O levante paulista de 1932 - A História Invertida1

 

Francisco Quartim de Moraes2 (PPGHE-USP)


 

O ponto de partida do presente estudo foi uma insatisfação intelectual perante a explicação predominante sobre o Levante de 1932, que o atribui, essencialmente, quando não inteiramente, à vontade de “reconstitucionalizar” o Brasil. Consagrada nos livros didáticos, nas teses acadêmicas, no vocabulário dos políticos e dos jornalistas, esta fórmula adquiriu, principalmente em São Paulo, mas também alhures, a densidade de uma verdade do senso comum, de um fato histórico estabelecido. Junto com a bandeira de um interventor “paulista e civil”, a ideia, desenvolvida pelos próprios paulistas que participaram do levante, de que a motivação era a constitucionalização do país triunfou. Um breve exame cronológico mostra, porém, a insuficiência destas duas explicações. Propomos nas páginas que seguem uma revisão crítica das possíveis motivações do levante de julho de 1932.


 

O levante militar iniciado em São Paulo no dia nove de julho de 1932 foi consagrado como “Revolução Constitucionalista”. É o evento histórico mais celebrado na história do Estado e da cidade, apesar da derrota paulista. Ficou, para a historiografia, a ideia de que São Paulo perdeu, mas venceu. Afinal a reivindicação de uma Constituinte prevaleceu. Analisamos inicialmente a historiografia do movimento, nela constatando grande quantidade de erros cronológicos, que invertiam os nexos históricos entre causas e consequências, de modo a confortar esta tese de que a “Revolução de 1932” foi “constitucionalista”. Esta inversão da sequência dos fatos vem de longe: ela remonta a uma campanha iniciada logo após a derrota militar de São Paulo e reverbera até o presente. Tentaremos mostrar as inconsistências desta e de outras explicações tradicionais, para depois formular algumas hipóteses sobre a gênese e a dinâmica do levante paulista de julho de 1932.


 


 

A campanha de transformação do levante frustrado em vitória política, que segue até hoje, começou no dia seguinte à retirada e à oficialização da derrota. Em 3 de outubro de 1932, O Estado de S. Paulo em seu editorial apontava os rumos:

“(...) a campanha que São Paulo empreendeu será, talvez, a de maior ressonância na história política do Brasil. (...). Dela datará um período novo da vida nacional. Que a ditadura não o compreenda, pode-se até certo ponto admitir, porque a ambição tolda os espíritos e deforma a realidade; mas que em outros pontos do Brasil haja quem incida no mesmo erro é coisa que deixará perplexo o historiador de amanhã. São Paulo não deve desanimar, o gigantesco esforço que fez não foi estéril. O que se encerrou ontem foi um inesperado e melancólico desfalecimento de algumas tropas, não foi a luta pela redenção do Brasil.”


 

O “inesperado e melancólico desfalecimento de algumas tropas” era pouco, perto da “redenção do Brasil”. São Paulo queria achar que tinha saído vitorioso de sua derrota militar.


 

Se o objetivo maior da mobilização contra o Governo Provisório fosse a Constituição, seria difícil entender por que, ao invés de levar em conta as concessões de Getúlio, a contestação foi se tornando cada vez mais radical. Com efeito, já em 10 de fevereiro de 1931 um decreto federal instituiu uma comissão cuja função era estudar a legislação eleitoral brasileira. O resultado destes estudos foi o Decreto 20.076 de 24 de fevereiro de 1932, que sancionou um novo Código Eleitoral quatro meses antes do levante de 9 de julho. Também anterior ao levante foi o Decreto de 14 de maio de 1932 que marcava para maio de 1933 a eleição Constituinte e criava outra comissão para elaborar um anteprojeto de Constituição Federal. O encadeamento dos fatos dessa cronologia deveria ser bastante claro para os que escrevem sobre o tema. Mas a grande quantidade de erros e anacronismos com que nos deparamos prova que o assunto ainda não foi esclarecido.

Não é surpreendente haver disputas sobre a interpretação de um momento histórico tão significativo para o país, mas a recorrente inversão da ordem dos fatores, de modo a adequar a realidade à apologia do levante, deveria chamar mais atenção. Sem a pretensão de fazer um inventário completo das inversões da linha do tempo, ressaltaremos alguns exemplos de equívocos cometidos.

Em artigo publicado em julho de 2012 (efeméride dos 80 anos do levante) na Revista de História da Biblioteca Nacional3, Ilka Stern Cohen, doutora em História Social pela USP, termina frisando:


 

“Sufocado o movimento, Getúlio Vargas marcou as eleições para a Constituinte para maio de 1933, num gesto de aproximação com os políticos de São Paulo. A convocação foi imediatamente assumida como uma vitória moral: “Perdemos, mas vencemos” tornou-se a versão oficial do episódio.” (p. 21; o grifo é nosso).


 

A frase de Cohen contém um erro factual que lhe permite justificar a tese da motivação constitucionalista do movimento: Vargas marcou as eleições no dia 14 de maio de 1932, antes, portanto, da guerra começar e não depois de “Sufocado o movimento” (5). Erro semelhante de Francisco Carlos Martinho no verbete Estado Novo no Brasil do Dicionário Crítico do Pensamento da Direita; ele afirma sobre o levante de 1932: “Derrotada militarmente, teve suas reinvindicações atendidas pelo governo”.4 Na verdade, as reinvindicações dos políticos paulistas foram atendidas antes do início da contenda, portanto, muito antes da derrota militar.


 

Mesmo erro à esquerda do espectro político: Moisés Vinhas, militante comunista desde 1930, afirma no livro O Partidão: “Em fins de 1932, esboça-se a legislação eleitoral que norteará as eleições de 1933 à Assembleia Constituinte” (1982, p. 68). Engana-se: a legislação eleitoral foi assinada por Vargas em 24 de fevereiro de 1932 e não no final de 1932. Um exemplo mais recente desse erro tenaz está no livro Quem foi que inventou o Brasil?, do jornalista Franklin Martins, que conta a história da República do Brasil através da música:


 

“Pelo menos até 1934, quando foram realizadas eleições para a assembleia Constituinte e aprovada a nova Constituição, Vargas exerceu o poder de forma inteiramente discricionária – e somente se rendeu à necessidade de consultar as urnas depois de o Brasil ter passado por uma curta guerra civil, com a eclosão da Revolução Constitucionalista de 1932.” 5

Martins insiste, nas linhas seguintes, em caucionar o pretenso constitucionalismo dos belicosos de 1932:


 

“O movimento desencadeado por São Paulo, embora derrotado militarmente, acabou inviabilizando em termos políticos a pretensão de Vargas de comandar sozinho o país desde o palácio do Catete e o obrigou a estabelecer compromissos e acordos com muitas das forças políticas que controlavam os principais Estados.”


 

É difícil entender essa curiosa dialética que converteu a derrota militar dos paulistas em capacidade de “obrigar” Vargas a estabelecer compromissos. Que força teria São Paulo no pós-1932 para obrigar aquele que acabara de vencê-lo militarmente? Na realidade, os compromissos e acordos de Vargas com as mais diversas forças políticas e em especial com os políticos paulistas datam de antes do levante de 1932, mas não terminam com sua vitória militar. Vargas continuou concedendo e tentando se aproximar de alguns dos participantes do movimento mesmo depois de derrotado o levante, não por obrigação, mas por raciocínio político.

Inclusive o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), um dos centros mais importantes de estudo da história contemporânea brasileira, vinculado a uma Fundação cujo nome é Getúlio Vargas, tem dificuldades em acertar a ordem dos fatos. Na própria biografia do Getúlio produzida pelo CPDOC, em um dossiê sobre a Era Vargas, o autor não identificado inverte a ordem dos fatos para justificar o alegado constitucionalismo do movimento de 1932. Segundo ele, Getúlio não estava interessado no debate Constituinte, negava-se a constitucionalizar o país, e afirma até que ele não iniciara o processo de constitucionalização:


 

“O término do movimento paulista marcou o início do processo de constitucionalização. Em novembro de 1933, instalou-se a Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela promulgação da nova Constituição e pela eleição de Getúlio Vargas como presidente da República, em julho de 1934”. 6


 

Erro: a constitucionalização do Brasil não começou após o término do movimento paulista. Ela começou antes, com os debates sobre a lei eleitoral, com a entrega a Getúlio da lei eleitoral no dia 23 de janeiro de 1932; nas dezenas de comissões e subcomissões que desenvolveram o projeto desta lei; nas idas e vindas de projetos entre comissões e o Governo Provisório; no decreto da lei eleitoral assinado no dia 24 de fevereiro de 1932. O processo Constituinte começou também nos pedidos de diversos grupos (incluindo os políticos paulistas), que foram atendidos por Getúlio Vargas e pelo Governo Provisório, conduzindo ao decreto que marcava a data da Constituinte, e no estudo e formulação de um projeto para esta Constituinte.

Erros recorrentes como este, que alteram toda a interpretação do movimento, não podem ser considerados acidentais. Resultam ou de preguiçosa repetição sem espírito crítico de ideias e cronologias alheias, ou de uma alteração intencional da ordem dos fatores para provar que o movimento de nove de julho era motivado substancialmente pela vontade democrática de uma Constituição. Certamente este erro tenaz causa problemas para a interpretação do movimento e consequentemente da história contemporânea do Brasil.


 


 


 


 


 

João Alberto Interventor e as Leis Trabalhistas.


 

João Alberto chegara em São Paulo como representante do Governo Provisório e com o cargo de Delegado Militar da Revolução. Logo de cara enfrentou oposição escancarada do Partido Democrático (PD). Que esperava que seu presidente Francisco Morato fosse nomeado para o cargo de Interventor. Na disputa entre PD e João Alberto ficou acertado que o tenente continuaria como Delegado Militar da Revolução apoiado por um secretariado composto de paulistas (o primeiro secretariado continha quase exclusivamente membros do PD). No entanto, tenentistas e Partido Democrático continuariam a pressionar o Governo Provisório para que a nomeação de um interventor fosse feita. As medidas que João Alberto tomou em São Paulo como Delegado aumentaram a tensão tornando o tenente em principal inimigo da oligarquia paulista7. Analisaremos brevemente este episódio.

Acostumados com a antiga autonomia, os círculos dirigentes da oligarquia paulista classificaram a criação, já em 1930, do Ministério do Trabalho, acompanhada da instalação de organismos especiais, como as Juntas de Conciliação e Julgamento e as Comissões Mistas de Conciliação para resolver os conflitos entre patrões e assalariados, bem como da promulgação de uma primeira série de leis trabalhistas, de “intromissão oficial” do governo federal na política de São Paulo. Além de ferir o princípio da plena autonomia estadual, as medidas de proteção aos trabalhadores rompiam com a postura repressiva dos governantes da “Velha República”, expressa na frase atribuída ao ex-presidente Washington Luís: “No Brasil a questão social é caso de polícia”. Acresce-se que vários setores da oligarquia, duramente afetados pelo “crash” de 1929, tendiam a ver nas férias, aposentadoria, igualdade de salário entre mulheres e homens, regulamentação de sindicatos etc. sérias ameaças a seus negócios já fragilizados.

Independentemente da avaliação objetiva do impacto sobre o empresariado de São Paulo das medidas que configuraram a primeira versão do trabalhismo getulista, elas certamente influenciaram a má vontade com que a oligarquia paulista tratou o governo oriundo da Revolução de 1930. Já antes dela, as mobilizações operárias em São Paulo aumentavam na medida em que crescia o número de operários e sua organização. Ao dialogar com estes movimentos, João Alberto estarreceu uma classe dominante acostumada com a repressão pura e simples dos movimentos grevistas. As reduções salariais e o aumento da carga horária que se seguiram à crise de 1929 contribuíram para o aumento da agitação em todas as classes sociais. No operariado, isso incentivou a realização de mais greves. Durante a República oligárquica estes movimentos eram fortemente reprimidos pela polícia e pelo empresariado. Ao passo que como Delegado Militar da Revolução, João Alberto declarou que nenhum operário que tivesse tomado parte de greve podia ser demitido sem prévio requerimento policial. Ele também anunciou um aumento geral e obrigatório de 5% nos salários.

A “legalização”8 no Estado de São Paulo do Partido Comunista do Brasil (PCB), autorizada por João Alberto, acentuou ainda mais a cólera da oligarquia paulista, sobretudo ao perceber que comunistas perseguidos pelas polícias do resto do país inteiro estavam se mudando para lá. Graças a este deslocamento interno de “subversivos” entre 1931 e 1932, o centro da agitação comunista brasileira teria se transferido do Rio de Janeiro a São Paulo9.


 

A pressão da oligarquia paulista em cima do Governo Provisório tentava afastar João Alberto de São Paulo e nomear alguma outra pessoa para o cargo de interventor, de preferência alguém ligado ao PD. Para frustração dos que se opunham a João Alberto, no dia 24 de novembro de 1930, o tenente pernambucano desembarcou em São Paulo, vindo do Distrito Federal e levando sua nomeação para o cargo de interventor. Sua primeira iniciativa foi convocar uma reunião com o secretariado paulista, o qual, surpreendido, num primeiro momento anunciou sua demissão coletiva; mas depois de muitas negociações envolvendo João Alberto, Getúlio Vargas e José Maria Whitaker, a nomeação do interventor foi aceita. Com uma exigência, de que fosse assinada uma ata lavrada, contendo nove condições para que ele assumisse o cargo. Nela constava notadamente que toda a legislação social e trabalhista seria organizada pelo Governo Provisório e não pelo interventor, e que este declararia publicamente sua aversão ao comunismo. Estes pontos demonstram que neste contexto o principal inimigo da oligarquia de São Paulo era João Alberto com sua atuação política de caráter social e não o Governo Provisório.


 

João Alberto também tocou na questão fundiária, ao aprovar uma lei que cedia ao Estado para serem partilhadas as fazendas que estivessem com dívidas vencidas com o Banco do Brasil10. Devido ao contexto de crise econômica, não eram poucas as que estavam nessa precária situação. Além disso, o primeiro congresso da Legião Revolucionária, realizado em 1931, deixou estabelecido um programa preconizando a reforma agrária em terras devolutas ou ilegalmente apossadas, justiça gratuita e tribunais populares para pequenas causas, salário-mínimo, comissões paritárias nas fábricas e criação de universidades do trabalho com preferência às ciências aplicadas11.

Concomitantemente às medidas adotadas por João Alberto para São Paulo, vieram as políticas trabalhistas federais instauradas pelo recém-criado Ministério do Trabalho de Getúlio Vargas, notadamente a instituição de uma estrutura sindical unitária (Decreto 19.770 de 1931), a ampliação e a reformulação das antigas Caixas de Aposentadorias e Pensões, transformadas em institutos de âmbito nacional (Decreto 20.465 de 1931), a legislação profissional e de proteção ao trabalhador, com regulamentação do trabalho feminino (Decreto 21.471 de 1932), a jornada de oito horas para os comerciários (Decreto 21.186 de 1932), estendida aos industriários (Decreto 21.364 de 1932), a instituição da carteira de trabalho (1932), o direito de férias aos bancários (Decreto 23.103 de 1932). Assim como a proibição de uma jornada noturna superior a sete horas (Decreto 21.417-A, de 17 de maio de 1932), que proibia o trabalho noturno da mulher e o Decreto 22.042, de 3 de novembro do mesmo ano, que proibia o trabalho à noite para menores de 18 anos, entre outros. Consta que João Alberto teria ameaçado de confisco as fábricas que não aderissem à nova legislação trabalhista esboçada pelo Governo Provisório federal e estadual.

A oligarquia paulista sentiu-se diretamente afrontada com a promulgação destas leis. Ao invés de serem punidos, os revoltosos eram premiados. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) pediu a imediata revogação das leis trabalhistas decretadas12.


 


 

Em 11 de julho de 1931, Getúlio Vargas, cedendo à pressão dos políticos paulistas, aceitou a demissão de João Alberto da interventoria de São Paulo. Tenentes e outras figuras do país inteiro prestaram solidariedade ao demissionário; manifestações foram registradas em diferentes partes do país em repúdio aos que o tinham constrangido a abandonar o cargo. Mas a retirada de João Alberto de São Paulo não acalmou os ânimos da oligarquia paulista que decididamente se organizava para uma solução de força contra o Governo Provisório.


 

PAULISTA E CIVIL

Após a reunião de Partido Democrático (PD) e Partido Republicano Paulista (PRP) na Frente Única Paulista (FUP) o governo provisório acabou sem nenhuma base politica no Estado de São Paulo. Getúlio Vargas então cedeu repetidas vezes aos pedidos dos paulistas. Primeiro retirando João Alberto da interventoria e do Estado e nomeando Laudo de Camargo (paulista e civil) para o cargo. Laudo de Camargo ficou poucos meses no cargo antes de renunciar. Seu sucessor, o tenentista Manuel Rabelo, sofreu forte oposição da oligarquia paulista e, também, não ficou muito tempo no cargo. Foi nomeado então Pedro de Toledo, paulista e civil, que foi interventor em São Paulo até o levante de nove de julho. Mais ainda, seguiu durante o levante como governador de São Paulo, ou seja, no mais importante cargo civil do governo rebelde. Pedro de Toledo era paulista e civil e inteiramente do agrado da oligarquia paulista. No entanto impressiona a quantidade de erros factuais também sobre o tema “paulista e civil” na historiografia. Para ficar em dois exemplos citamos José de Souza Martins, sociólogo, professor da USP, que afirma “o Governo Provisório de Getúlio Vargas designou sucessivos interventores no Estado de São Paulo que não eram paulistas, nem originários dos quadros políticos paulistas”13 . A frase comprova a dificuldade de justificar o levante como democrático ou constitucionalista sem assumir acriticamente a retórica do movimento sedicioso. Laudo de Camargo, primeiro interventor depois de João Alberto, assim como Pedro de Toledo, último interventor antes do levante, eram ambos paulistas e civis.


 

De mesmo modo Franklin Martins, explicando o contexto paulista pós levante de nove de julho diz: “Neste novo ambiente, foi nomeado um interventor em São Paulo do agrado das elites paulistas e concedida anistia aos participantes do movimento de 1932.”14 Duplo erro: antes do 9 de julho, como assinalamos, o interventor era Pedro de Toledo, tão “do agrado das elites paulistas” que continuou governador durante o levante militar; após a derrota do levante foi nomeado interventor em São Paulo o general Valdomiro Lima, que era militar, tenentista e havia combatido São Paulo na guerra recém-terminada, para grande desagrado das “elites paulistas”.


 


 

A Centralização Política

Parece-nos que um dado histórico fundamental para compreender o antigetulismo da oligarquia paulista foi a perda da hegemonia nacional que ela vinha exercendo, desde 10 de março de 1894, quando Prudente de Morais, candidato único à sucessão do marechal Floriano Peixoto, foi eleito presidente. A Revolução de 1930, além de pôr fim ao controle sobre o poder federal que São Paulo, em aliança com Minas Gerais, havia mantido durante a República Velha, deixou incerto o estatuto de ampla autonomia estadual, que a Constituição de 1891, acentuadamente federalista, conferia aos Estados. Estes podiam não somente contrair empréstimos com bancos estrangeiros, mas até, como o fez São Paulo, negociar com o governo francês a vinda de uma missão militar para treinar a Força Pública. Os impostos de exportação, principais geradores de divisas, eram revertidos aos Estados e não à União. Até os partidos políticos eram estaduais15.

Os círculos dominantes da política em São Paulo se sentiam, pois, não somente seriamente lesados pela perda de sua posição hegemônica no âmbito federal, mas também ameaçados de perder a autonomia estadual. Nem mesmo a eleição de uma Assembleia Constituinte em 1933 ofereceria garantia suficiente: era plausível a hipótese de que as tendências centralizadoras obtivessem, em escala nacional, massa crítica para limitar consideravelmente a liberdade de ação dos Estados. Sem a garantia da autonomia paulista, os interesses econômicos e políticos atrelados à descentralização da República Velha estavam seriamente ameaçados – sobretudo considerando que os tenentes pressionavam por uma centralização política ainda maior, justamente para minar o poderio local das velhas oligarquias, geralmente expresso no controle exercido sobre o eleitorado rural. O latifúndio, o coronelismo e a miserável condição dos trabalhadores no campo seguiam inalterados. Por isso os tenentes preconizavam a nacionalização dos partidos e das perspectivas políticas, em franca oposição aos partidos estaduais, às políticas regionalistas e ao personalismo dos “coronéis”, vigentes mesmo após a queda do regime anterior. A política de centralização estatal se inseria numa posição econômica antiliberal, ao passo que a política econômica dos que defendiam a descentralização era calcada no liberalismo.

No meio da guerra, precisamente no dia 10 de agosto de 1932, Monteiro Lobato, em carta para Valdemar Ferreira, formulou o dilema: Hegemonia ou Separação, na qual chega a afirmar que: “Agora estamos em plena guerra de independência, disfarçada em guerra constitucionalista.” 16. Com efeito, o famoso escritor defendia o “povo paulista” e a hegemonia total de São Paulo sobre o resto do país. Segundo ele, São Paulo:


 

Está matando em legítima defesa. Nada espera da política. Espera tudo de si próprio. Não conta com os seus chefes. Conta consigo próprio (...) ilude-se infantilmente quem julgar que um Governo civil, organizado seja como for, possa, na Capital Federal, dentro da forma federativa, destruir o funesto militarismo parasitário que, de 1889 para cá, outra coisa não fez senão tomar corpo (...). Hegemonia ou Separação. Ou São Paulo assume a hegemonia política que lhe dá a hegemonia de fato que já conquistou pelo seu trabalho no campo econômico e cultural, ou separa-se. De modo nenhum poderá ficar na posição em que se achava em virtude da Constituição de 24 de fevereiro. Seria um suicídio.17


 

Vale notar neste trecho que, para Monteiro Lobato, nem mesmo a Constituição de 1891, a despeito de seu acentuado federalismo, representava a autonomia desejada por São Paulo. Para ele, era imperativa uma posição ainda mais hegemônica de São Paulo ou então separar-se do Brasil:

“O dilema é sério. Ou São Paulo desarma a União e arma-se a si próprio, de modo a dirigir doravante a política nacional a seu talento e em seu proveito, ou separa-se. Continuar como até aqui, a contribuir com setecentos mil contos por um ano para a manutenção do monstruoso parasitismo burocrático e militarístico do Rio de Janeiro – cuja função principal é agredir e sabotar São Paulo –, corresponde a suicídio por imbecilidade”.

As consequências práticas da centralização política do país eram sentidas em São Paulo como perda de sua autonomia. Não mais poderia contrair diretamente empréstimos no exterior, como havia feito diversas vezes nos processos de valorização do café anteriores a Revolução de 1930. Os paulistas não poderiam mais contratar missões militares estrangeiras diretamente para treinar suas tropas. Mas o que realmente a oligarquia de São Paulo tinha dificuldade de aceitar era que agora os impostos gerados nos Estados passaram a ser revertidos para a União, que se encarregava de redistribuir os ganhos. Para os Estados, isso representava uma perda do controle direto de seus ganhos. Para São Paulo, que era o maior gerador de divisas (e o Estado mais endividado e que mais gastava) isso era uma perspectiva bastante assustadora. A capacidade da União criar impostos e aplicar eles em diferentes Estados e os diferentes usos para a renda auferida pelo governo central também eram motivo de descontentamento.


 


 

RACISMO E XENOFOBIA

Ibrahim Nobre, conhecido como o “Tribuno de 1932” explicita com brutal intensidade o racismo então presente. Em 1933 ele declarou que se devia fazer em São Paulo como na Alemanha, onde Hitler instalava uma “profilaxia antijudaica”, mas que em São Paulo deveriam ser eliminados os elementos que “joanalbertisaram” o sangue paulista18. Pouco importa a quais características óbvias de João Alberto (um tenente revolucionário, ex-comandante da coluna Prestes e nordestino) se refere Ibrahim Nobre. O que fica patente é sua admiração pelos métodos hitlerianos. Ao lhe conferirem status de tribuno oficial do levante de 1932, os contemporâneos de Nobre excluíram a possibilidade de que as ideias extremistas por ele apregoadas fossem mera opinião pessoal. Os fatos de até hoje haver uma escultura representando seu busto exposta na Faculdade de direito do Largo de São Francisco e de que seus restos estejam enterrados no obelisco do Ibirapuera mostram que, mesmo post mortem, ele continua a recrutar admiradores.

Outros grandes expoentes da xenofobia são os dois historiadores, Paulo Duarte e Alfredo Ellis Jr., ambos consagrados professores titulares de história nas origens do departamento na USP.

Paulo Duarte iguala as realizações da interventoria de João Alberto às de um negro em Dakar “Que vive com seu chapéu alto e de pés no chão, mas convencido de que ocupa a alta posição de cidadão da França.”19. O próprio nome do principal livro de Duarte, Palmares pelo Avesso20 (publicado em 1947, mas como adverte o autor na primeira página, escrito em janeiro de 1933), é revelador da ideologia do movimento. Ao invés do ocorrido histórico, em que bandeirantes brancos venceram militarmente os negros revoltosos de Palmares, agora eram os negros de Palmares que dominavam os bandeirantes brancos e revoltosos de São Paulo. Paulo Duarte mostrava toda a frustração de quem se achava racial e economicamente superior, mas que havia sido derrotado por aqueles que considerava inferiores. A relação normal e aceitável, para ele, de escravização de negros por brancos tornava-se insólita quando eram os “negros” que dominavam a “branca” São Paulo. A derrota de Palmares era natural e talvez necessária; o “Palmares pelo avesso” era absurdo.

Já Alfredo Ellis Jr., cujo estudo se propunha pôr em evidência a influência da eugenia em São Paulo, argumenta que as diferenças étnicas nas diversas regiões do país ocasionaram as enormes diferenças econômicas. Explica ele que o embranquecimento de São Paulo durante a imigração europeia tinha sido a causa do enriquecimento paulista. Notando que “S. Paulo por exemplo, tem como Santa Catharina, 85% de brancos puros”, mas “a Bahia, só tem 33%, a Paraíba só tem 32%, o Amazonas 31% e o Piauí apenas 24%”, conclui que “Essas variações são tão acentuadas, que influem poderosamente no conjunto da diversidade geral. As leis da hibridação de Mendel fazem o resto.” 21

Essas diferenças regionais enfraqueceriam os vínculos de um Estado Nacional unificado, tornando-o completamente falso. Afinal: “Será puro lirismo sentimental, se chamarem irmãos um dolico-louro do Rio Grande do Sul, um bachy-moreno de S. Paulo, um dolico-moreno de Minas, ou um platycephaloamongoilado do Sergipe, ou do Ceará ou um negro da Bahia.” Não é preciso ser especialista em antropologia física para constatar a fragilidade dos dados e definições utilizados por Ellis. No entanto, para ele, essas ideias eugenistas eram incontestáveis:


 

“O amongoilamento (sic) do tipo nordestino já é clássico e por demais sabido, para que honestamente possa ser contestado. Se as vezes esse amongoilamento desaparece, deixa entretanto a platycephalia (sic), vestígio do amerindiano, marcando aquilo que os sulinos chamam, sem sentido pejorativo aliás, de ‘cabeça chata’”.


 

No próprio título do livro de Ellis Jr., Confederação ou Separação, também se expressa a polarização centralismo e autonomia, mas com uma ameaça aberta: se não for alcançada a autonomia que São Paulo deseja, a resposta seria a separação.


 

OS COMUNISTAS

Para a historiadora Maria Helena Capelato22, um dos eixos explicativos do levante de 1932 está embutido em um dos motes do levante: o grito de “Pela Ordem” sintetizava o anticomunismo presente em quase todos os discursos da época. Esta “ordem” se imaginava em franca oposição à desordem “comunista” do Governo Provisório. Não é exagero dizer que uma das principais motivações ideológicas para o levante de 1932 foi o anticomunismo da oligarquia paulista. A primeira disputa entre João Alberto (e Governo Provisório) e os políticos que haviam apoiado a Revolução de 1930 em São Paulo (PD) se deu por causa da suposta liberdade que o tenente pernambucano concedeu aos comunistas logo que chegou em São Paulo.

Retrospectivamente, fica bastante clara a distância entre Vargas e o comunismo, especialmente se considerada a atroz repressão ao levante de 1935, comandada pelo torturador Filinto Müller. Também é bastante claro que a referência filosófica de Vargas e de seus correligionários era o positivismo, em sua versão brasileira. No entanto, em 1932, o Governo Provisório era tachado de comunista quando aplicava medidas sociais que representassem uma melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e/ou acarretassem alguns ônus para os industriais e grandes proprietários. Medidas como férias para trabalhadores e proibição do trabalho infantil eram atacadas pelos opositores paulistas, como provas do vínculo do governo com Moscou.


 


 

O Tribuno de 1932, Ibrahim Nobre, em discurso público no dia 12 de julho definiu assim o levante paulista: “O nosso movimento é do Brasil. Católico disciplinado e forte, contra a anarquia em que queriam que vivêssemos. Uma luta de Jesus contra Lenine” 23


 

Essa reação anticomunista da oligarquia paulista radicalizou-se com a semi legalização do PCB promovida por João Alberto. Foi esta a principal peça de ataque dos opositores paulistas contra o interventor. Paulo Duarte escreveu um libelo em que tentava provar o vínculo dele com Moscou. Após explicar que havia sido encarregado de estudar o arquivo da Delegacia de Ordem Política e Social, Duarte diz ter encontrado documentos de agentes especialistas na repressão ao comunismo que provavam que João Alberto, Siqueira Campos, Miguel Costa e Luiz Carlos Prestes estavam de pleno acordo sobre a implantação do “bolchevismo” no Brasil. Afirmando que os policiais paulistas acompanhavam a movimentação dos tenentistas nas repúblicas do Prata de onde teriam sido enviados João Alberto e Miguel Costa para implantar o comunismo no Brasil. Chegou a dirigir-se ao chefe de polícia de São Paulo, Vicente Rao, para denunciar João Alberto, alguns dias depois de este ter assumido a interventoria de São Paulo. Assim Duarte descrevia a situação:


 

Dois ou três dias após esses episódios, o Sr. João Alberto tomava o pulso de S. Paulo, permitindo a realização franca da propaganda comunista, num momento de agitação, totalmente impróprio para essas imprudências. Não é só. O chefe ou um dos chefes dessa propaganda era o Sr. Luís de Barros, irmão do Sr. João Alberto que habitava também o Palácio dos Campos Elísios, o qual, segundo corre à boca pequena, se encontra na Rússia, em missão especial paga pelos cofres paulistas! Algum tempo passado e surgia, também, a Legião Revolucionária, de origem e de intenções duvidosas (...). Pouco tempo depois, São Paulo era o valhacouto de todos os comunistas fugidos da fúria do Sr. Batista Luzardo (...). Mais alguns dias, esses elementos, em São Paulo, obtinham empregos públicos , assistência oficial e uma imprensa subvencionada pelos cofres paulistas (...). No próprio governo, o Sr. João Alberto tentou exteriorizar o seu programa bolchevizador, com a divisão de fazendas executadas pelo Banco do Estado, em pequenos lotes, a soldados de batalhões irregulares dissolvidos.24


 

Já o militar Isidoro Dias Lopes, ex-companheiro de coluna de Prestes e de João Alberto, e um dos principais comandantes do levante de 1932, criticou o interventor no Diário Nacional de 28-02-1931 por seguir os “moldes do que existe na Rússia. A sua finalidade será bem diversa, é claro. Mas para que essa cópia? Para que essa imitação do figurino Soviético?”. Renato Jardim, político do PRP, dizia, ao denunciar o “bolchevismo” de João Alberto, que, dias após a fundação da Legião Revolucionária, não existia um único “preto velho ou entregador de jornais em São Paulo que não estava nas ruas exibindo uma faixa vermelha no braço”25.

A oligarquia paulista, assustada com o clima de instabilidade social e política no plano local e no plano federal, acusava os tenentes, principalmente João Alberto e o governo Vargas, de insuflar o bolchevismo. Como visto nos exemplos acima o medo do comunismo aparece diversas vezes nos discursos e textos dos políticos paulistas, mas um dos exemplos mais ilustrativos em São Paulo é o Manifesto de rompimento do PD com o interventor João Alberto. Depois de acusá-lo, por algumas páginas, de insuflar a subversão, o Manifesto termina assim:


 

“A rica e civilizada unidade da Federação de ontem, hoje presa de guerra, amanhã terra desbaratada, não passa na hora presente de campo revolto, em que semeadores funestos praguejam as lavras, nelas plantando as ervas daninhas da anarquia administrativa, da Babel política, do fanatismo liberticida, das incursões da Internacional de Moscou, da megalomania do desperdício e do enxovalho de seus nomes e tradições.”


 

Essas acusações certamente repercutiram nos ouvidos da oligarquia que se preparava para seu levante militar. Durante o levante, aqueles que de fato se identificavam com o comunismo no Estado de São Paulo, enfrentaram forte repressão policial.


 


 

O primeiro historiador que encontramos a mencionar, de forma sistemática, a repressão aos operários em 1932 é Holien Goncalves Bezerra em sua tese de doutorado (1981). Bezerra mostrou a importância do livro A guerra civil de 1932, de Florentino de Carvalho, um dos poucos autores da época que coloca a questão das classes sociais de maneira mais crítica. Anarquista, Florentino de Carvalho, foi quem primeiro denunciou a violência contra o operariado durante a rebelião: “A sua atitude (indiferença dos operários) causou sérias apreensões aos promotores da arrancada que tomaram medidas preventivas contra possíveis manifestações da chusma (que vertia sangue nos ergástulos do trabalho), guarnecendo os pontos de maior aglomeração e perseguindo, prendendo ou ferindo operários rebeldes e altivos.”26

O historiador Marcos Tarcísio Florindo também apontou elementos importantes a respeito da repressão em 1932. Ele analisa as prisões efetuadas a partir do estado de sítio declarado em São Paulo depois do levante de 9 de julho. Aproveitando a documentação do DEOPS/SP (Departamento de Ordem e Política Social) e dos próprios comunistas, Florindo avaliou o alcance dessa repressão em São Paulo, estimando em 6.800 o número dos detidos pela polícia durante o conflito, e assim descreve a repressão pós-9 de julho:


 

Pois foi na esteira da intensa repressão, ocorrida durante a revolução constitucionalista de 1932, que ocorreria a primeira grande ‘queda’ da organização comunista em São Paulo, atingindo o quadro dirigente nacional e estadual, além dos organismos de apoio e propaganda, dos núcleos formados nos grupamentos estrangeiros e dos ativistas atuantes no movimento sindical. A repressão de 1932 desestruturou os trabalhos desenvolvidos pelo PCB de São Paulo desde 1930, e foi celebrada desde então pelos policiais como a primeira grande vitória do DEOPS/SP sobre os ativistas do partido. (...). Durante os três meses da rebelião paulista foi verdadeiramente notável o sucesso das diligências policiais que resultaram no completo esfacelamento do partido, com a localização e confisco de duas tipografias, localização de diversos escritórios de propaganda, com a apreensão de diversos mimeógrafos e farto material de propaganda.27

Vale lembrar que o espectro do comunismo não frequentou apenas a retórica anticomunista dos manifestos paulistas. Tanto assim que Getúlio Vargas e vários outros membros do governo oriundo da Revolução de 1930, bem como líderes políticos da oposição em diversas regiões do país, passaram a acusar seus adversários políticos de serem comunistas. Como bem sintetizou Capelato28: “Em São Paulo, vociferava-se contra os comunistas que tinham se apossado do Brasil; lá fora, diziam que os comunistas tinham se apossado de São Paulo”.


 

Conclusão.


 

Tanto Vargas e os varguistas quanto os defensores do movimento paulista de 1932 colocaram a memória a serviço de suas opiniões. A utilização política da memória de Vargas foi inaugurada e construída por ele mesmo: como notam Bastos e Fonseca, “foi o próprio Vargas quem inaugurou o uso de sua memória como recurso político: reagindo com o suicídio perante o ultimato de seus inimigos.”29 

O recurso ao suicídio para preservar o legado político parece ter sido uma ideia recorrente ao longo de sua vida política. Na própria crise do levante paulista de 1932, Vargas teria deixado uma carta-testamento, como a de 1954, na qual dizia que, caso os sediciosos vencessem militarmente, teriam como resposta o suicídio do líder da Aliança Liberal. Getúlio, em 1930 assim como em 1932, tinha como plano definitivo em caso de derrota, “sair da vida para entrar na história”. Existem no mínimo três testemunhas da resolução de Vargas de só abandonar o governo em 1932 dentro de um caixão, são eles: Oswaldo Aranha, Gois Monteiro e Alzira Vargas, filha de Getúlio. O suicídio, em 1954, produziu o efeito que ele esperava: matando-se, derrotou politicamente os que pretendiam assassiná-lo moralmente e conferiu a seu projeto a força imensa da paixão popular.   

Para o bem e para o mal, os ecos de Vargas e do movimento de 1932 chegam até os dias de hoje. Lembramos algumas passagens da história em que o espectro de Vargas é evocado, notando como este nome e tema polarizam a sociedade brasileira em alguns de seus momentos mais significativos desde 1930 até os dias de hoje: parece-nos importante levar em conta, para a compreensão dessa luta ideológica que já dura mais de oitenta anos, outros momentos decisivos em que se enfrentaram os mesmos protagonistas, nomeadamente o golpe antigetulista de 29 de outubro de 1945, a campanha pela renúncia de Getúlio, que o levou ao suicídio em 24 agosto de 1954, e o golpe de 31 de março de 1964, que derrubou João Goulart. As diferenças notáveis entre esses três movimentos golpistas e o de 1932 estão em que o Exército apoiou Getúlio para derrotar o levante paulista, ao passo que em 1945 e 1954 mobilizou-se contra ele e, em 1964, contra seu herdeiro político. Não pediremos a essas analogias mais do que elas podem razoavelmente oferecer: dimensionar a perspectiva histórica do confronto entre getulismo e antigetulismo. É notável, em especial, que a palavra de ordem implícita da FUP, Constituinte sem Getúlio, fracassou em 1932, mas triunfou em 1945.

Em 1964, no primeiro dia depois do golpe e 10 anos depois da morte de Getúlio, a Folha de S. Paulo, glorificando o movimento que derrubara João Goulart, exaltou a então chamada revolução de 1964 como o final do legado varguista. No mesmo primeiro de abril de 1964, O Estado de S. Paulo publicou um artigo com o título de São Paulo repete 1932. Nas marchas da “família com deus pela liberdade” realizadas em apoio ao golpe militar de 1964, ouviram-se as bandas militares que acompanhavam os protestos tocando marchas do movimento de 1932. Uma das preferidas era Paris Belfort, hino do movimento paulista. A memória de 1932 como um momento de glória empurrava decididamente a população civil em apoio ao golpe. Não surpreende que na construção dessa memória se enfatize o caráter democrático e constitucionalista do movimento, mas a evocação de 1932 no contexto de 1964 serviu para sustentar um golpe antidemocrático, que iria rasgar por diversas vezes a Constituição.

A falta de espírito crítico de muitos dos intelectuais que discutiram o movimento de 1932 fez com que se invertam recorrentemente a ordem dos fatores no debate historiográfico sobre o tema com vistas a classificar como democrático e constitucionalista o movimento de nove de julho.

Bem sabemos que a memória histórica é construída pela posteridade, visando a justificar com exemplos do passado os projetos e as aspirações do presente. Para que o historiador ficasse plenamente imune à construção cultural da memória, seria preciso que ele fosse completamente indiferente aos interesses e valores em jogo nos embates políticos. Não é essa postura exterior ao movimento da sociedade que se deve exigir do historiador, mas sim um respeito sem falhas à objetividade, que não é uma construção ideológica, mas uma reconstrução dos fatos, os quais por sua vez têm de ser laboriosamente estabelecidos. Contribuiremos mais para a compreensão dos fatos econômicos e políticos se admi­tirmos nosso enraizamento social e cultural e procurarmos, a partir dele, vale dizer, explicitando nossas convicções, caminhar rumo à objetividade com lucidez, abertura de espírito e compromisso irrestrito com o conhecimento.


 


 

1 O presente texto foi apresentado no IX Congresso de História Econômica realizado na USP. O texto é baseado no livro 1932: A História Invertida publicado no fim de 2018 (Francisco Quartim de Moraes, 1932: A História Invertida, São Paulo, Ed. Anita Garibaldi, 2018.)

2 Doutorando no Programa de História Econômica da USP.

3 Ilka Stern Cohen, “Quando Perder é vencer.” Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 7, n. 82, Rio de Janeiro, julho de 2012, p 21.

4 Francisco Silva, Sabrina Medeiros e Alexandre Vianna [orgs.], Dicionário crítico do pensamento da direita. Rio de Janeiro: Faperj/ Mauad, 2000 , p. 154.

5 Franklin Martins Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República. Volume 1, de 1902 a 1964. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015 p137-138.

7 Para mais informações consultar - Francisco Quartim de Moraes, 1932: A História Invertida, São Paulo, Ed. Anita Garibaldi, 2018.

8 Legalização entre aspas pois além de ter sido relativa ela não chegou a se efetuar de fato. É curioso que o próprio Partido Comunista do Brasil (PCB) não aceitou esta legalização.

9Joseph Love, São Paulo na Federação Brasileira 1889-1937. A Locomotiva 1982, p. 186 e 187.

10 Hélio Silva, 1932: a guerra paulista 1967, p. 6

11 Edgard Carone. A segunda República (1930-1937) 1973, p. 252.

12 Augusto Buonicore, 1932: A revanche oligárquica. 2003.

13 José de Souza Martins. São Paulo no século XX. São Paulo: Imprensa Oficial, 2001, p 84.

14 Franklin Martins Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República. Volume 1, de 1902 a 1964. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015 p 183.

15 Vavy Pacheco Borges. Getúlio Vargas e a oligarquia paulista 1979, p. 45, 145 etc.

16 Hélio Silva, 1932: a guerra paulista, 1967, p. 280; em itálico no original.

17 Ibidem, p. 281.

18Barbara Weistein. The Color of Modernity. São Paulo and the making of Race and Nation in Brazil. New York: Duke University Press, 2015. p. 94

19 Ibidem.

20 Paulo Duarte Palmares pelo avesso. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1947.

21Alfredo Ellis Jr. Confederação ou Separação. São Paulo: Piratininga, 1932 p.26-30. As citações seguintes estão também nestas páginas.

22 Maria Helena Capelato O movimento de 1932, a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981 p 58.

23 Citado, por exemplo, por Vavy Pacheco Borges na exposição Testemunhos de 1932.

24 Paulo Duarte Palmares pelo avesso. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1947. P 120-123.

25 Barbara Weistein. The Color of Modernity. São Paulo and the making of Race and Nation in Brazil. New York: Duke University Press, 2015. p. 93.

26 Holien Gonçalves Bezerra. O jogo do poder. Revolução Paulista de 1932. São Paulo: Moderna, 1989 p46.

27A propaganda comunista no Estado de São Paulo. 10-07-1935. Prontuário DEOPS/SP n. 2.431 do PCB, Vol. 9 apud Marcos Tarcisio Florindo. A grande repressão de 1932 em São Paulo. 2012. Disponível em: <http://www.rbhcs.com/index_arquivos/artigo.agranderepressao.pdf>.

28 Maria Helena Capelato O movimento de 1932, a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981 p 58

29 Pedro Paulo Zahluth Bastos; Pedro Cezar Dutra Fonseca (orgs.). A Era Vargas. Desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Unesp, 2012 p 8.