Entidades Patronais da Indústria no Estado de São Paulo 1919 a 1931

 

Eujacio Roberto Silveira (PPGHE/USP) 1

Relações de Trabalho e Unidade Patronal: o CIFT-SP

Em 1919, a cidade de São Paulo voltou a ser sacudida por agitações operárias, as greves gerais de maio e outubro. Diferentemente de 1917, o operariado enfrentou um patronato mais disposto e organizado no processo de negociação, além de vínculos mais estreitos com a polícia e o aparato coercitivo do Estado. Esse momento também representou um importante passo na coesão de classe da fração burguesa-industrial paulista, cuja intervenção em defesa de medidas econômicas protecionistas voltadas para crescimento da indústria e a luta contra a implantação de leis trabalhista se destacaram nos anos 1920. Isso só foi possível por conta do impulso, em termos de organização, que o patronato da indústria começava a vivenciar.

Da perspectiva do industrialismo, a criação de novas entidades de representação de classe decorreu, principalmente, das exigências colocadas nos conflitos de capital e trabalho no limiar da modernização das relações sociais no Brasil. Outra questão muito cara aos industriais, e que necessitava de respostas mais elaboradas nos marcos associativo, tem a ver com as tratativas, por parte do Estado e do Legislativo, em propor uma legislação social. A luta pelo aumento de barreiras alfandegárias, que trouxessem maior segurança aos negócios da indústria, também necessitou de uma atuação política mais organizada. É nesse novo contexto que surge o Centro das Indústrias de Fiação e Tecelagem de São Paulo (CIFT-SP), criado a partir da iniciativa dos industriais ligados à indústria têxtil de São Paulo. Essa entidade se notabilizou, a exemplo de sua congênere do Rio de Janeiro, criada em 1919, “como uma das entidades mais combativas” da ação coletiva patronal 2.

O esforço organizativo dos industriais nos anos 1920 culminou na formação do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP), fundado com o principal objetivo de converter-se em porta-voz do industrialismo, como se este fosse uma virtude econômica e social. A defesa de uma política favorável ao desenvolvimento da indústria paulista se constituiu como um dos pilares do CIESP. Por fim, em uma nova conjuntura política e econômica aberta com a Revolução de 1930, nasce, em março de 1931, pelo decreto governamental 19.770, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). No início, a FIESP atuou como uma associação civil, se empenhando nos esforços de sindicalização em São Paulo, mas logo se converteria na mais representativa entidade patronal do Brasil: defender um projeto industrial para o país seria seu principal lema, tornando-se porta-voz de um empresariado mais ativo em relação aos anos anteriores.

Embora São Paulo já superasse o Distrito Federal em termos de produção industrial, o empresariado paulista, no tocante à organização associativa, permanecia em situação de inferioridade em relação aos industriais cariocas. Foi somente na década de 1920 que o processo social de fundação de associações de classe no setor industrial foi impulsionado, mantendo-se, ainda assim, aquém do patamar organizativo verificado na então capital. Embora o Centro Industrial do Brasil (CIB), fundado em 1904, e defensor da indústria em todo o Brasil, em termos práticos de organização, tivesse a grande maioria dos associados constituída por industriais cariocas e fluminenses, sua esfera de ação não se limitava a defender somente os interesses regionais da indústria. Pelo contrário, foram oportunas suas campanhas no sentido de mostrar aos industriais de outros centros fabris do país, reunidos geralmente nas suas respectivas Associações Comerciais, que tivessem como prática dirigir-se ao CIB sempre que preciso 3.

Apesar dos esforços do CIB, a criação do CIFT-SP se destacou, no final da Primeira Guerra, como um importante núcleo industrial defensor de medidas em favor da fração burguesa do capital industrial, e, em particular, do mais tradicional e poderoso empresariado paulista, o da indústria têxtil. As circulares do CIFT-SP nos fornecem inúmeros exemplos que atestam formulações do Centro em defesa dos interesses econômicos mais imediatos do capital industrial paulista. Ademais, possuindo o proletariado maior grau de organização de classe em relação ao patronato fabril, este se viu pressionado a se organizar melhor. Os conflitos grevistas vinham testando essas relações desde a Greve Geral de 1917, e, sob a liderança anarquista, os sindicatos operários se afirmaram como interlocutores efetivos das demandas proletárias.

O tratamento dado à questão operária até então, em essência, havia se baseado na articulação das formas de controle e de repressão sobre a força de trabalho, mas agora contava com a orientação centralizada do CIFT-SP. A atuação sindical e política do CIFT se mostrara eficiente na construção de mecanismos capazes de excluir do meio operário os ditos “maus elementos”, isto é, imigrantes de origem anarquista que “tumultuavam” a paz social. O Centro dos Industriais transformou-se rapidamente no porta-voz das grandes empresas do ramo de tecelagem, atividade industrial que reunia o maior contingente operário do setor fabril de São Paulo. A Circular do CIFT de 26/1/1925 indica que, somente no setor têxtil algodoeiro, a ocupação alcançava aproximadamente o número de 38.000 operários naquele ano - e muitos desses operários eram mulheres e crianças. A ampla utilização do trabalho do menor era reconhecida pelos próprios industriais, e ocupava, à época, 60% da mão de obra fabril. Aliás, essa foi uma das principais características da primeira fase da industrialização brasileira, análoga ao emprego indiscriminado do trabalho infantil na revolução industrial inglesa 4.

No início da década de 1920, o patronato industrial se consulta com maior frequência para tomar decisões de interesse comum, como resposta aos reclamos crescentes do operariado. Frente a esse quadro de conflitos, que exigia melhor organização e coesão de classe, vão aparecendo entidades patronais para cada ramo fabril. Neste contexto de “tomada de consciência”, é formado o Centro dos Industriais de Calçados de São Paulo, a Associação dos Industriais e Comerciantes Gráficos, a União dos Fabricantes de Papel e o Centro dos Industriais de Papelão5. Contudo, a organização dos empresários industriais nacionalmente ainda era muito limitada. Não havia nenhum órgão que representasse, de fato, o empresariado industrial brasileiro. A atuação conjunta dos industriais se realizava somente no plano regional de cada estado, uma vez que se encontravam mais integrados ao núcleo dominante da burguesia agrária local do que propriamente aos representantes industriais de outros estados. Careciam, efetivamente, de uma visão mais global dos problemas enfrentados pelo crescimento da indústria brasileira 6.

A indústria crescia, a expansão da capacidade produtiva no setor têxtil, entre 1915 e 1919, representou uma média anual de 1.147 toneladas de equipamentos importados. Mas entre 1920 e 1925, a média anual saltou para 4.107 toneladas, registrando um crescimento de 35, 8% em relação ao período anterior 7. As divergências no meio associativo industrial eram comuns, principalmente quando envolviam os interesses de grandes empresários em relações aos pequenos produtores do mesmo ramo. A despeito do aumento da capacidade produtiva registrada na indústria têxtil, esta não encontrava condições de transformações devido aos elevados preços dos tecidos, praticados pelos empresários do setor.

O Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de São Paulo (CIFT-SP) entra em ação: sua diretoria propõe aos associados que limitem a produção, para manter os preços dos tecidos estáveis 8. As fábricas de menor porte, cuja produção era menor, resistiram e não aderiram à proposta encaminhada pelos grandes produtores industriais do ramo têxtil, alegando não possuírem estoques, pois sua produção, por ser pequena, tinha imediata necessidade de colocação no mercado. O gerente do CIFT-SP afirmava que essas eram “empresas que vivem o ‘au jour-le-jour’” não podendo, portanto, quebrar o seu ritmo de produção sem abalar os seus recursos. Todavia, a grande maioria das empresas do setor concordou com a adoção da medida proposta pelo CIFT-SP, menos a Fábrica Mariângela (grupo Matarazzo) e a Fábrica São Martinho. A recusa de participar em comum acordo com os outros associados da deliberação do Centro proporcionou acalorada discussão, devido ao fato de a fábrica que se negava a aceitar a medida tinha como proprietário o próprio presidente do CIFT-SP, ou seja, Francisco Matarazzo. A polêmica travada na assembleia do CIFT-SP, “iniciada pela não adesão da fábrica do presidente do Centro à redução dos dias de trabalho, terminou no questionamento da própria função que cabia à entidade dos industriais” 9.

Matarazzo expressou seu receio de que a atuação do CIFT-SP extrapolasse para deliberações de questões que interferissem na organização produtiva do trabalho dentro das empresas. Nesse sentido, defendia limites claros para a atuação do Centro junto aos seus membros: “As associações de classe são formadas para defender interesses gerais e não para se imiscuírem na vida econômica dos seus membros. (...) ninguém irá sacrificar interesses privados, por espírito de classe”. No entendimento de Matarazzo, a preocupação maior do Centro tinha que estar restrita às “questões operárias”, pois sobre estas é que “o espírito de classe” devia alicerçar-se, e nunca sobre a “vida econômica dos associados”, uma vez que “cada qual tem suas necessidades e as necessidades de um não são idênticas às necessidades do outro” 10. As divergências entre Matarazzo e os outros industriais levaram-no a se desligar do CIFT-SP e desfiliar-se de suas empresas, pedindo baixa do cargo em 1926.

Após a Primeira Guerra Mundial, e sobretudo na década de 1920, o debate em torno das tarifas alfandegárias passou a ser feita num contexto econômico diverso, através do qual se fazia sentir a importância da indústria paulista. O Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de São Paulo (CIFT-SP) e o Centro Industrial de Fiação de Tecelagem e Algodão do Rio de Janeiro (CIFTA-RJ) deram início a um novo estágio da luta tarifária. Os industriais acumularam força e aumentaram as suas entidades de classe na medida em que a atividade fabril se expandia em São Paulo.

Para derrotar a proposta defendida pelo Ministro da Fazenda, Homero Batista, em 1919, forjou-se uma importante unidade do CIB, o CIFTA do Rio de Janeiro, o CIFT de São Paulo, e às Associações Comerciais do Rio de Janeiro e São Paulo. O empenho dos industriais paulistas do setor têxtil ameaçados pelas reduções tarifárias propostas em 1919-1920, mostrou-se efetivo quando a bancada paulista no Congresso votou em peso contra o projeto de reforma. Apesar do empenho do Ministro da Fazenda, “o lobby dos industriais paulistas, cariocas e mineiros impediu a aprovação do projeto tarifário”. Contudo, apesar da pressão da indústria, a tendência livre-cambista na política tarifária reapareceu na década de 1920. Apesar disso, a proporção dos índices calculados em ouro não foi modificada depois de 1923, produzindo uma redução dos efeitos protecionistas tão caros ao setor industrial 11.

O destino da indústria têxtil estava lançado, pois, a partir de 1926, com a queda dos preços do café no mercado internacional. Um dos seus primeiros efeitos foi a redução da massa salarial dos trabalhadores agrícolas e retração do seu poder aquisitivo. A indústria se ressentiu dos efeitos dessa queda no consumo de produtos manufaturados. Esse fator negativo se combinou com o aumento das importações, principalmente produtos ingleses do setor têxtil. A crise atingiu em cheio as indústrias têxteis de São Paulo e do Rio de Janeiro, gerando uma crise de “superprodução”. Temerosos pelo fluxo crescente de tecidos importados da Inglaterra, os industriais pressionaram o governo para reajustar as tarifas alfandegárias dos tecidos ingleses, a quem acusavam de dumping 12. A pressão dos industriais surtiu algum efeito prático, o lobby sobre os parlamentares e até contribuições ao Partido Republicano Paulista (PRP), com os quais os industriais mantinham estreitos vínculos desde a campanha tarifária de 1919-1920. Assim, conforme Maria Antonieta Leopoldi, “os industriais habilidosamente contornaram o impasse que seria causado por uma nova tarifa, recomendando apenas uma revisão parcial de emergência” 13.

Por outro ângulo, no terreno da luta de classes, com o aparecimento de uma nova onda de agitação grevista em São Paulo, no primeiro semestre de 1919, as pressões sobre os industriais aumentaram, levando-os a construir uma ação de caráter mais unitário contra o operariado em movimento. Em São Paulo explode, logo após o 1º de maio, uma greve geral que atinge numerosas fábricas. O movimento grevista se estendeu até o mês de junho. Na Greve Geral de 1919, o patronato enfrentou reivindicações como a jornada de oito horas de trabalho, descanso semanal, equiparação salarial entre homens e mulheres, reconhecimento do direito de organização. Apesar da repressão desencadeada pelo Estado, o movimento prosseguiu até obter, conforme assinalou Cláudio Batalha, “acordos favoráveis na maioria das fábricas” 14.

As imagens do poderoso movimento grevista de 1917 ainda assombravam as classes dominantes: barricadas, enfrentamentos armados, solidariedade de classe, Revolução Russa de 1917. Esses elementos trouxeram muito desconforto à burguesia paulista. Só para se ter uma pequena ideia, o jornal O Estado de S.Paulo publicou, em artigo intitulado “O Capital e Trabalho”, uma fala de Luiz M. Pinto de Queiroz, apresentado como um “ex-industrial”. Defensor de relações pacíficas entre o capital e trabalho, a análise de Queiroz foi além dos conflitos locais, afirmando que:

Quem quer que leia os telegramas diariamente publicados nos jornaes fica, naturalmente, impressionado [com o avanço] progressivo do movimento grevista no mundo inteiro, o qual se estende a quasi todos os ramos da atividade humana e contribue poderosamente para o advento desse tétrico fantasma “da fome mundial”, à qual se referem as profecias bíblicas. A que é devido este descontentamento da classe operaria mundial? Qual a causa desse “bolchevismo” que, da Russia, se espalha por quasi todos os centros industriaes do mundo? Como explicar esse mal estar geral, essa inquietação que attinge todas as nações? A resposta é facil e está na consciencia de todos. Entretanto, esses dois elementos, apesar de viverem em continua luta, são os grandes factores do progresso universal e deviam caminhar paralelamente, de mãos dadas, e não em linhas tortuosas e divergentes como de ordinário o fazem. O capital e o trabalho, conjuntamente, desbravam o terreno, preparam-no e nelle lançam a semente: no momento, porém, de fazerem a colheita, em vez de dividirem irmamente o fruto, um delles – o capital chama a si o maior quinhão! Fazer a repartição equitativa dessa colheita é combater o eterno conflicto entre capital e trabalho, e é achar a chave desse magno problema que tanto interessa a paz da humanidade. Vejamos como fazer essa repatição e como conciliar esses interesses adversos. O operário, que personifica o Trabalho, não se pode manter e produzir todo seu esforço sem o salário, que lhe dá o alimento e o agazalho; por sua vez, o Capital, para se conservar em toda a sua integridade, precisa do juro, que é o seu salario. Nestas condições, podemos estabelecer a seguinte equação: o Trabalho está para o salário, como o capital para o juro15.

Por admitir a natureza conflituosa de patrões e empregados, Luiz M.P de Queiroz prega sutilmente a colaboração entre essas classes de natureza antagônica. Seu idealismo cristão vê ambas se complementando na totalidade produtiva, mas o capital tem as suas próprias regras de reprodução, na medida em que “a riqueza, no sentido de capital acumulado, torna-se aceitável e legitima porque é produto do trabalho e porque o trabalho é concebido como uma ‘virtude’ universal” 16. Para Queiroz, na realização do progresso social é preciso harmonizar as relações no mundo do trabalho, com melhor divisão da “colheita” produzida pelo esforço de “ambos os grupos”, evitando, desse modo, a propagação do vírus do “bolchevismo”. O ex-industrial, conhecedor do mecanismo que gera a mais valia, faz um alerta à burguesia dos perigos subjacentes no processo de legitimação de exploração do trabalho.

O vírus da Revolução Russa de 1917 estava no ar, portanto, a concessão de um salário um pouco melhor podia evitar grandes transtornos sociais. Os excessos não interessavam a ninguém, exceto aos agitadores profissionais (anarquistas) a serviço do caos, conforme opiniões correntes em jornais e pronunciamentos de autoridades públicas 17.

Assim, era preciso aparar “os excessos de intransigências” de ambos os lados, apontando as atitudes irracionais no confronto de capital e trabalho, pois as irracionalidades geravam riscos que podiam quebrar a tessitura da ordem social, e também romper os limites de controle dos adversários em confronto. Uma ação coletiva de confronto constitui-se como a base dos movimentos sociais, não por guardarem sempre uma atitude violenta ou seguir o caminho dos extremos, mas por quase sempre serem o último recurso que o proletariado reúne contra adversários mais fortes. Além de formar organizações e elaborar ideologias, esses movimentos “socializam e mobilizam seus membros, e estes se engajam em autodesenvolvimento e na construção de identidades coletivas” 18.

Na acepção de Edward Thompson, essas “identidades coletivas” constituem-se na vivência e afinidades históricas próprias de um grupo, forjando o sentimento de classe 19. A desvalorização do trabalho manual compunha a base que alimentava a ideologia da classe patronal em relação às classes laboriosas, transferindo-lhes uma renda irrisória para a sua sobrevivência. E pior, em São Paulo os salários pagos pela indústria eram menores do que os do Rio de Janeiro. A coesão entre as diversas frações da burguesia contra o movimento operário mostrou-se satisfatória no controle da força de trabalho que, embora resistisse, encontrou dificuldades de suportar contínua repressão às lutas operárias. Além da política de cooptação do Estado, “a maior parte das tentativas de se instalar uma política reformista partia do Distrito Federal”, mas a adoção de uma legislação social foi abreviada ao máximo pelos industriais20.

As pressões operárias pelo reconhecimento da jornada de oito horas ganharam repercussão no Congresso Nacional. O empresariado industrial do Rio de Janeiro 21 estava bem à frente dessa medida em relação ao de São Paulo. A opinião do representante paulista no parlamento refletia a posição geral da fração industrial da burguesia de São Paulo. O vice-presidente do Senado, Alfredo Ellis, argumentava que:

O problema exige muita calma e reflexão [...] porém não admitte nessas reivindicações: amparar o operario industrial das grandes cidades, onde elle tem assistencia medica e phamaceutica e onde gosa de vida excellente. O operário ahi tem garantias e quer apenas trabalhar oito horas por dia em detrimento do operário rural. Isso é uma iniqüidade com a qual não concordo 22.

Para a União Operária da Fiação e Tecelagem (UOFT), a recusa dos industriais de São Paulo da proposta apresentada, sob a alegação de que “teriam de soffrer a concorrência das empresas do Rio”, não correspondia à realidade do momento. O movimento manifestado nessa capital prosseguem os argumentos do CGT (Conselho Geral dos Trabalhadores), “está sendo secundado não só no Rio como em todas as cidades industriais do paiz. Já estando quase generalisada a concessão da jornada de 8 horas, o que vem estabelecer uma igualdade de situação na industria nacional” 23·.

Como podemos notar, o campo de atuação dos industriais não se restringia somente aos conflitos grevistas, mas também a uma efetiva defesa liberal das relações de trabalho. Seja na disputa de linhas econômicas do interesse da indústria, que defendia melhores condições de importações ou taxas de câmbio em conformidade com o seu crescimento interno, seja no combate a qualquer propósito do Estado de estabelecer normas jurídicas no campo dos direitos trabalhistas.

Consta que nem as mínimas medidas de proteção ao trabalhador eram reconhecidas pelos industriais. Em relação aos menores, em 1917, a reforma do regulamento sanitário, um dos órgãos do Estado procurou limitar a idade de admissão, restringir a jornada de trabalho dos menores de 15 anos a cinco horas por dia, proibir trabalhos pesados ou atividades de real perigo no maquinário fabril, assim como regulamentar o trabalho noturno. Em conformidade com seus princípios liberais, “os industriais moveram ação judicial contra a proposta de lei, alegando incompetência e inconstitucionalidade do Conselho para legislar” 24. Anos mais tarde, o CIFT-SP assumiu essa luta dos industriais têxteis. Jorge Street, à frente do CIFT-SP, apelou para impraticabilidade dos dispositivos de lei, argumentando que os menores só faziam tarefas simples e “seguiam-se as mais complexas com o trabalho adulto” 25.

A resistência imposta pelas associações de classe dos empresários encontrou em Jorge Street um quadro articulado com os interesses da classe industrial. Street assumiu a presidência do CIFT-SP em 1926, após Matarazzo abdicar da liderança por divergências já expostas aqui. Posteriormente, ele viria a atuar na Diretoria do CIESP e FIESP – o que significa, entre outras coisas, que o empresariado era pouco afeito a mudanças nos seus quadros de mando26.

Muito aquém de uma simples coincidência, o CIFT-SP foi criado na segunda onda grevista do ano, em outubro de 1919, com o claro objetivo de enfrentar a questão operária em evidência. Longe de identificar a fração industrial como grupo “débil” ou “fraco” no arranjo do bloco de poder da burguesia, vale assinalar que o patronato, num curto espaço de atuação política associativa, adquiriu importante experiência no trato das causas trabalhistas. Dialogava com representantes do legislativo pela imprensa, além de se reunir com representantes paulistas no Congresso Nacional para combater tratativas pela regulamentação do trabalho. Além disso, um dos seus pontos altos foi avançar no aprendizado das técnicas no campo da negociação dos conflitos entre patrões e empregados, lançando também uma contraofensiva para enfraquecer a atuação das organizações e entidades de operárias em São Paulo.

A partir da greve geral de 1920, o movimento operário entra num processo de refluxo e disputas políticas, embora as greves continuassem a eclodir. Contudo, não voltaram a ter a dimensão e repercussão daquelas do período precedente. O estado de sítio instaurado em julho de 1922, em razão do levante tenentista, foi prorrogado por diversas vezes até dezembro de 1926, desencadeando forte repressão contra as entidades operárias.

Neste momento, foi fundamental o papel político exercido pelo Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo no alinhamento do patronato paulista, tendo à frente o pragmático e astuto secretário geral, Otávio Pupo Nogueira, que viria a instrumentalizar os conflitos entre o capital e trabalho centralizando a linha política de atuação a ser adotada pelo patronato da indústria nas disputas de classe. Para isso, criou “listas negras” com os nomes das lideranças grevistas, que eram enviadas aos patrões e à polícia, e sugeriu revistas dos operários ao findar o expediente, para coibir o “roubo” de peças, na presença de um policial solicitado pelo CIFT. Além disso, organizou um minucioso cadastro de possíveis “desordeiros”, elaborado a partir de listas enviadas pelos patrões da indústria ao CIFT, e propôs ao governo, em 1921, “cadernetas de identificação” a fim de permitir a identificação dos operários nos estabelecimentos industriais, o que mais tarde viria a ser a carteira profissional 27.

Conforme Florestan Fernandes, a dominação da burguesia não se constitui somente em uma força socioeconômica espontânea e uma força política ordenadora. Esta “polariza politicamente toda rede de ação auto defensiva e repressiva, percorrida pelas instituições ligadas ao poder burguês, da empresa ao Estado”, permitindo a origem de uma superestrutura de opressão e de bloqueio do oponente, que converte, reativamente, a própria dominação burguesa na “única fonte de poder legítimo” 28.

CIESP 1928: um marco na organização dos industriais

A crise de representação no interior da Associação Comercial de São Paulo (ACSP) começou no início de 1928, ocasião em que as incompatibilidades da ala industrial no interior da Associação Comercial atingiram seu limite máximo. Problemas começaram a surgir em face do crescimento da participação dos industriais na Associação Comercial, pois, em virtude da sua crescente demanda na entidade, os industriais passaram a dificultar a convivência com outros setores no interior da ACSP, isso no que se refere à defesa dos objetivos de industriais e comerciantes. No centro do conflito estava a questão tarifária. O propósito dos industriais por uma tarifa que protegesse a atividade da indústria passou a afetar diretamente os interesses mercantis ali representados 29.

Os apelos do setor fabril por um aumento tarifário viraram uma questão de sobrevivência, mas a Associação Comercial não lhe dava o devido apoio, dificultando o atendimento de suas reivindicações. Sem perspectivas de solução, em janeiro de 1928, com a eleição para uma nova diretoria da entidade, o industrial Jorge Street, que fora líder do Centro Industrial do Brasil, liderou uma chapa em defesa exclusiva dos interesses industriais, em contraposição à chapa oficial mais identificada com o setor comercial da ACSP. Para resolver o impasse foi sugerida uma chapa de conciliação, liderada por Antonio Carlos de Assumpção. Contudo, não havia mais tempo para construir tal acordo. Os industriais romperam com a entidade e fundaram outra em conformidade com os seus negócios.

Apesar disso, industriais e comerciantes mantiveram-se alinhados quanto ao tratamento dado à implantação de leis trabalhistas, pois, desde 1919, o tema ganhava espaço nos debates parlamentares. Todavia, frequentemente eles se opunham quando o debate se enveredava para definição da política cambial e do comércio de importação e exportação. Esse estranhamento assumiu contornos mais nítidos na segunda metade da década de 1920, ocasião que, sob o governo de Artur Bernardes, se operou uma política de maior flexibilização das taxas, fator que beneficiava o comércio importador, elevando consideravelmente a entrada de tecidos estrangeiros, principalmente aqueles de origem inglesa. Em face disso, representantes das indústrias têxteis, principalmente no eixo Rio-São Paulo se mobilizaram em defesa da indústria nacional.

A voz do empresariado têxtil demandando proteção tarifária passou a ocupar espaços importantes no debate que se seguiu. Ademais, o quadro político e econômico na Primeira República já apresentava fortes sinais de crise no ano de 1928. Impelindo setores anti-industrialistas do Partido Democrático de São Paulo (PD) a acusar os grandes industriais das indústrias têxteis de “magnatas” e de visarem somente o lucro. Ironicamente, os industriais na campanha tarifária de 1928 se encontravam mais ligados ao Partido Republicano Paulista (PRP), mas isso por pragmatismo casual ou por convicção política? Para Maria Antonieta Leopoldi, não foi de se estranhar que, quando se formou o Centro das Indústrias do Estado de São Paulo , em meio à campanha tarifária de 1928, com representantes da grande indústria vindos da ACSP e do CIFT-SP, a aliança da grande indústria com o PRP tenha continuado. Ao mesmo tempo, a “ACSP tendeu a apoiar o partido de oposição, o PD” 30.

Como já expusemos aqui, sem possibilidade de convívio interno, a ruptura dos industriais com a ACSP ocorreu nesse contexto. A cisão resultou na formação do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo. Criado no início de junho de 1928, a primeira diretoria do CIESP foi composta por nomes representativos do empresariado: Francisco Matarazzo (presidente), Roberto Simonsen (vice-presidente), Otávio Pupo Nogueira, Jorge Street, Francisco Matarazzo e Horácio Lafer, Antônio Devisate e José Ermírio de Moraes.

A primeira preocupação desses dirigentes industriais, perseguidos em várias frentes por propostas políticas que os qualificavam como “inimigos do povo”, foi repelir as críticas endereçadas contra a indústria. Em resposta aos ataques, rapidamente buscaram mecanismos para “reunificar” a própria fração de classe, a fim de normalizar um discurso ideológico “que não só enunciava o tema da industrialização na perspectiva dos industriais, mas também o generalizava como projeto político, para as demais frações de classe da burguesia" 31. Na visão dos industriais do CIESP, a indústria se constituía, inegavelmente, como um fator de prosperidade nacional. Destacava-se o caráter colonial da economia brasileira e sua vida custosa. Assim, proteger a indústria transformara-se na bandeira mais importante de atuação política da entidade. Segundo Simonsen, o aumento da capacidade de consumo do país representaria acesso a um considerável mercado para os empresários brasileiros: "o consumo e a produção, crescendo harmonicamente, aumentarão a riqueza, trarão o engrandecimento do país (...), que poderá com a calma e a serenidade precisa resolver todos os demais problemas nacionais” 32.

Para Edgar De Decca, em muitos aspectos, o ano de 1928 representou um importante marco para os industriais de São Paulo. A fundação do CIESP conferiu ao empresariado paulista maior nível de organização e unidade, além de criar um fórum para ressaltar o indispensável papel da industrialização ao bem-estar do povo brasileiro. O Centro nascia com o objetivo de representar os interesses estritamente industriais e lutar pelo avanço da atividade manufatureira no país. Outra tarefa marcante da nova entidade foi continuar combatendo a luta do proletariado por leis sociais. No discurso do CIESP voltado aos poderes públicos, a luta operária por proteção trabalhista não passava de uma “luta subversiva”, ao mesmo tempo em que, por intermédio do PRP, os industriais intervinham no legislativo para bloquear as iniciativas parlamentares favoráveis à legislação trabalhistas 33, principalmente àquelas defendidas pelos deputados federais Maurício de Lacerda e Nicanor Nascimento.

O peso político da burguesia industrial no Partido Republicano Paulista havia crescido no final dos anos 1920, o que permitiu, por exemplo, que o partido “tivesse sucesso em sua intervenção em favor da elevação das tarifas de importação de produtos têxteis” 34. O processo de autorreconhecimento do empresariado industrial como fração no seio da burguesia não conduziria o CIESP à oposição ao “arranjo oligárquico” liderado pelo PRP. Nas eleições presidenciais de 1929, a entidade não só apoiou a candidatura paulista de Júlio Prestes, como também se mobilizou decididamente para elegê-lo. O CIESP se transformou em uma espécie de posto avançado do alistamento eleitoral. As orientações para o alistamento dirigido ao conjunto das associações patronais chegavam diretamente através das circulares expedidas pela a entidade:

Conforme poderão ver o anexo, as indústrias de S.Paulo estão empenhadas em desenvolver o alistamento eleitoral no Estado. Delegados de todas as sociedades da classe industrial, já iniciamos este serviço, com a preocupação de não provocar perdas de tempo do pessoal que vai ser alistado e de não provocar despesas de qualquer espécie. O nosso pessoal especializado vae a cada fabrica, a hora que mais convier aos seus donos, fazendo o fornecimento grátis do material necessário a cada processo de alistamento. Com esta organização, as perdas de tempo são reduzidas ao mínimo, não parando o trabalho fabril um só instante (...) 35.

O apoio logístico e técnico oferecido aos industriais pelo CIESP foram substanciais. As circulares receberam o carimbo de “confidencial”, e ofereciam ainda “uma ficha dos eleitores” com as suas respectivas fotografias. O Centro fez divulgar um chamado público na imprensa intitulado “Aos Industriais”’. A carta solicita engajamento da classe em apoio à candidatura de Júlio Prestes, para promover e facilitar “o alistamento eleitoral daqueles que, com o seu voto, quizerem prestigiar os candidatos apontados à consciência nacional por 17 Estados da Federação” 36. Assinam o chamado público: o CIESP, o CIFT-SP, o Centro do Comércio e Indústria de Madeira, Centro dos Industriais de Papelão, Centro dos Industriais de Calçados, União dos Fabricantes Nacionais de Papel, entre outros.

Cumpre ressaltar que o programa da Aliança Liberal (frente que apoiou Vargas) não contemplava a questão industrial, no fundo reeditava antigos preconceitos contra a indústria e exaltava a “vocação agrária” do Brasil. Em 1932, na Revolução Constitucionalista, o CIESP e o FIESP comprometeram-se politicamente com a oligarquia paulista contra o governo provisório de Vargas. Simonsen foi alçado à condição de “general da Revolução”, mas com a vitória varguista os chefes da revolução, inclusive Simonsen, tiveram de exilar-se. Todavia, “Vargas não tardou a permitir-lhes o regresso e consentiu em que eles reassumissem a política estadual” 37. Como podemos perceber, a criação do CIESP representou para a fração industrial da burguesia a consciência de que difundir a defesa da indústria para o conjunto da sociedade exigia uma ação política capaz de extrapolar os limites impostos pelos muros das fábricas 38.

Desse modo, o caráter político do CIESP obedecia à lógica da emergência de um projeto de classe da burguesia industrial. Neste, a difusão do industrialismo como expressão legitima de riquezas, propunha-se não apenas a ganhar o debate, mas também reorganizar a sociedade sobre novas bases exigidas pela a acumulação do capital. Admitia-se, porém, a manutenção do ritmo da acumulação cafeeira, e o próprio Simonsen, em mais de uma ocasião, defendeu que não havia contradições entre os postulados da indústria e agricultura no Brasil. Ambos eram indispensáveis ao progresso da nação, “um projeto político que determinava o lugar da indústria como a outra face da economia cafeeira”, projetando-se efetivamente como elemento de transformação progressiva da política econômica de Estado 39.


 

A criação da FIESP e a nova legislação sindical

Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, através da Revolução de 1930, novas regras foram adotadas para regulamentar a representação sindical no Brasil. Vargas efetivou o enquadramento corporativo das entidades de classe: sindicatos operários e associações patronais. O CIESP buscou rapidamente se adaptar ao decreto 19.770 de 1931, que estabeleceu a criação de federações. Essa medida estimulou uma importante ação política da recém-criada Federação das Indústrias de São Paulo, a FIESP, junto aos industriais paulistas. Para isso, alterou seus estatutos e passou a se denominar como FIESP. O Artigo 2º do decreto trazia o seguinte:

Constituídos os sindicatos de acordo com o artigo1º, exige-se ainda, para serem reconhecidos pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, e que adquirirem, assim, personalidade jurídica, tenham aprovados pelo Ministério os seus estatutos, acompanhados de cópia autêntica da ata de instalação e de uma relação do número de sócios com os respectivos nomes, profissão, idade, estado civil, nacionalidade, residência e lugares ou empresas onde exercerem a sua atividade profissional 40.

Antes de 1931, os industriais estavam organizados em associações setoriais e regionais nos principais centros industriais brasileiros. Como dito, no Rio de Janeiro já havia o Centro Industrial do Brasil desde 1904, em São Paulo, o CIESP em 1928, em Minas Gerais, o Centro Industrial de Juiz de Fora (CIJF), em 1926, e no Rio Grande Sul, o Centro da Indústria Fabril do Rio Grande do Sul (CIFRS), em1930. Os Industriais receberam a legislação sindical de 1931 com muita suspeita. Sua insatisfação se expressou com o regulamento “cujos dispositivos (...) não se adaptavam às organizações patronais” já existentes. Alegaram ser pouco razoável que as associações empresariais tivessem a mesma regulamentação que as do proletariado urbano. Por causa disso “solicitaram modificações ao governo. Mesmo assim optaram por se oficializar” 41.

Uma das primeiras medidas da FIESP foi desenvolver intensa campanha de filiação de sócios, oferecendo a oportunidade aos sindicatos patronais de tornarem-se oficiais, com a prerrogativa de status de órgão consultivo do governo. Chamava a atenção para os riscos da intensa sindicalização operária em curso. Esse fator, segundo a FIESP, terminaria por colocar os empregadores não-sindicalizados em situação de inferioridade. A ação da entidade foi centrada em três importantes frentes: reagir para influenciar a nova ordem sindical corporativa, defesa e consolidação de um projeto industrialista para o Brasil e, por último, combater a adoção de medidas favoráveis à legislação social propostas pelo Executivo de Vargas.

A FIESP, embora reticente ao projeto de enquadramento sindical do governo das entidades de classe, aceitou a nova lei de “sindicalização” de patrões e empregados. Em julho 1931, o interventor federal de São Paulo usou o decreto para pôr fim à greve nas indústrias têxteis, movimento dirigido por organizações não reconhecidas oficialmente pelo Ministério do Trabalho. Todavia, quanto às determinações da lei que atingia os patrões, eles se mobilizaram para “eximir as associações patronais de muitos controles impostos às organizações de trabalhadores” 42. Os resultados não demoraram a aparecer, foi criado um sistema de sindicatos operários submetidos a um rigoroso controle e uma rede de sindicatos patronais e federações com considerável autonomia.

Na Constituição de 1934, houve a modificação da legislação sindical varguista de 1931. A reformulação deu-se através do decreto 24.694 (12/7/1934). A nova lei incorporava várias sugestões dos industriais reunidos no Centro Industrial do Brasil. A mudança mais emblemática, que representou uma conquista para os industriais, foi a diferenciação adotada pelo Ministério do Trabalho entre os sindicatos operários e os patronais. Com ela, as entidades patronais passaram a ter outro status no governo Vargas. Essas organizações, pelo seu caráter de classe, passaram a ser vistas como “órgãos consultivos”, e por isso podiam indicar representantes para os principais conselhos econômicos, responsáveis pela elaboração de propostas para o setor industrial e de comércio exterior.

A presença das lideranças industriais em órgãos decisórios do aparelho de Estado foi uma realidade política. Entre 1920 e 1940, estavam na Comissão Revisora de Tarifas, no Conselho Nacional do Trabalho, no Conselho Superior da Indústria e Comércio, na Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, na Presidência do Banco do Brasil, entre outros órgãos 43. A defesa de uma linha de pensamento industrializante nas políticas do Estado teve repercussão na década de 1930. Isso devido a um empresariado bem mais ativo que anteriormente. Em que pese à relativa indefinição dos rumos da política econômica de Getúlio Vargas até 1937, a defesa da industrialização foi progressivamente incorporada pelo governo, tal como enunciado por Roberto Simonsen em 1928, e passou a ser associada à própria construção da nacionalidade. Entretanto, Gabriel Cohn entendia que as várias reivindicações empresariais atendidas por Vargas não obedeciam a um plano nacional de fomento da indústria. Para Cohn, essa demanda se constituiu, pelo contrário, como fruto de um processo espontâneo de substituição de importação motivado pelos altos preços dos produtos importados, isso por causa da desvalorização da moeda, e da existência de recursos necessários para manter as movimentações de compra no exterior 44.

A burguesia industrial era, no início da década de 1930, um setor social com um peso na economia muito inferior ao setor agroexportador. Possuía, no entanto, uma dimensão que lhe possibilitava expressar seus interesses na esfera de poder do Estado. Cabe lembrar que os patrões da indústria ocupam um papel específico no processo de produção e de reprodução ampliada do capital, que os vincula de maneira indissociável à classe dos capitalistas. Assim, seu pertencimento à classe dos capitalistas não é definido por uma relação de natureza jurídica de propriedade, mas sim pelo lugar ocupado por estes nas relações de produção. Desse modo, conforme Alvaro Bianchi, “a relação de forças objetiva, aquela que se estabelece no nível das forças produtivas e sobre a qual se erguem os grupos sociais, permitia ao empresariado industrial fazer ouvir sua voz” 45.

A fundação de federações industriais durante a década de 1930 fortaleceu o roteiro de formação de novas lideranças políticas no seio da burguesia industrial. Se durante a década de 1920 se destacaram o industrial Jorge Street e Otavio Pupo Nogueira, na década seguinte, figuras como Roberto Simonsen, em São Paulo, Euvaldo e Vicente Galliez, no Rio de Janeiro, são indícios de que, além de ser uma força que objetivamente marcava presença na realidade nacional, os industriais adquiriram consciência de seus interesses e procuraram organizá-los em entidades de classe. A fundação da FIESP representou, na conjuntura política e econômica dos anos 30, um marco fundamental na elaboração e defesa de um projeto político-industrial para o Brasil.

Ademais, a relação entre burguesia industrial e o Estado varguista não foi o idílio preconizado pelos autores que viam no Estado pós-30 o grande arauto dos interesses da classe dos industriais. O apoio do CIESP às candidaturas de Washington Luís e Júlio Prestes foi categórico. Na Revolução Constitucionalista de 1932, por sua vez, entidades industriais apoiaram a ação belicista provocada pela burguesia agrária paulista contra Vargas. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo se engajara totalmente na guerra. A indústria paulista em conformidade com o desejo de suas lideranças empresariais passou a produzir armas e munições às tropas de São Paulo.

Assim, o modus operandi da burguesia industrial paulista se deteve, entre outras coisas, na assimilação das experiências acumuladas pelo setor econômico e político que compunha o bloco de poder hegemônico do Estado, liderado em essência pelo patronato agrário brasileiro. E, ainda hoje, aquilo que vislumbramos como “Brasil Moderno”, ao mesmo tempo em que se desenvolve e se diversifica, preserva e recria traços e marcas do passado recente ou remoto. Ou seja, no Brasil, o arcaico e o moderno compõem as faces de uma mesma realidade 46.

1 Mestre pela Universidade de São Paulo desde 2016. Ingresso no doutorado em 2017, pelo Programa de Pós-Graduação em História Econômica (PPGHE–FFLCH-USP). E-mail para contato: ersilveira@usp.br.

2 Maria Saez Leme, A Ideologia dos Industriais Brasileiros: 1919-1945, Petrópolis, Vozes, 1978, p.12.

3 Ibidem, p. 11.

4 Ibidem, p. 14.

5 Ibidem, p. 18.

6 De 1913 a 1917 foram criados, só no Estado de São Paulo, 323 novos estabelecimentos industriais, representando um capital 14.087:624$000 contos. O setor calçadista abriu 21 novas fábricas, no setor têxtil foram sete novas empresas e mais três fábricas de chapéus (JORNAL DO COMMERCIO: 09/7/1918).

7 Segundo Wilson Suzigan, “O surto de industrialização no estado prosseguiu com o gradual aumento da produção até 1923, após o que teria seu ritmo freado por acontecimentos alheios ao fenômeno, como foi o caso do acontecimento revolucionário de 1924 e a crise energética que durou até 1926” (Wilson Suzigan, “A Industrialização de São Paulo”, Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, nº 25, abr./jun. 1971, p.93).

8 Maria Alice Rosa, Condições do Trabalho na Indústria Têxtil Paulista - 1870-1930, São Paulo, Hucitec, 1988, p. 77.

9 Circular do CIFT-SP, 07/7/1926, apud Maria Rosa Ribeiro, Condições de Trabalho na Indústria Têxtil Paulista (1870-1930), São Paulo, Hucitec, 1988, p.78.

10 Ata da Assembleia Geral Extraordinária, CIFT-SP: 06/7/1926, apud Maria Rosa Ribeiro, op. cit., p. 80.

11 Maria Antonieta P. Leopoldi, Política e Interesses na Industrialização Brasileira: as associações industriais, a política econômica e o Estado, São Paulo, Paz e Terra, 2000, p. 107-108.

12 Ibidem, p. 108.

13 Idem.

14 Claudio Batalha, O Movimento Operário na Primeira República, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, p. 54.

15 O ESTADO DE S.PAULO, 03/5/1919. Nesta e em outras citações de jornais consultados, preferimos manter a grafia original apresentada, sem modernizá-la.

16 José de Souza Martins, O Cativeiro da Terra. São Paulo, Hucitec, 7ª edição, 1998, p. 133.

17 Em 1924, a ideia do “patrão como pai” ainda era muito difundida pelos industriais paulistas. Após distribuir um bônus de fim de ano aos seus empregados, “o Sr. Conde Matarazzo e o Sr. Grande Crespi, por duas formas diversas, mostraram ao seu pessoal obreiro que o patrão é mais alguma cousa que patrão – é amigo e, digamos, um pouco pai dos que trabalham ao seu lado” (Circular do CIFT-SP nº 308, 1° abril de 1924, apud Paulo Sérgio Pinheiro; Michael M. Hall. A Classe Operária no Brasil: condições de vida e de trabalho, relações com os empresários e o Estado, vol.II, São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 208).

18 Sidney Tarrow, O Poder em Movimento, Petrópolis, Editora Vozes, 2009, p.19.

19 E. P. Thopson trata essas “identidades coletivas” por classe social, para ele: “Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição” (E.P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, São Paulo, Paz e Terra, 1987, pp.09-10).

20 Cristina Hebling Campos, O Sonhar Libertário, Campinas, Pontes Editores, 1988, p.67.

21 No Rio de Janeiro o próprio CIFTA defendeu a jornada de 8 horas junto ao presidente: “O Centro Industrial de Fiação de Tecelagem appella para o espirito liberal e esclarecido de v. exa. no sentido de usar de todo o seu alto prestigio a fim de obter do Congresso Nacional essa lei de justiça social, satisfazendo assim as justas aspirações de todos que trabalham nas industrias nacionais” (O ESTADO DE S.PAULO, 7/5/1919).

22 O ESTADO DE S.PAULO, 7/5/1919.

23 Idem.

24 Maria Izilda Santos de Matos, Trama e Poder: trajetória e polêmica em torno da indústria de juta, Rio de Janeiro, 1996, p. 76.

25 Idem.

26 Palmira Petratti Teixeira, A Fábrica de Sonho: trajetória do industrial Jorge Street, São Paulo, 1990, p. 51.

27 A Carteira Profissional viria a ser adotada oficialmente no governo Vargas, por meio do decreto 21.175 de 21/3/1932. Era uma inovação há muito tempo preconizada pelos patrões da indústria, com o claro objetivo de controle da mão de obra operária (Paulo Sergio Pinheiro; Michael M. Hall, op. cit., p. 197-198).

28 Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p. 303.

29 Renato M. Perissinotto, Classes Dominantes e Hegemonia na República Velha, Campinas, Editora da Unicamp, 1994, p. 135.

30 Maria Antonieta P. Leopoldi, op.cit., p. 109.

31 Edgar de Decca, 1930 O Silêncio dos Vencidos, São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 141.

32 Roberto Simonsen, “Orientação Industrial Brasileira” apud Edgar Carone, Evolução Industrial do Brasil, São Paulo, Difel, 1977, p. 64-65.

33 Edgar de Decca, op. cit., p. 23.

34 Barbara Weinstein, (Re) Formação da Classe Trabalhadora no Brasil 1920-1964, São Paulo, Cortez Editora, 2000, p.77.

35 Circular do CIESP, nº 67, 04/7/1929.

36 “Carta aos Industriais”, publicada na imprensa no dia 08/8/1929. Também foi expedida no anexo da circular nº 67 do CIESP.

37 Warren Dean, A Industrialização de São Paulo – 1880-1945, São Paulo, Difel, 3ª edição, 1971, p. 209.

38 Edgar de Decca, op. cit., p. 155.

39 Idem, p. 154.

40 BRASIL. Decreto nº 19.770, de 19 de março de 1931, Portal da Câmara de Deputados, disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19770-19-m…> acesso em 07 março 2019).

41 Maria Antonieta P. Leopoldi, op. cit., p. 76-77.

42 Barbara Weinstein, op. cit., p. 81.

43 Maria Antonieta P. Leopoldi, op. cit., p.327.

44 Gabriel Cohn, “Problemas da Industrialização no Século XX, em Carlos Mota (Org.), Brasil em Perspectiva, São Paulo, Difel, p. 297.

45 Alvaro Bianchi, Hegemonia em Construção: a trajetória do PNBE, São Paulo, Xamã, 2001, p.35.

46 Eujacio Roberto Silveira, São Paulo 1917-1921, Aprendendo a Ser Patrão: o ‘fazer-se’ da burguesia industrial paulista, Riga, Novas Edições Acadêmicas, 2018, p. 304.