O ser humano singular e o conceito de Mente na obra de Kurzweil: do neocórtex biológico à engenharia reversa do córtex cerebral

 

Luciana Santos Barbosa (PPG-NEC/USP)

Apresentação da pesquisa

Esta pesquisa de doutorado parte de um estudo crítico da obra How to Create a Mind: The secret of human thought revealed (2012) de Ray Kurzweil, na qual o autor relaciona a Neurociência aos seus projetos de Inteligência Artificial e propõe transformar um computador num cérebro similar ao do ser humano. Neste sentido, a investigação concentra-se no estudo do conceito de Mente, tal qual é construído ao longo da obra. O trabalho de Kurzweil incide na relação e interação do humano com a máquina, envolvendo os seguintes temas: correlatos neurais da consciência, engenharia reversa do cérebro humano, desenvolvimento tecnológico atrelado à inteligência artificial, biomecatrônica, biorobótica, biomecânica.

Quando Kurzweil se propõe a construir um cérebro digital, questões conceituais, filosóficas e éticas importantes para a comunidade científica e para a sociedade surgem e exigem para a sua análise a interdisciplinaridade. A hipótese aqui apresentada defende que o processo de construção do conceito de Mente, que evolve as definições de emoção, livre arbítrio, identidade e consciência, tal como são apresentados pelo autor, embute aspectos de caráter ideológico e que este representa um pensamento hegemônico (mecanicista e funcionalista) nas áreas que se dedicam ao estudo do papel do cérebro no pensamento. Este modelo de funcionamento do cérebro humano afeta diretamente o meio científico, tecnológico e acadêmico, e influencia indiretamente outros âmbitos sociais, como o político, econômico, afetivo, da saúde, de trabalho ou das relações com o próprio corpo.

Por “mente” entende-se uma entidade ou processo que possui consciência, intencionalidade, identidade, memória, emoção, compreensão linguística e qualidades subjetivas. A relação Mente-Cérebro apresentada por Kurzweil busca explicar essas dimensões do mental mediante processos que definem seu funcionamento, ou seja, dentro de uma perspectiva funcionalista. Em outras palavras, há uma redução do mental aos processos causais subjacentes, que se forem controlados aumentarão o poder do ser humano sobre si mesmo e sobre outros seres humanos. A capacidade de controlarmos o nosso próprio destino é extremamente sedutora, prolongando cada vez mais a sobrevivência do corpo biológico e artificial, em um cenário utópico. Mas tal capacidade de controle também poderá ser estendida para o controle do ser humano pelo ser humano, em cenários distópicos de consolidação de uma elite dominante detentora dos meios de produção dos artefatos tecnológicos. Esta é uma das dimensões ideológicas subjacentes ao discurso otimista de Kurzweil.

Neste sentido o objetivo desta pesquisa é, a partir da revisão crítica, histórica e analítica do processo de construção destes conceitos, examinar a hipótese de que há um caráter ideológico importante no discurso do autor, cuja influência na sociedade deverá ser examinada, tais quais os outros elementos e conceitos interligados também emergentes da intersecção da tecnologia e das neurociências.

Os desdobramentos de aplicação prática do objetivo principal será a produção de material de divulgação cientifica das pesquisas, teses, hipóteses e funcionamento de tecnologias (invasivas e não invasivas) que relacionem cérebro e máquina, com o intuito de instrumentalizar as populações (diretamente afetadas por estes avanços científicos) a reflexão sobre as novas tecnologias para, numa relação que se fará mais transparente, tomarem decisões mais conscientes sobre suas ações cotidianas, nas quais envolva as tecnologias. Este material de divulgação materializar-se-á com o desenvolvimento de um “aplicativo” de avalição tecnológica, que será produzido junto ao Laboratório de Biomecatrônica, sob coordenação do orientador desta pesquisa, Arturo Forner- Cordero.

Outro objetivo de caráter prático da pesquisa e deste “aplicativo” é a produção de uma interface de interação popular com o governo para a formulação de leis de regulação ou adaptação das tecnologias de interações cérebro-máquinas e de IA, que impactam diretamente no corpo humano por meios não apenas físicos, mais também psicológicos e que transformam indiretamente (ou não) as relações humanas, sociais e com o ambiente, de maneira a não causar danos para as sociedades e os ecossistemas. A ideia é desenvolver uma interface que contemple o surgimento da necessidade de uma “cidadania digital 4.0”, que não apenas conscientize sobre os impactos das tecnologias sobre as sociedades, mais também influa sobre o desenvolvimento das tecnologias.

Ideologia na obra de Kurzweil

2.1. Determinismo tecnológico.

Com o desenvolvimento da internet, a tecnologia passou a ser vista como uma maneira de emancipar, de libertar a humanidade. Os espaços virtuais tornaram-se o lugar onde há maior oportunidade de expressar opiniões, onde a hierarquia e as estruturas de poder se diluem, transferindo maior poder ao povo de forma a fortalecer o “determinismo tecnológico”.

O determinismo tecnológico prega que a tecnologia produzida pelo ser humano é também o que promove sua ruptura com o mundo natural. Nos destacamos dos outros animais e os dominamos pois detemos a tecnologia e, nesse sentido, ter tecnologia é ter poder. Significa possuir as ferramentas para superar os limites da natureza e inclusive do nosso próprio corpo. Conhecer o nosso corpo e racionalizá-lo é o que nos dará suporte para melhorar as tecnologias. O conhecimento científico, a medida de nós mesmos e o desenvolvimento tecnológico poderá nos libertar, e esta liberdade está intimamente ligada com a nossa evolução. Segundo Kurzweil,


 

A última invenção que a evolução biológica precisou fazer – o neocórtex – está levando inevitavelmente à última invenção que a humanidade precisa fazer – máquinas realmente inteligentes – e o projeto de uma inspira a outra. A evolução biológica vai continuar, mas a evolução tecnológica está se movendo um milhão de vezes mais depressa do que a outra. Segundo a lei dos retornos acelerados, no final deste século seremos capazes de criar a computação “nos limites do possível, com base nas leis da física aplicadas à computação. Damos à matéria e à energia organizadas dessa forma o nome de “computronium”, que é muito mais poderoso, quilo por quilo, do que o cérebro humano. Não será apenas a computação simples, mas algo repleto de algoritmos inteligentes que constituem todo o conhecimento do homem e da máquina. Com o tempo, teremos convertido boa parte da massa e da energia de nosso pequeno recanto da galáxia adequados para esse propósito em computronium. Então, para manter em funcionamento a lei dos retornos acelerados, precisaremos nos espalhar para o resto da galáxia e do universo.1


 

A citada racionalização extrema da vida subjetiva que nos desobriga de uma experiência corporal, proposta nesta citação de Kurzweil, caracteriza-se como uma das teorias do determinismo tecnológico, que compreende a tecnologia como impulsora do desenvolvimento, das estruturas e valores culturais de uma sociedade.

Um dos primeiros usos do termo foi pelo economista e sociólogo norte americano Thorstein Veblen, quando ele criticou duramente o sistema capitalista em sua obra A Teoria da Classe Ociosa de 1899. Veblen ficou conhecido principalmente por causa da combinação de uma perspectiva evolutiva de Darwin com a sua abordagem da análise econômica. Na obra, o autor argumenta que a divisão fundamental na sociedade ocorre entre os que constroem seus caminhos através da exploração e daqueles que o fazem pela indústria. Na mesma linha de raciocínio, o determinismo tecnológico se dá por duas frentes: a primeira é a do desenvolvimento da tecnologia, que segue por si só um caminho previsível, rastreável e a segunda é quando essa tecnologia causa "efeitos" colaterais sobre as sociedades.

O filósofo canadense Herbert Marshall McLuhan, conhecido pela sua teoria da comunicação, desenvolveu amplamente estudos filosóficos sobre as transformações sociais promovidas pela revolução tecnológica do computador e das telecomunicações. O que se destaca aqui é que a dita racionalização de tudo, a possibilidade de medirmos o ambiente, os sistemas animais, sociais e o próprio corpo humano nos leva à ilusão de que podemos medir e controlar inclusive o futuro, um futuro que pode ser perfeito, ou seja, a crença numa sociedade utópica. Construímos assim, a falsa impressão de que podemos controlar tudo através da racionalização e da previsão.

Essa ideia se faz no discurso da tecnociência como o único caminho possível para o progresso. Este imaginário utópico da tecnologia, geralmente leva ao determinismo tecnológico, e hoje, associa-se, em parte, à Inteligência Artificial, veiculada como promessa de salvação da humanidade.

É nesta linha de raciocínio que Jaron Lanier2 formula suas críticas à posicionamentos como o de Kurzweil. No texto “One-Half a Manifesto”, publicado na revista on-line da Associação Edge.br, Lanier denuncia e se opõe ao que ele chama de “totalitarismo cibernético”. Segundo ele, esta visão leva a uma espécie de cataclisma, onde os computadores ultra inteligentes tornam-se mestres dos nossos corpos e das nossas vidas3.

A intensão de realizarmos o download de toda a informação do cérebro em um computador é um desdobramento prático da teoria de Lanir, e que reverbera no cotidiano de algumas sociedades altamente tecnológicas, onde almeja-se por exemplo, a possibilidade de vivermos em uma realidade virtual, dedicando nosso tempo navegando na internet, e deixando em segundo plano o contexto social à nossa volta (ou seja, a parte não mediada por dispositivos eletrônicos).

2.2. Racionalizando tudo.

Kevin Adam Curtis é um documentarista britânico associado à BBC. Em All Watched Over the Machines of Loving Grace de 2011, série de documentários apresentada pela televisão da BBC, Curtis argumenta que os computadores falharam em libertar a humanidade, em vez disso, os computadores "distorceram e simplificaram nossa visão do mundo ao nosso redor".

No segundo episódio dessa série, ele apresenta fatos que buscam as origens da ideia do ecossistema como um sistema autorregulado, do qual o ser humano faz parte. Seguindo essa mesma linha de raciocínio dos ecossistemas, a cibernética entendia o ser humano como parte de um sistema ordenado, ideia que diminuía as diferenças funcionais entre os seres humanos e as máquinas e que apontava para um mecanismo oculto de regulação da natureza num ciclo de retroalimentação contínuo.

O modelo computacional da mente surge como uma solução para o desafio das questões subjetivas do cérebro colocado pelo behaviorismo, corrente filosófica da psicologia, que tem como unidade empírica para a investigação do cérebro, o comportamento. Alan Turing foi fundamental no desenvolvimento da ciência da computação e na formalização do conceito de algoritmo e computação com a máquina de Turing, desempenhando um papel importante na criação do computador.

Seu trabalho junto com os intelectuais de diversas áreas construíram as bases de um modelo computacional com inspiração e pretensão de simular o cérebro humano, onde sistemas computacionais recriariam o pensamento.

A racionalização extrema da vida subjetiva que nos desobriga de uma experiência corporal, proposta por Kurzweil, caracteriza-se como uma das teorias do determinismo tecnológico, que compreende a tecnologia como impulsora do desenvolvimento, das estruturas e valores culturais das sociedades, assim como desta racionalização de todos os sistemas, inclusive o biológico.

O que se destaca aqui, é que a dita racionalização de tudo, a possibilidade de medirmos o ambiente, os sistemas animais, sociais e o próprio corpo humano nos leva à ilusão de que podemos medir tudo, inclusive o futuro. Construímos a falsa impressão de que podemos controlar tudo através da racionalização e da previsão e essa ideia se faz no discurso da tecnociência como o único caminho possível para o progresso.

Lanier acredita e defende no texto “One-Half a Manifesto”, que os seres humanos não podem ser considerados computadores biológicos, ou seja não devemos comparar os cérebros com os computadores. Para ele, o maior problema desta teoria não recai no fato dela ser falsa, mas por ela ser apresentada como o único caminho para compreender a vida e a realidade, e por conseguinte a única solução possível para nossos problemas. A ilusão da necessidade de objetividades, paralisa a capacidade dos seres humanos de lutar contra o paradigma do destino autorrealizável implicado nesta racionalização de tudo.

2.3. Tecnologia e Neurociências.

As descobertas das Neurociências têm contribuído para novos olhares na maneira de pensar as funções mentais e o comportamento humano. O conhecimento daí oriundo ressignifica discussões antigas sobre a natureza da mente. Os vários campos do conhecimento científico que se dedicam ao estudo da Mente e Cérebro reúnem bastante material para consolidar teses que se encontram na intersecção das neurociências e da tecnologia. A inteligência artificial e ciência da computação é um exemplo, onde eles utilizam hipóteses sobre o funcionamento do cérebro nas suas pesquisas e desenvolvimento. O encéfalo tem sido o protagonista de uma vasta produção literária por autores associados ao Vale do Silício. Kurzweil é um autor prolixo nesta área.

Em 1990, ele publicou The Age of Spiritual Machines, onde expõe suas teorias sobre o futuro da tecnologia, assim como sua análise das tendências de longo prazo na evolução biológica e tecnológica, enfatizando o futuro promissor do desenvolvimento da IA e da arquitetura de computadores. Esta obra inicia uma sequência de outros livros preocupados com esta temática, discutindo um futuro onde a tecnologia será altamente avançada e super-inteligente, argumentando que por isso um novo humano terá de emergir.

Com The Singularity Is Near: When humans transcend biology, publicado em 2006, Kurzweil populariza o termo “singularidade”3 e expõe suas teorias sobre a inteligência artificial, evolução, longevidade e o trans-humano. Inspirado neste livro, em 2007 Barry Ptolemy dirigiu o documentário Transcendent Man, ampliando ainda mais a divulgação da hipótese da singularidade.

No último livro da série, How to Create a Mind: The secret of human thought revealed, Kurzweil explica a Teoria da Mente baseada em reconhecimento de padrões (TMRP), que descreve o neocórtex como um sistema hierárquico de reconhecedores de padrões, e argumenta que simular essa arquitetura em máquinas poderia levar a uma superinteligência artificial. Apesar de esta hipótese, de que o poder de processamento dos computadores suplantará a dos humanos, ser bem aceita entre os futurólogos, o que caracteriza a visão funcionalista de Kurzweil é a tese associada de que esta super-inteligência artificial envolverá uma “consciência” ou uma Mente, como a humana.

Kurzweil não só afirma ser possível reproduzir a Mente em máquinas, tal qual a humana, com sua subjetividade, sua intencionalidade, sua vivência de qualidades sensoriais, sua compreensão linguística, como também enfatiza sua expectativa de que esse acontecimento se fará em breve. Além disso, prevê uma integração do humano com componentes artificiais inteligentes, levando a uma grande ampliação da capacidade humana de concentração e de aprendizado, a ponto de superarmos o ser humano comum e criarmos o pós-humano ou trans-humano, que viverá por tempo indefinido e por meio de diferentes suportes digitais.

Ele defende a ideia de que a interação do humano pré-histórico com a tecnologia neolítica foi um elemento fundamental para a evolução biológica humana, por tornar “os seres humanos mais inteligentes”, ao contribuir para o desenvolvimento do neocórtex. Por exemplo, o ser humano expandiu suas capacidades cerebrais com a escrita, que foi uma tecnologia que o permitiu conservar a memória para além do cérebro; segundo ele, este evento modificou nossa fisiologia cerebral e nos tornou mais inteligentes4. Sem esta tecnologia, compreendida como uma extensão do nosso corpo que ampliou nossas capacidades de ação, nosso alto grau de inteligência não teria surgido. Esta evolução biológica seguiu em desenvolvimento até ser limitada pelos nossos corpos, esta cápsula perecível.

Tal processo continuaria até hoje e no futuro, indicando assim a extrema importância da Inteligência Artificial. Ela não só nos ajuda em tarefas rotineiras do nosso cotidiano, como as chamadas telefônicas, os e-mails, ou em atividades mais complexas, como algoritmos inteligentes que pilotam aviões ou controlam sistemas de armazenamento, que tomam decisões financeiras de milhões de dólares ou que auxiliam em tratamentos médicos. Mais do que isso, a IA transformará o ser humano, tanto culturalmente quanto geneticamente.

Para a continuidade de nossa evolução, Kurzweil vê como caminho inevitável a construção de um cérebro digital e de um corpo artificial, para o melhoramento de nossa espécie. Isso promete muito mais do que algumas décadas a mais de vida: promete uma nova forma de viver, que será sem o corpo como o conhecemos. Ele inclusive prevê uma data para a “Era da Singularidade”, que seria em torno de 2045.

Na palestra ““How we need to remake the internet”, proferida no TED20185. Lanier conta, que embora inicialmente, nos anos 1980, quando ele trouxe ao público as primeiras demonstrações da realidade virtual, houvesse um “idealismo da cultura digital”, uma espécie de “missão socialista e esquerdista”, onde tudo poderia ser acessível a todos da rede gratuitamente, já se vislumbrava também os perigos desta tecnologia.

Para ele o principal problema está no aspecto empreendedor impregnados nestas tecnologias. Isso porque, tudo aquilo que está gratuito nas redes e é mediado por empresas cria conflito. Por exemplo, o Google e o Facebook nasceram gratuitos, no entanto ambos possuem anúncios. O que parecia “inofensivo” no início, passa a apresentar riscos, na medida que as tecnologias avançam e os algoritmos ficam cada vez melhores.

É sabido que profissionais da área da psicologia e neurociência cognitiva ganham cada vez mais espaço de atuação no Vale do Silício. Isso porque, a mediação das tecnologias pode influenciar o comportamento das pessoas. Citando Lanier, as redes sociais tornaram-se “impérios de modificação de comportamento”. As teorias de Kurzweil reforçam esse problema, que deixa o indivíduo mais passivo e suscetível de manipulação por estes “impérios” ou pelas empresas que detém estas tecnologias.

Neste sentido é possível atribuir conotação ideológica ao discursos de Kurzweil, quando nele é revelado que a prosperidade de uma classe dominante, detentora das tecnologias, se faz em detrimento de classes com menos recursos econômicos (e portanto tecnológicos). Onde, na maioria das vezes, estas classes não possuem informações sobre como estas tecnologias atuam. Isso torna todos os dados deixados por elas nas redes, material essencial que os grupos dominantes as influenciem psicologicamente, podendo com isso manipular o comportamento individual das pessoas, influenciar a política, a economia e transformar a sociedade como um todo.

No entanto, por enquanto estamos conectados à estas tecnologias de maneira não invasiva, ainda temos controle sobre elas na medida em que podemos escolher usá-las. Mas, segundo as previsões apresentadas no livro How to Create Mind, no futuro teremos chips implantados que nos permitirão melhorar nossas capacidades mentais, acelerando o processo de aprendizado, capacidade de memória e até nos possibilitando o acesso à internet, conectando nosso cérebro diretamente à rede.  Neste caso, como garantiríamos o controle de fluxo de informação? Ou se nossas mentes estivessem “baixadas” num computador, teríamos ainda a soberania sobre nossa subjetividade?   

Quando estas questões são pensadas a partir do viés mercadológico e capitalista, a resposta seria não. Afinal, não sendo todos possuidores do acesso à estas tecnologias (desenvolvidas em sua maioria no Vale do Silício), quem controlaria o fluxo de informações? Uma resposta possível seria: os mesmos que controlam este fluxo hoje.

É importante salientar, que hoje, este determinismo tecnológico é embasado também, num fenômeno que nomearemos aqui de “Neurofetichismo”. Trata-se de um conceito cunhado com base na definição de “ciberfetichismo”, apresentado no texto de Celso Rendueles: 


 

O determinismo tecnológico contemporâneo propõe exatamente o contrário de Marx. Em primeiro lugar, não considera que sejam necessárias grandes transformações políticas para maximizar a utilidade social da tecnologia. Ao contrário, a tecnologia contemporânea seria pós-política no sentido de que superaria os mecanismos tradicionais de organização da esfera pública. Em segundo lugar, considera que a tecnologia é uma fonte automática de transformações sociais libertadoras. Por isso, mais que de determinismo tecnológico, falarei em fetichismo tecnológico ou, considerando que a maior parte dessa ideologia se desenvolve no terreno das tecnologias da comunicação, de ciberfetichismo.6   


 

O Neurofetichismo se refere às verdades construídas em torno da neurociência, muitas vezes sem o consentimento dos cientistas envolvidos ou respaldo das pesquisas em desenvolvimento, em prol de interesses específicos de grupos, empresas ou instituições. A “utilidade social” das pesquisas desenvolvidas pelas neurociências, pesquisas por vezes sem resultados conclusivos para os profissionais da área, são utilizados por diversos campos sociais como, por exemplo, o marketing, o direito e o farmacológico, para legitimar crenças, vendas, decisoões, etc. Hoje o prefixo “neuro” tem sido utilizado indescritivelmente, algumas vezes sem um respaldo científico. As neurociências ganham uma força de legitimação e argumentação entre pessoas que não sabem necessariamente do que estão falando.

Com a racionalização dos sistemas naturais, o ser humano, que está no mundo em sua forma física, pode ser investigado, analisado. Seu corpo pode ser dissecado, as partes separadas, e o funcionamento das menores das células podem ser detectadas e observadas, contudo, com o avanço das pesquisas em nanotecnologia que nos permitem ter conhecimento sobre sistemas biológicos minúsculos, como as redes neurais.


 

2.4. Kurzweil, o evangelizador.

O engenheiro e futurista Martin Ford chamou muita atenção da mídia quando publicou seu livro que se tornou um best seller, The Rise of Robots: Technology and the threat of mass unemployment, publicado em 2015, onde ele analisa o emprego nesta nova era tecnológica. Ford traz uma perspectiva sobre o futuro do emprego que é compartilhada com um expressivo grupo do Vale do Silício.

Segundo Ford o avanço tecnológico é inevitável e as consequências podem ser negativas quando potencializam questões antigas e criam problemas novos que esbarram inclusive em questões éticas. Por outro lado, estas tecnologias também podem trazer soluções e contribuir para velhos desafios da sociedade. “Uma visão mais realista sugere que precisaremos contar com uma combinação de inovação e regulamentação, se quisermos abrandar os danos e nos adaptarmos com sucesso à mudança climática”7, conclui Ford.

Hoje, com a grande disseminação da tecnologia digital, o discurso dos grupos do Vale do Silício que detêm o poder tecnológico se tornou tão importante que suas perspectivas para o futuro não devem ser ignoradas, pelo contrário, precisamos estar atentos principalmente porque muitas de suas decisões impactam diretamente nas políticas e economias da grande maioria das sociedades.

A Inteligência Artificial vem ocupando papel de destaque e as consequências de seu crescimento exponencial dividem as opiniões de especialistas. Existem aqueles que temem as consequências e o impacto que o avanço da IA pode causar e há aqueles mais otimistas, que depositam nestas tecnologias as soluções para quase todos os problemas da humanidade.

Um dos principais entusiastas desta última perspectiva é Kurzweil, segundo Ford:


 

seu trabalho sobre a Singularidade no entanto, é uma mistura estranha composta de uma narrativa bem fundamentada e coerente sobre aceleração tecnológica, juntamente com ideias que parecem tão especulativas a ponto de chegar ao absurdo, incluindo, por exemplo, um sincero desejo de ressuscitar seu falecido pai, recolhendo seu DNA do túmulo e, em seguida, regenerando seu corpo utilizando nanotecnologia futurista.8


 

Para o autor, o mais controverso e duvidoso aspecto da visão de pós-singularidade de Kurzweil é a ênfase do engenheiro na “imortalidade”. No documentário Transcendent Man, de Barry Ptolemy, é construída uma atmosfera religiosa em torno do inventor. O filme, que é um misto de biografia e divulgação das pesquisas em IA, diz muito sobre a personalidade excêntrica deste inventor milionário que tenta provar cientificamente que a “imortalidade” é possível, e que ele e os pesquisadores do campo da IA e da neurociência concretizarão esta possibilidade em pouco tempo.

Outros pesquisadores de áreas distintas também veem em torno de Kurzweil um espectro religioso. Robert M. Geranci, professor de estudos religiosos da Faculdade de Manhattan, publicou em 2011 um artigo intitulado “The cult of Kurzweil: will robots save our souls?”, onde chama a atenção para o poder de alcance da “evangelização” promovida por Kurzweil, e para o fascínio que este misto do científico e do profano vem causando em nossa elite tecnológica. Como escreveu Ford: esta quase religião promovida pelo inventor é recebida como um “tipo de arrebatamento para o nerd”.

As novas tecnologias vêm possibilitando novas descobertas em várias áreas. A Inteligência Artificial é uma das beneficiarias e vem se disseminando com algoritmos de deep learning. Tecnologias de imagem a nível celular em Neurociências vêm abrindo diversas perspectivas, por exemplo estamos muito mais próximos de descobrir a cura de doenças como o Alzheimer. Por outro lado, a Neurociência vem inspirando a engenharia de projetos em Inteligência Artificial, e o exemplo que estudaremos é o caso do neocórtex artificial, apresentado por Kurzweil. Nesta troca mútua entre engenharia e ciência, a Filosofia da Mente não fica de fora, dado que há questões profundas sobre a natureza da consciência que irá requerer novas conceitualizações.

2.5. Questões para a filosofia.

A análise conceitual de questões filosóficas é fundamental para compreendermos não só os projetos que Kurzweil tem em curso, como o processo e toda a reflexão produzida por e a partir da Inteligência Artificial. Os elementos necessários para o desenvolvimento da Inteligência Artificial nascem dos estudos da computação, mas envolvem também discussões filosóficas, como aquelas presentes em Alan Turing e nas discussões filosóficas da área de Ciência Cognitiva. E na medida em que as inovações vão avançando surgem, em contrapartida, novos elementos ou conceitos para o debate filosófico.

O tecnólogo e filósofo Nick Bostrom, numa palestra no TED Talk em 2015, disse que as máquinas inteligentes serão a última invenção que a humanidade terá que fazer, pois depois que ela puder aprender por si só, não precisará mais do humano e não teremos mais controle da sua evolução. A partir dessa ideia, ele faz uma reflexão sobre o mundo que estamos construindo, na medida em que possibilitamos um poder de inteligência muito maior do que o nosso às máquinas. Ele questiona se estas máquinas, no futuro, irão preservar a humanidade como a conhecemos hoje; será que elas terão os mesmos valores que os nossos? Bostrom alerta para a necessidade de que, antes de criarmos uma mente tão poderosa, teremos que criar métodos para controlá-la.

O filósofo Oswaldo Giacoia Jr. diz, em entrevista para a Casa do Saber, que enquanto a filosofia encarar a tecnologia como uma mera ferramenta a serviço dos interesses humanos e sob controle racional e político da humanidade, ela não está preparada para encarar essa questão. A Filosofia precisa absorver estes novos conceitos em ebulição, para se debruçar sobre questões tão caras para as sociedades atuais e para as que apontam para o futuro.

A pesquisadora de semiótica Lucia Santaella salienta que já existe o híbrido do humano e a máquina. A tecnologia intrínseca à natureza humana e ao seu desenvolvimento como tal, tornou-se a extensão de nossos corpos. O ato de escrever é uma extensão da nossa memória, da nossa fala registrada; quando tiramos uma foto estamos reproduzindo uma imagem que antes reproduzíamos apenas mentalmente ou por desenho, e novamente estamos ampliando nossa capacidade de memória. No entanto, ela fica apreensiva diante de algumas ideias propostas pelos trans-humanistas, onde esta extensão humana é muito mais profunda. Uma das ideias defendida com entusiasmo por Kurzweil é o projeto de uma interação mais invasiva do humano com a máquina. Através do implante de “nanorobôs” em nosso cérebro, será possível a conexão imediata, sem a interferência de máquina externa, com a internet, o que possibilitará acessarmos informações muito mais rapidamente, assim como armazenarmos nossa memória em um compartimento virtual.

Os conceitos de consciência, livre arbítrio, memória, identidade, temas caros à esta pesquisa, têm sido amplamente discutidos por filósofos, neurocientistas, cientistas da computação e rendem ampla literatura sobre o assunto. Nesta pesquisa é dedicada atenção especial para esta bibliografia, que servirá de contexto para uma melhor avaliação das ideias de Kurzweil e do debate envolvido. Esta lista de autores inclui William James, Gilbert Ryle, Alan Turing, John von Neumann, Hilary Putnam, Daniel Dennett, John Searle, David Chalmers, Antonio Damásio, Oliver Sacks, Christof Koch, M.R. Bennett & P.M.S. Hacker, Eric R. Kandel, Peter Godfrey- Smith, João de Fernandes Teixeira e Osvaldo Pessoa Jr., para citar alguns.

Conclusão: A interdisciplinaridade.

A busca por prolongar a vida por tempo indefinido e recriar o humano já vem apresentando alguns efeitos sociais, por isso é fundamental o papel da ética nas diversas áreas envolvidas, como nas Ciências Biomédicas, Ciências Exatas e Engenharias e Ciências Humanas. Por exemplo, a mudança de comportamento devido ao uso de tecnologias e das novas interfaces tem trazido novos desafios para a Psiquiatria, além do uso cada vez mais disseminado de remédios para o melhoramento das atividades mentais, os chamados “nootrópicos”. Por isso é relevante uma reflexão sobre as maneiras que as interações cérebro-máquina, tanto as menos invasivas quanto as mais invasivas, afetam o comportamento das pessoas e a sociedade como um todo.   

Chegamos com isso a duas questões fundamentais para dar continuidade à nossa investigação acerca da obra de Kurzweil e das sociedades altamente tecnológicas. Por que se tornou tão importante o estudo do cérebro? E por que está nele a chave para compreendermos toda a nossa existência?  

A chave para abordarmos estas questões será o exame crítico da noção funcionalista de Mente, apresentada por Kurzweil. Com isso, buscaremos entender quais as principais questões da sociedade que estamos construindo, quando enveredamos por um entendimento meramente mecanicista e funcionalista do encéfalo humano.

Por fim, esta produção teórica, acerca dos conceitos apresentados no livro de Kurzweil, será a base de conteúdo para o desenvolvimento de uma tecnologia de interface que contribua para aproximar a sociedade do meio cientifico e tecnológico, facilitando o diálogo da população, dos desenvolvedores de tecnologias e dos governos.

Neste sentido, é estratégico esta pesquisa feita por uma historiadora, prioritariamente teórica, de um programa de Neurociências e Comportamento do Instituto de psicologia, ser desenvolvida também, num laboratório de biomecatrônica sob a orientação de um engenheiro e coorientada por um filósofo e físico. Pois aponta para a necessidade de integração entre as áreas envolvidas e para a importância de uma reflexão conjunta na busca de soluções para questões emergentes da relação entre a ciência, tecnologia e sociedade.


 


 

1 Kurzweil, Ray. Como Criar uma Mente: Os segredos do pensamento. São Paulo: Aleph, 2014, p. 337-338

 

2 Jaron Lanier é músico, filosofo e cientista da computação, conhecido principalmente pelo seu pioneirismo nas pesquisas de programação de linguagens virtuais (VPL), realidade virtual e seu posicionamento critico diante do advento da internet.

3 Singularidade tecnológica, então é uma hipótese que relaciona o crescimento tecnológico desenfreado de uma hiperinteligência artificial com as mudanças que ocorrerão e serão irreversíveis para a humanidade.  

 

4 Kurzweil, Ray. Como Criar uma Mente: Os segredos do pensamento. São Paulo: Aleph, 2014, p. 15.

6 Ruendeles, Cesar. Sociofobia: Mudanças políticas na era da utopia digital. São Paulo: Edições Sesc, 2016, p.55.

 

7 Ford, Martin. The Rise of the Robots: Technology and the threat of mass unemployment. London: Oneworld, 2015, p.241.

8 Ford, Martin. The Rise of the Robots: Technology and the threat of mass unemployment. London: Oneworld, 2015, p.230.