudo, a produção doméstica de tecidos e de roupas, predominava nessas realidades marcadamente rurais.

Voltemos o foco da análise para os espaços urbanos mais dinâmicos do Brasil. Chama atenção o vultoso peso relativo do setor artesanal na Capital Federal, onde quase 70% dos trabalhadores estavam inseridos no setor desorganizado da produção. O artesanato também predominava em São Paulo. Contudo, sua participação relativa no total de empregados atingia 54%, marca muito inferior a qualquer outra parte do país. Portanto, podemos afirmar que, além das dimensões mais avantajadas tomadas pelo emprego no estrato superior da produção industrial, o mercado de trabalho paulistano era menos heterogêneo do que o da Capital Federal.

Tais evidências demonstram que a disseminação do assalariamento por parte da manufatura tomava diferentes contornos regionais no Brasil da Primeira República. Mesmo no Centro-sul, a relação salarial deve ser vista como uma franja da estrutura da força de trabalho. Uma parcela pequena do mercado de trabalho era capaz de articular as relações sociais típicas do capitalismo. A fragmentação econômica do Brasil produziu nichos de mercados de trabalho regionais, cujas dinâmicas eram dadas tanto pelo crescimento econômico regional quanto pelo engate comercial na economia-mundo.


 

Conclusões


 

A inserção externa, os diferentes ritmos de expansão do capital industrial e a importância relativa da renda monetária na forma de estruturação dos arranjos de força de trabalho no campo são elementos relevantes para a compreensão das raízes da concentração da riqueza no Centro-sul do Brasil. O grau de conexão paulista no mercado internacional favoreceu a dilatação da demanda interna em São Paulo via expansão do colonato, possibilitou a acumulação de recursos que poderiam ser investidos em novas atividades, como a indústria, e motivou a entrada de capital estrangeiro nos setores dos serviços de utilidade pública, como a produção e distribuição de energia elétrica. A letargia nordestina se contrapunha a esse quadro transformador.

A análise das frações manufatureiras do mercado de trabalho, sob a ótica espacial, revelou as discrepâncias nas dimensões tomadas pela grande indústria e pelo assalariamento potencial entre as regiões mais dinâmicas do Centro-Sul e o Nordeste, no qual a Bahia era um destaque negativo.

Podemos afirmar que o emprego genuinamente capitalista representava uma franja superior que pairava sobre uma vasta força de trabalho submetida a relações sociais de produção não assalariadas. De maneira geral, as evidências empíricas presentes neste trabalho nos levam a constatar que mesmo os nichos de mercado de trabalho posicionados nas regiões mais importantes em termos econômicos eram incompletos, uma vez que neles não havia predomínio das relações salariais.

A cidade de São Paulo aparece como um caso excepcional em meio ao Brasil, pelo fato de o assalariamento industrial ter encontrado ali seus contornos mais amplos, mesmo que o predomínio das atividades artesanais da manufatura ainda fosse uma realidade. O Nordeste trazia uma realidade distinta. As limitadas dimensões tomadas pelo assalariamento industrial permitem trazer para a Primeira República a hipótese de Francisco de Oliveira acerca da descomunal dificuldade em formar mercados de trabalho no Nordeste42.

Se a formação do capitalismo requer a mercantilização da força de trabalho em larga escala, devemos descartar o uso desse conceito para a compreensão das transformações econômicas e sociais da Primeira República. Isso não significa que esse período não tenha contribuído para o ulterior desenvolvimento capitalista no Brasil. Afinal de contas, esse processo teve natureza fragmentária e cumulativa na história econômica brasileira.

Consideramos o conceito de modernização de Celso Furtado capaz de apreender a natureza e as limitações das transformações em curso nesse período. Para ele, a modernização é encarada como a assimilação de progresso técnico, capaz de atualizar o padrão de consumo público e privado sem grandes modificações qualitativas no processo interno de acumulação de capital, no progresso dos métodos produtivos e nas relações sociais de produção43. Para Furtado, esse tipo de atualização foi possível devido à possibilidade de transformação do excedente de divisas acumuladas pelo setor exportador, ainda baseado em relações sociais de produção tradicionais, em importações de maquinaria e equipamentos modernos capazes de dar fôlego a um processo um tanto quanto superficial de diversificação das estruturas produtivas internas.

Aplicado ao contexto em tela, notamos a modificação do padrão de consumo nas cidades, materializada na expansão dos transportes urbanos, na expansão das redes de abastecimento de água e esgoto, no uso da eletricidade, na ampliação do consumo de bens industriais produzidos internamente etc. Entretanto, como frisamos linhas atrás, o Complexo Cafeeiro, em geral, e a indústria, em particular, não foram capazes de promover mudanças qualitativas profundas na estrutura social, como o adensamento do mercado de trabalho através da generalização do assalariamento.


 

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH-USP.

2 Karl Marx, Formações Econômicas Pré-Capitalistas, 3.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 65, 109 e 110.

3 Alexandre de Freitas Barbosa, A Formação do Mercado de Trabalho no Brasil, São Paulo, Alameda, 2008, p. 44.

4 Nossa referência teórica é Dale Tomich, “A Escravidão no Capitalismo Histórico: Rumo a uma História Teórica da Segunda Escravidão”, em Rafael Marquese e Ricardo Salles (org.), Escravidão e Capitalismo Histórico no Século XIX, Cuba, Brasil e Estados Unidos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2016, p.55.

5 Trata-se do conceito cunhado por Wilson Cano, Raízes da concentração industrial em São Paulo, 4. ed. Campinas, IE-UNICAMP, 1998, p. 25.

6 Utilizamos esse conceito de acordo com a acepção conferida a ele nas obras de Celso Furtado, “Uma Política para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) (1959)”, em Arquivos Celso Furtado 3: O Nordeste e a Saga da Sudene, Rio de Janeiro, Centro Internacional Celso Furtado, 2017. Também utilizamos o conceito de Nordeste de Manuel C. de Andrade, A Terra e o Homem no Nordeste, Contribuição ao Estudo da Questão Agrária no Nordeste, 7.ed. São Paulo, Cortez, 2005.

7 Dale Tomich, Pelo Prisma da Escravidão, São Paulo, Edusp, 2011, p. 75.

8 Celso Furtado, Formação Econômica do Brasil, 17. ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1980, p. 152.

9 David Deanslow, “As Exportações e a Origem do Padrão de Industrialização Regional do Brasil”, em Werner Baer et alli (org.), Dimensões do Desenvolvimento Brasileiro, Rio de Janeiro, Campus, 1978, p. 24-28.

10 Rafael Marquese e Ricardo Salles. “A Escravidão no Brasil Oitocentista: História e Historiografia”, em: Rafael Marquese e Ricardo Salles (orgs.). A Escravidão no Brasil Oitocentista: História e Historiografia, p. 139.

11 David Deanslow, Idem, p. 29-30.

12 Thales Pereira, The Cotton Trade and Brazilian Foreign Commerce During the Industrial Revolution, Tese de Doutorado (FEA-USP), 2017, p. 26.

13 Vamireh Chacon, “Algodão e Tecidos no Nordeste (Um Caso Típico de Interrelacionamento de Agricultura e Indústria)”, em: Ciência & Trópico (Fundaj), Recife, Volume 2, Núm. 1, 1974, p. 28.

14 Inaiá M. M. de Carvalho, O Nordeste e o Regime Autoritário: Discurso e Prática do Planejamento Regional, São Paulo, Hucitec, SUDENE, 1987, p. 37.

15 Manuel C. de Andrade, A Terra e o Homem no Nordeste, Contribuição ao Estudo da Questão Agrária no Nordeste, 7.ed. São Paulo, Cortez, 2005, p.133.

16 Manuel C. de Andrade, A Terra e o Homem no Nordeste, Contribuição ao Estudo da Questão Agrária no Nordeste, 7.ed. São Paulo, Cortez, 2005, p. 134 e 135.

17 Claudia Tessari, Braços Para a Colheita. Sazonalidade e Permanência do Trabalho Temporário na Agricultura Paulista (1890-1915), São Paulo, Alameda, 2012, p.169.

18 Ver Warren Dean, Rio Claro. Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura (1820-1920), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 165.

19 Ver José de Souza Martins, O Cativeiro da Terra, 9. ed. Contexto, 2010.

20 Thomas Holloway, Imigrantes para o Café: café e sociedade em São Paulo (1886-1934), 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, p. 122-126.

21 Antônio Delfim Netto, O Problema do Café no Brasil, São Paulo, Unesp, 2009, p. 277.

22 Alexandre de F. Barbosa, A Formação do Mercado de Trabalho no Brasil, São Paulo, Alameda, 2008, p.163.

23 Dale Tomich. “A Escravidão no Capitalismo Histórico: Rumo a uma História Teórica da Segunda Escravidão”, em Rafael Marquese e Ricardo Salles (org.), Escravidão e Capitalismo Histórico no Século XIX, Cuba, Brasil e Estados Unidos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2016, p. 83.

24 Antonio Rocha Magalhães, Industrialização e Desenvolvimento Regional: A Nova Indústria do Nordeste, Brasília, IPEA/IPLAN, 1983, p. 263.

25 Roberto Simonsen, Evolução Industrial do Brasil e Outros Estudos, São Paulo, Editora da USP, 1973, p. 15.

26 Wilson Cano, Raízes da concentração industrial em São Paulo, 4. ed. Campinas, IE-UNICAMP, 1998, p. 121.

27 Wilson Suzigan, Indústria no Brasil: origens e desenvolvimento, Nova Edição. São Paulo, Hucitec, 2000, p. 97.

28 Warren Dean, A Industrialização de São Paulo, 3.ed. São Paulo, Difel, 1971, p. 57.

29 Alexandre Saes, Conflitos do Capital, Bauru, Edusc, 2010, p. 168 e 182.

30 Giovani Arrighi, O Longo Século XX, São Paulo, Unesp, 1994, p. 187.

31 A principal delas é a de Wilson Cano, Raízes da concentração industrial em São Paulo, 4. ed. Campinas, IE-UNICAMP, 1998.

32 Warren Dean, A Industrialização de São Paulo, 3.ed. São Paulo, Difel, 1971, p. 105.

33 Antônio Barros de Castro, 7 Ensaios Sobre Economia Brasileira, Vol. 2, Rio de Janeiro, Forense, 1971, p.111.

34 Oswaldo Guerra e Francisco Teixeira, “50 Anos da Industrialização Baiana. Do Enigma a uma Dinâmica Exógena e Espasmódica”, em Bahia Análise & Dados, Vol. 10, n. 1, jun. 2000, p. 90.

35 Alexandre Saes, Conflitos do Capital, Bauru, Edusc, 2010, p. 208.

36 Recenseamento Geral do Brasil de 1920, DGE, Vol. 5, Parte 1, “Indústria”, 1928, p. XCVI.

37 Vladimir Ilich Lenin, O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia: O Processo de Formação do Mercado Interno e da Grande Indústria, São Paulo, Abril Cultural, 1982, p. 209.

38 Sérgio Silva, Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil, 8.ed. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1995, p. 76 e 77.

39 Recenseamento Geral do Brasil de 1920. DGE, Vol. 5. Parte 1. “Indústria”, 1928, p. 154 e 155.

40 Alexandre de F. Barbosa, “O Mercado de Trabalho: Uma Perspectiva de Longa Duração”, em Estudos Avançados, Vol. 30, Núm. 8, São Paulo, p. 17.

41 Os detalhes desses procedimentos metodológicos podem ser conferidos na dissertação de Mestrado de Marcelo Freitas S. de M. Cruz. Mercado de Trabalho e Classe Trabalhadora em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1920. Dissertação de Mestrado, (FFLCH-USP), 2014, p. 119-125.

42 Francisco de Oliveira, “Anos 1970: As Hostes Errantes”, em Novos Estudos, Cebrap, Vol. 1, Núm. 1, Dezembro-1981, p. 20-24.

43 Celso Furtado, O mito do desenvolvimento econômico, 4.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, p. 81-87.