A ação política do empresariado agroindustrial e o reforço da dependência: Lei Kandir e a intensificação primário-exportadora

 

Diogo Eduardo Moysés Carvalho dos Santos (PPGHE/USP)1

 

O presente artigo tem como objetivo apresentar a atuação política da burguesia agroindustrial brasileira no processo de recomposição da economia do país ao longo da década de 1990, período transcorrido sob os imperativos do neoliberalismo. Tendo como finalidade determinar as características da reconfiguração da dominação burguesa no Brasil neste contexto, será observada a ação política dos grupos de pressão desta fração de classe, organizada em associações empresariais, como a Abag (Associação Brasileira do Agronegócio), e em blocos parlamentares, em especial a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Além disso, será observado como, por um lado, essa atuação parlamentar vinculada ao setor e, por outro, o comportamento de alguns quadros do empresariado se inserem em um contexto mais amplo de reforço da condição dependente do capitalismo brasileiro.

Para ilustrar como realizou-se a atuação organizada do setor agroindustrial em prol de políticas públicas que atendessem a categoria nessa conjuntura, analisam-se aqui as circunstâncias de criação e os impactos da Lei Complementar n° 87/1996, a Lei Kandir. Este foi um dos instrumentos legais adotados no Brasil no processo de configuração neoliberal da economia no final do século XX – processo este relacionado a uma recomposição mais ampla do conjunto do sistema capitalista, iniciado na década de 1970 –, e produziu consequências relevantes também nas décadas seguintes. Entre diversas medidas, essa legislação autorizou a isenção da tributação de produtos primários e semielaborados destinados à exportação, como a soja, o milho e a cana-de-açúcar, desonerando os produtores dessas mercadorias de um dos principais impostos do país, o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Esta foi uma medida que beneficiou diretamente o empresariado agroindustrial e que teve como resultado uma queda considerável na arrecadação dos estados produtores, além de acarretar consequências para o conjunto da economia nacional, impulsionando um processo mais acelerado de regressão industrial e de reprimarização da economia nacional.

A importância do estudo da dinâmica gerada por essa lei deve-se a algumas razões. Primeiramente, a adoção desse instrumento legal se insere em um processo histórico que não se restringe ao Brasil e que tem dimensões contraditórias. No caso brasileiro, ocorre, a partir dos anos 1990, ao longo dos governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, um salto escalar na acumulação de capital, derivado da enorme abertura internacional da economia, com o forte ingresso de investimentos diretos estrangeiros, potencializado pelas privatizações. Esta mudança reforça o padrão dependente das associações entre capitais brasileiros e estrangeiros, em um processo de alinhamento ao consenso neoliberal.2 Segundo porque, ao isentar a exportação de produtos primários oriundos do agronegócio e das empresas mineradoras, alavanca-se um processo que tem como consequência não somente a queda na arrecadação no recolhimento de impostos, mas, principalmente, a renúncia ao desenvolvimento independente da indústria de transformação. Com a regressão da presença de um setor intensivo em tecnologia no conjunto da economia nacional, acentua-se o caráter primário-exportador do país.

A Lei Kandir, portanto, se insere em um contexto de expansão da acumulação capitalista ao mesmo tempo que ocorre o reforço do caráter dependente da economia brasileira na divisão internacional do trabalho, processo este não restrito à década de 1990, mas continuado no início dos anos 2000, especialmente nos governos Lula. Assim, evidencia-se uma característica do desenvolvimento do subdesenvolvimento3 nacional: subdesenvolvimento não como sinônimo de ausência de expansão econômica ou estagnação, mas como uma categoria que representa um desenvolvimento econômico subordinado a dinâmicas externas, em articulação com classes internas e contra os interesses do conjunto dos trabalhadores do país, em um processo que produz formas renovadas de dependência.

Antes de detalhar o processo de criação da Lei Kandir e as consequências desta legislação para os rumos do subdesenvolvimento capitalista brasileiro, é preciso determinar alguns aspectos importantes. Primeiro, apresentar as características da principal fração de classe da burguesia interna interessada nas vantagens derivadas das desonerações fiscais, o empresariado agroindustrial. Em seguida, destacar uma das principais associações de classe do setor, na qual este empresariado se organiza e se articula para mobilizar suas pautas – a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Por fim, apontar como os interesses da fração burguesa, organizada nas entidades de classe, se materializam no Parlamento, locus de atuação de bancadas suprapartidárias. O setor agrário compõe um grupo de pressão poderoso, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), integrada por diversos membros do Congresso Nacional e popularmente conhecida como “bancada ruralista”. Desta forma, são sublinhadas as ações políticas e as estratégias que a burguesia agroindustrial, organizada sob a bandeira do “agronegócio brasileiro”, estabelece para a institucionalização dos seus objetivos.


 

A trajetória do setor agroexportador: da agricultura ao agronegócio

O setor primário-exportador é determinante, há séculos, no desenvolvimento do subdesenvolvimento da formação econômico-social brasileira. Como apontado por Caio Prado Júnior, o “sentido da colonização” do Brasil foi a montagem de uma economia agroexportadora, baseada no latifúndio, e subordinada às necessidades do desenvolvimento e da expansão do capitalismo, a partir do século XVI.4 Ao longo do processo de consolidação do sistema capitalista no Brasil, este setor manteve sua expressividade, adaptando-se e se integrando às diversas fases do desenvolvimento do capitalismo no país. Do ciclo da cana-de-açúcar à mineração do ouro no período colonial, passando pelas políticas do café, entre os séculos XIX e XX – e mesmo na expansão industrial entre as décadas de 1930 e 1970 – até o mais recente “boom das commodities”, como a soja, no início do século XXI, é notória a presença de políticas para o setor agrário que priorizam a exportação de commodities agrícolas e minerais.

Ainda que a economia agroexportadora brasileira tenha passado por diversos ciclos – ciclos esses, não apenas, mas fortemente subordinados e determinados pelas necessidades externas –, o processo de industrialização do país, a partir dos anos de 1930, determinará mudanças substanciais no setor primário. É a partir da década de 1950 que ocorre um vigoroso processo de industrialização da agricultura, afetado por um contexto mundial de expansão de capitais dos países de capitalismo central para os países periféricos. A partir dos anos 1960, o modelo ganha força no Brasil e combina a grande exploração agrícola com o estímulo ao uso de insumos químicos e industriais. Até a década de 1970 o comércio mundial de fertilizantes era controlado por empresas transacionais com sede principalmente nos Estados Unidos e na Europa. A partir dos anos 1980, verifica-se o aprofundamento da formação de monopólios de diferentes setores do complexo agroindustrial através de fusões. Tal mudança se concretiza com base no acesso destas empresas a políticas governamentais de crédito, o que propicia o aumento da concentração de capitais agrícolas, industriais e bancários. É deste período que ganha força no Brasil a identificação da economia agroindustrial como “agronegócio”.5

O conceito de agronegócio criado pelo empresariado agroindustrial tem como objetivo descolar o setor da definição simplória que enquadra a agricultura como o setor primário da economia, apenas. O termo surge para designar uma etapa de transformação da agricultura, elevando-a a uma posição de destaque quando vista a partir da sua relação com a indústria. O termo tem origem na tradução do termo agribusiness, cunhado em 1957 por John Davis e Ray Goldberg, intelectuais da Scholl of Business Administration, da Universidade de Harvard.6 Esse conceito identificaria o processo de fusão entre a agricultura e a indústria, dada a imbricação de diversas atividades da agricultura para além da produção de alimentos. Atividades como armazenamento, processamento e distribuição dos produtos foram transferidas para empresas, que também passaram a produzir produtos industriais utilizados neste modelo agrícola, como tratores, caminhões, combustível, fertilizantes, ração, pesticidas, entre outros.

Entretanto, o sentido de agronegócio ultrapassa uma simples descrição técnica de um setor econômico. Criado para identificar o processo de união entre agricultura e indústria, o conceito passou por transformações que acompanharam as reconfigurações da agroindústria capitalista. Primeiramente, o termo pode ser compreendido como um construto político-ideológico empregado pelo empresariado rural, em busca de gerar uma identidade e uma unidade para a multiplicidade de atores envolvidos no sistema agroindustrial. Neste artigo, para além da caracterização ideológica ou da simples descrição técnica, compreende-se agronegócio conforme caracterizado por Guilherme Delgado. Segundo Delgado, para a realidade brasileira, a categoria agronegócio representa uma associação do grande capital agroindustrial com a grande propriedade fundiária, o latifúndio. Essa associação efetua uma estratégia econômica de capital financeiro, buscando o lucro e a renda da terra, em conjunto com políticas de Estado para o setor.7

Evidentemente, à expressividade do setor agroindustrial no conjunto da economia brasileira (entre 1996 e 2017, o setor respondeu por 24,6%, em média, do PIB brasileiro)8 corresponde um peso político relevante nas disputas entre as classes, bem como nas disputas internas da classe burguesa. Tais disputas estão colocadas na necessidade de conformação do Estado para atender aos interesses do setor. Os estudos sobre as associações de classe da burguesia rural, como os trabalhos de Sonia Regina de Mendonça, remontam a formação de grupos de pressão desta fração burguesa ao período inicial da República no Brasil. As primeiras entidades, como a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB), eram representantes do “ruralismo”, um movimento político de organização e institucionalização de interesses de determinadas frações de classe dominante. Esses grupos passaram a delinear os discursos produzidos e veiculados pelos agentes e pelas agências vinculadas. 9 É relevante pontuar que remonta desta época a palavra de ordem das classes dominantes agrárias que tem permanências até os dias atuais: a vocação agrícola do país, o país destinado ao seu caráter primário-exportador. Vocação constantemente atualizada, como é possível identificar no slogan produzido e massificado pelo setor nos últimos anos, “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”.10

As formas de organização e de atuação da classe dominante agrária passaram por diversas transformações ao longo do século XX, mudanças que acompanharam as alterações do capitalismo brasileiro.11 Para os limites deste artigo, não se faz necessário um levantamento exaustivo de toda a trajetória de organização das entidades desta fração de classe, apresentando a dinâmica processual de cada uma das diversas associações empresariais, suas disputas, transformações e atuação política. Para ilustrar a atuação política organizada do empresariado, será apresentada a trajetória de uma das entidades envolvidas no processo histórico observado neste artigo – o de reconfiguração do capitalismo brasileiro, de reforço do caráter dependente e subordinado do Brasil no mercado mundial e de construção de novas formas de supremacia da burguesia do país. Portanto, será apresentada a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), entidade de destaque entre as diversas associações de classe da burguesia brasileira, que representa interesses dominantes do setor agroindustrial e que congrega expressivos membros ligados à agricultura capitalista.


 

A Abag e a institucionalização das políticas do empresariado agroindustrial

A Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) é a associação de classe que materializa no país a institucionalização da ideia de agribussines. A entidade, um aparelho privado de hegemonia da sociedade civil,12 reúne atualmente 87 membros aparentemente heterogêneos.13 Representa desde associações produtoras de produtos primários, como a soja e o milho (Aprosoja, Agroceres), expoentes do mercado financeiro (Itaú, Caixa, Banco do Brasil, Bolsa de São Paulo, Santander), monopólios industriais internacionais (Basf, Cargil, Michelin, Monsanto, Syngenta) e até a Rede Globo. Pelo perfil de seus associados, evidencia-se que o agronegócio se estrutura para além da atividade primária de produção, realizando uma imbricação entre amplos setores econômicos do país, além de conglomerados internacionais.

A Abag foi fundada em 1993, tendo como seu principal articulador Ney Bittencourt de Araújo, presidente do Grupo Agroceres, empresa pioneira nas modificações genéticas do milho. Ney de Araújo participou ativamente dos seminários promovidos pela Harvard Bussines School sobre agribussines, na década de 1970, tornando-se entusiasta e defensor do modelo. O empresário incorporou a missão de difundir o conceito no Brasil, dando início a um processo de mobilização do patronato rural. Para tanto, congregou importantes lideranças de um setor que acabou sendo reinventado. A agricultura não deveria ser mais identificada somente como responsável pelas atividades “da porteira para dentro”, mas como um complexo sistema que une diversas cadeias produtivas, tanto agrícolas quanto industriais e de distribuição. Assim, a atividade primária foi atualizada de acordo com os entendimentos dos centros irradiadores do capitalismo e ressignificada como agribusiness.14

A Abag surgiu para expressar um novo tipo de atuação do empresariado agroindustrial. Sua atuação se diferencia da prática de outras entidades ruralistas – como a União Democrática Ruralista (UDR), que se posiciona de forma mais ativa em relação aos conflitos sociais no campo, defendendo de forma vigorosa a inviolabilidade do latifúndio, posicionando-se marcadamente como contrária às medidas distributivas no campo, como a reforma agrária. A Abag, de forma menos virulenta e com uma estratégia diferente daquela da UDR, marcará sua atuação no jogo institucional, na busca pela congregação dos interesses do setor agroindustrial e na ação pela institucionalização dessas demandas. Desde sua fundação, a associação tem realizado um trabalho sistemático de divulgação das concepções do agronegócio e da necessidade da conformação de um sistema. De acordo com a definição de agronegócio para a Abag, o setor primário não deve ser observado apenas como um provedor de alimentos in natura e um consumidor da própria produção. Para a entidade, o agronegócio deve ser compreendido como uma atividade que integra a agropecuária aos setores industriais e de serviços. Tal integração teria como base um sistema que expressa a noção de Complexo Agroindustrial (CAI), isto é, as atividades e os agentes envolvidos com a agricultura seriam partes constitutivas de um conjunto integrado cujo desenvolvimento só seria possível se esse sistema fosse considerado em suas interdependências.15

A difusão do conceito de CAI, para além de ter como objetivo unificar os grupos que compunham a associação, teve como finalidade gerar um reconhecimento social que qualificasse o agronegócio como elemento central na vida do país. Com isso, a disputa da Abag também se torna uma disputa pela hegemonia na sociedade civil. A associação passa a colocar entre seus propósitos o de convencer a sociedade da importância do agro, atualizando o discurso da burguesia agrária, que, por sua vez, remonta às noções do ruralismo da passagem do século XIX para o XX, que afirmava a “vocação” agroexportadora do país, e o papel do setor agrário como produtor de riquezas e base principal da economia nacional.16 No próprio discurso de apresentação da Abag, em pleno Congresso Nacional, o fundador Ney Bittencourt Araújo afirmou que da eficiência do agribusiness dependeria a segurança alimentar do país, “pedra fundamental de seu desenvolvimento como sociedade justa”.17 E mais, expressou, ainda, a autoridade de quem apresentava a Segurança Alimentar como a principal responsabilidade social do sistema – ou seja, o agronegócio é o principal responsável pela alimentação da população brasileira, quiçá, mundial. E, ao fazê-lo, defendeu demandas em termos de políticas públicas e de tratamento diferenciado por parte do Estado. Assim, a Abag centra sua atuação em quatro linhas discursivas: 1) desenvolvimento sustentável; 2) integração à economia internacional; 3) eliminação das desigualdades e da miséria; 4) respeito ao meio ambiente.

Entre as ações promovidas pela Abag para difundir suas políticas e suas demandas, destacam-se grandes eventos, como a Agrishow, o Congresso Brasileiro do Agronegócio (CBA) e os Fóruns Abag. Esses eventos são utilizados como momentos de criar o consenso entre os diversos atores em torno das demandas do setor, além de serem espaços para debater e aprofundar as questões que têm em comum as diferentes partes da cadeia produtiva. Nos últimos anos, os encontros reuniram autoridades de diversas esferas do poder Executivo, como prefeitos, governadores de estado e presidentes da República (todos os presidentes, de FHC a Michel Temer, participaram da Agrishow), evidenciando a capacidade de articulação e a imbricação do empresariado agroindustrial com as esferas estatais. Ademais, os eventos congregam também representantes das empresas de máquinas, equipamentos e demais insumos da agroindústria, além de membros das associações de classe e das agências financeiras (grandes bancos e cooperativas financeiras). Assim, as feiras e congressos promovem espaços onde se materializa a ideia do setor agroindustrial como um sistema articulado em múltiplos níveis, integrando produtores, agentes do mercado e autoridades de governo.


 

Lei Kandir

A Lei Complementar no 87/1996 (13/09/1996), conhecida como Lei Kandir (referência ao ministro do Planejamento do governo Fernando Henrique Cardoso, Antonio Kandir, que propôs a medida enquanto deputado federal), promoveu significativas mudanças nas formas de incidência e arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), entre as quais a desoneração deste tributo de competência estadual sobre as exportações de produtos primários e semielaborados. O ICMS é um dos principais tributos do sistema tributário brasileiro. A medida de isenção fiscal, adotada pelo governo mediante esta lei, teve como justificativa dar maior competitividade ao produto brasileiro no mercado internacional. Foi oferecido aos estados um “seguro-receita” como forma de ressarcimento das possíveis perdas de arrecadação. Assim, a União se responsabilizaria a fazer repasses para estados e municípios para compensar a queda no recolhimento deste tributo.

A aprovação da lei Kandir teve como circunstâncias dois fatores essenciais. O primeiro, diz respeito aos debates acerca do chamado “custo Brasil”, discurso que compreende os questionamentos que o empresariado brasileiro apresenta sobre os altos custos, especialmente impostos, para o setor produtivo. Tais questionamentos se inserem em um contexto de reformas neoliberais do Estado (reforma fiscal, reforma tributária, reforma da previdência, privatizações das empresas estatais), aplicadas ainda no início da década de 1990, com o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), e alavancadas ao longo dos governos FHC (1995-2002). O segundo fator refere-se à tentativa de favorecer o saldo da balança de pagamentos, tornar os bens e serviços comercializados mais competitivos no mercado internacional, visto que a partir da implementação do Plano Real, em 1994, o saldo da balança comercial torna-se deficitário (em 1994, a balança comercial brasileira passou de um superávit de US$ 10,4 bilhões para déficits de US$ 3,4 bilhões e US$ 5,6 bilhões, em 1995 e 1996). A situação desse déficit seria agravada a partir da crise cambial de 1999 e teria consequências sobre as políticas para o setor agroindustrial, que seria escalado pelo governo para gerar saldo comercial a partir do comércio exterior.18 Os benefícios da Lei Kandir seriam essenciais neste contexto.

Sobre o primeiro ponto – os questionamentos do empresariado quanto aos supostos altos custos produtivos –, é possível acompanhar através da grande imprensa do período a pressão exercida pelo setor agroindustrial para a aprovação de medidas para a redução de impostos sobre o setor. Pressões empreendidas tanto por meio de empresários e lideranças do setor quanto por parlamentares. Estes, organizados na Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a “bancada ruralista”, como já mencionado, grupo de pressão do setor agroindustrial no parlamento brasileiro.19 Destaca-se, nesse contexto, a atuação de Roberto Rodrigues, naquele momento, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB). Em 1999, este se tornaria presidente da Abag, e, pouco depois, ministro da Agricultura no primeiro governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006), durante o início do ciclo de “boom das commodities” agrícolas e da expansão massiva do agronegócio. Em agosto de 1995, enquanto porta-voz da SRB, Roberto Rodrigues defende a união do setor em suas diversas associações de classe para a luta pela aprovação de legislação que reduzisse os impostos sobre exportação, no contexto das reformas legislativas sobre os tributos:


 

É hora, portanto, de todo o setor rural se organizar para entrar nesta guerra. (...) A reforma tributária não é um capítulo, mas um grande processo, uma evolução para a modernidade. A SRB, a CNA, a OCB e organismos de representação do complexo agroindustrial estão se articulando para participar desta discussão, conclamando entidades regionais e setoriais a também se apresentarem para o debate. Só assim destruiremos um dos mais graves entraves estruturais que asfixiam a renda dos agricultores de todo o país.20


 

Em junho de 1996, Cesar Borges de Sousa, à época vice-presidente da Caramuru Alimentos (maior empresa processadora de grãos do país) e atualmente diretor da Abag, aponta para a oportunidade que o aumento dos preços das commodities no mercado internacional proporcionaria ao agronegócio: “Chegou o momento de o país tirar proveito dessa conjuntura internacional favorável, aumentar a produção e a exportação, agregar valor e gerar empregos”. Contudo, o entrave continua sendo o Custo Brasil: “Precisamos reduzir o chamado ‘custo Brasil’, e de imediato”. É possível perceber, também, o apelo ao discurso de que setor agroindustrial seria vítima de uma perseguição: “O agrobusiness brasileiro não suporta mais o tratamento discriminatório – o pagamento de ICMS na exportação, enquanto outros países concedem subsídios.”21

Importante ressaltar que, no contexto desses posicionamentos públicos, a pressão pela redução dos impostos não vinha apenas dos setores diretamente ligados à produção agropecuária. Ainda na Folha de São Paulo, em setembro de 1996, Antonio Ermírio de Moraes, do Grupo Votorantim (conglomerado que atua em diversos ramos, explorando a produção de cimento, de celulose, de laranja, além de controlar seu próprio banco), também encampa o discurso de pressão pela desoneração tributária:


 

Com a eliminação do ICMS sobre os produtos agrícolas, estamos falando em ampliar o emprego, gerar mais renda e atender o social. Este país não tem futuro se não for capaz de empregar a sua gente! Vamos rezar para que este plano saia do papel, pois uma vez realizado merecerá o respeito das outras nações desenvolvidas do planeta.22


 

O Projeto de Lei para alterar a tributação do ICMS foi apresentado pelo então deputado Antonio Kandir (PSDB/SP), em 14 de maio de 1996, e aprovado sem passar por maiores debates no Congresso Nacional. A proposição foi à votação em regime de urgência, tendo obtido 272 votos a favor e 82 contrários, no dia 27 de agosto de 1996. Na sessão na Câmara dos Deputados, a posição dos parlamentares da base do governo que se pronunciaram no plenário se alinhava com as diretrizes das entidades de classe do empresariado agroindustrial. Benito Gama (PFL/BA) defendeu a aprovação da lei como uma solução para o “custo Brasil” e para a agricultura brasileira: “com o início da votação deste projeto, começa-se realmente a reduzir o custo do Brasil, a dar maior importância para estimular a agricultura e a produção bens de consumo, através da isenção do ICMS sobre bens de capital.”23 Pauderney Avelino (PPB/AM) argumentou na mesma linha de Benito Gama: “Este projeto vem desonerar não apenas as exportações, mas também o custo interno das transações comerciais do nosso País.”24 Inocêncio de Oliveira (PFL/BA) foi além e projetou a desoneração tributária como um passo decisivo para a inserção competitiva da agroindústria brasileira no mercado internacional:


 

Neste momento em que o País precisa ter os produtos da sua pauta de exportação em condição de competir com os produtos de outros países do mundo e em que precisamos gerar empregos, o que constitui um desafio não só no Brasil, mas em todo o mundo, em face da automação, da tecnologia e da competição pela globalização da economia, este projeto, Sr. Presidente, vem ao alcance desse interesse maior do Brasil.

Ao desonerar as exportações, vamos resolver um dos graves problemas da nossa balança de pagamentos. Ao estimular o setor produtivo, através da desoneração dos bens de capital e a uniformização da legislação sobre o ICMS, estaremos dando grande passo para que o País possa realmente ocupar o seu lugar de destaque no cenário das nações.25


 

A lei foi promulgada e passou a vigorar como Lei Complementar, em 13 de setembro de 1996. Nas palavras do próprio Antônio Kandir, a aprovação da desoneração do ICMS para as exportações de produtos primários e semielaborados foi uma vitória contra o “custo Brasil”, além de


 

(...) um verdadeiro acordo nacional e democrático em favor do desenvolvimento”. (...) “Ao livrar o ICMS de toda cumulatividade, colocando-o à altura dos melhores impostos do gênero em todo o mundo, desferimos o mais contundente golpe, até aqui, contra o "custo Brasil" no campo tributário.” (...) “Ganha a agricultura e o ‘agribusiness’, não só pela desoneração das exportações de produtos primários e semi-elaborados, que compõem parte importante da renda do setor, mas também pela possibilidade de compensar-se do imposto pago na compra de máquinas e equipamentos agrícolas e recuperar todo o imposto que ficava até aqui escondido nas sementes, fertilizantes e outros insumos que se adquiria.26


 

A perspectiva de Kandir com a desoneração do ICMS se mostrava otimista no que tange não apenas a agricultura, mas também a indústria como um todo, que poderia aproveitar a redução da carga tributária para investir em modernização tecnológica, tornando-se mais competitiva no mercado internacional:


 

Ganha também a indústria, beneficiada, sobretudo, mas não exclusivamente, pela desoneração de máquinas e equipamentos, visto ser o setor que mais depende de bens de capital para produzir. Com isso, a indústria ganha maior capacidade de investir na modernização tecnológica para fazer frente à concorrência dos importados e tornar-se mais competitiva em mercados externos duramente disputados.27


 

No meio de todo o otimismo, entretanto, já era possível observar na época algumas vozes dissonantes do discurso vitorioso do governo e do empresariado, como o caso de Lauro Campos, economista e senador à época da aprovação da lei:


 

Puxando para cima os próprios sapatos, o criativo Keynes tucano conseguirá, no máximo, criar o mais complicado e incontrolável subsídio às exportações, que não se sabe se beneficiará alguém e a quem beneficiará. A lei determina que máquinas e materiais de uso das empresas brasileiras possam ser importados com isenção de Imposto de Importação. Em nome da modernização das indústrias beneficiadas com mais esse favor fiscal, sucateiam-se definitivamente os setores nacionais que produzem máquinas e materiais concorrentes com os estrangeiros que a lei Kandir desonera.28


 

O senador previa, portanto, que a desoneração do ICMS para as exportações traria como consequência uma regressão na indústria nacional.


 

Conclusão: dialética da desindustrialização e da reprimarização

Os efeitos da Lei Kandir puderam ser observados quase imediatamente após a sanção da lei pelo Governo Federal. Contudo, suas consequências tiveram maior expressão poucos anos depois, com a mudança na política cambial, em 1999. Até aquele momento, a moeda brasileira era sustentada de forma artificial, com o real paritário ao dólar, devido ao influxo da moeda estrangeira advindo da desenfreada abertura ao capital internacional.29 Tal influxo foi decorrente da radical aplicação do receituário neoliberal por parte dos governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, que realizaram a privatização de setores estratégicos do patrimônio nacional – como a mineradora Vale do Rio Doce, o sistema Telebrás –, além de abrirem mão do controle acionário sobre a Petrobrás e a Embraer. Com a desvalorização do real após as crises internacionais de 1997 e 1999, uma série de medidas foram adotadas para equilibrar a balança de pagamentos e aumentar a conta de dólares. Nos anos 2000, diversas políticas internas foram promovidas pelo Estado para retomar a entrada de capitais, e o setor agroindustrial foi escalado para esse serviço. As medidas internas, como a mudança na legislação sobre a terra, permitindo a expansão de capitais sobre a fronteira agrícola, associada à valorização do preço das commodities (soja, milho, cana, carnes, celulose) no mercado internacional, propiciaram um aumento expressivo das exportações brasileiras. Entre 2002 e 2010, por exemplo, a participação dos produtos primários no valor das exportações brasileiras saltou de 25,2% para 38,5%.30 Portanto, a desoneração tributária para as exportações de produtos primários, inserida neste contexto de alta dos preços e de expansão da exploração das fronteiras agrícolas, pode ser enquadrada como um dos elementos que favoreceram a expansão do agronegócio, tendo como consequência, além disso, a não arrecadação de montantes expressivos gerados pelo comércio internacional.

O relatório final da Comissão Mista Especial sobre a Lei Kandir, grupo estabelecido no Senado Federal, em 2017, para a revisão dos repasses da Lei Kandir, a partir dos dados apurados pelo Conselho dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (CONSEFAZ), sinaliza que de 1996 até 2016, R$ 548 bilhões deixaram de ser arrecadados pelos estados em decorrência das isenções concedidas pela legislação às empresas primário-exportadoras.31 Este período, ressalte-se, cobre um momento de auge das atividades agroexportadoras no país, ocasião em que o setor nacional alcançou a liderança mundial na produção de produtos primários, como a carne e a soja. O expressivo montante não arrecadado indica também uma contradição no discurso das direções políticas do Estado brasileiro nos últimos anos. Nota-se que os sucessivos governos identificam o déficit nas contas públicas como um dos principais responsáveis pela estagnação econômica, pela incapacidade de investimentos em infraestrutura e de sustentação de políticas públicas e sociais, dando ênfase à suposta necessidade de adoção de “reformas” radicais, como a diminuição da máquina pública, as privatizações de empresas estatais e os cortes severos na Previdência Social dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, contudo, estes mesmos governos permitem que mais de meio trilhão de reais não seja arrecadado, sendo apropriado pelo setor agroexportador e seus associados no mercado internacional.

Mais do que apenas a queda na arrecadação, o incentivo dado pela Lei Kandir aos produtores de commodities negociadas no mercado internacional favorece a acentuação do caráter primário-exportador e da dependência da economia nacional. Mesmo quando os termos de intercâmbio são favoráveis – como durante o ciclo de alta das commodities, na primeira década dos anos 2000 –, a dependência se reforça ao incentivar uma corrida pela expansão da produção de matérias-primas com preços em alta, em detrimento da produção de manufaturados com maior intensidade tecnológica. Ao desonerar os produtos primários com alto valor no mercado mundial, o efeito em países dependentes como o Brasil é a perda de fôlego do desenvolvimento industrial e tecnológico voltado para as necessidades econômico-sociais internas. Este padrão acarreta um processo de desindustrialização e de reprimarização da economia, acentuando o caráter subordinado do Brasil na divisão internacional do trabalho.32

De acordo com Reinaldo Gonçalves,33 a desindustrialização pode ser definida como a tendência de queda da participação da indústria de transformação no PIB. Nos Brasil, nas últimas décadas, ocorreu uma redução precoce da industrialização, derivada do deslocamento da produção na direção dos produtos intensivos em recursos naturais. Dados de Guilherme Delgado, pesquisador do IPEA, apontam que, no final da década de 1990 e início dos anos 2000, período de ascensão dos preços das commodities no mercado mundial, ocorreu uma alteração na curva das exportações brasileiras, com a queda da participação de produtos manufaturados e uma acentuada elevação nas exportações primárias, revertendo uma tendência em curso desde a década de 1960.34

Ainda que pese a presença de ramos da produção industrial interna voltada para máquinas, equipamentos e demais insumos destinados à atividade agrícola – e que parte do setor agroexportador seja composto por indústrias em um sentido estrito, dependente de investimentos tecnológicos, como no caso das atividades ligadas aos produtos de origem animal (carnes, leite e seus derivados) –, a acentuação do caráter primário-exportador traz consequências deletérias para o conjunto da economia brasileira. Ao renunciar ao desenvolvimento econômico voltado para as necessidades objetivas do país e dos trabalhadores brasileiros, a desindustrialização e a reprimarização provocam um reforço da condição dependente e subordinada do país no cenário internacional, atendendo aos interesses políticos e econômicos de frações das classes dominantes internas, associadas a grupos do capitalismo central. Esta condição dependente é responsável por gerar uma estagnação do crescimento, uma perda de relevância do país como um ator importante no cenário mundial, mas, é, principalmente, fator que implica na queda nas condições de vida do trabalhador brasileiro: queda da renda, aumento do desemprego, aumento da superexploração da força de trabalho e a piora nas condições de vida da maioria da população.

A expansão agrícola e das atividades extrativistas minerais, vinculadas à desindustrialização e à inserção externa dependente, confirma um estilo de subdesenvolvimento típico à América Latina, do qual o agronegócio é parte primordial: o desenvolvimento do subdesenvolvimento na periferia do capitalismo. Este processo reforça o padrão de desenvolvimento econômico capitalista brasileiro, subordinado às necessidades dos países centrais, que estão associados internamente a uma classe dominante subalterna e inepta, historicamente de costas para o país, que não serve aos reais produtores de valor, os trabalhadores e a maioria dos brasileiros. Fatores que colocam a atualidade da necessidade de se pensar não apenas o rompimento com esse padrão de desenvolvimento, mas a construção de um novo modelo, de transição socialista, que possibilite um desenvolvimento atrelado às reais necessidades do país.


 


 

1 Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do Ensino Básico da rede pública.

2 Virgínia Fontes, O Brasil e o capital-imperialismo: Teoria e História, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2010, p. 328.

3 Desenvolvimento do subdesenvolvimento (1966) é o trabalho de André Gunder Frank que abriu os caminhos de estudos dos teóricos da dependência, na América Latina. Na fórmula de Gunder Frank, a dependência é vista como uma relação estrutural, que liga desenvolvimento e subdesenvolvimento. Assim, há uma relação na qual quanto mais desenvolvimento capitalista, mais dependência. Este artigo se norteia pela vertente da teoria crítica do marxismo latino-americano dos estudos sobre a dependência e sobre as particularidades do capitalismo no continente, a Teoria Marxista da Dependência (TMD). Elaborada principalmente por Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, a TMD é a síntese entre a teoria do valor de Marx e a teoria do imperialismo de Lenin. Trata-se de uma corrente que compreende que o capitalismo se reproduz na América Latina em uma forma particular, mas intensamente vinculada à totalidade integrada e diferenciada que é o capitalismo mundial. Ao contrário das interpretações de setores do pensamento brasileiro, que reputam à TMD uma suposta limitação de análise a fatores exógenos, a dependência é entendida por essa corrente como uma relação estrutural: não existiria apenas uma dependência externa, mas uma articulação de classes internas que se beneficia da dependência. Ver: Mathias Seibel Luce, Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias – uma visão histórica, São Paulo, Expressão Popular, 2018.

4 Caio Prado Jr, Formação do Brasil Contemporâneo, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 28.

5 Maria Luiza Rocha Ferreira de Mendonça, Modo capitalista de produção e agricultura: A construção do conceito de Agronegócio, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2013, p. 144.

6 John H. Davis; Ray Goldberg. A Concept of agribusiness, Boston, Harvard University Graduate School of Business Administration, 1957.

7 Guilherme Delgado, Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012), Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2012, pp. 89-93.

8 Dados compilados pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA) da Esalq/USP. https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx Último acesso em: 09 mar 2018

9 Cf. Sonia Regina de Mendonça, O ruralismo brasileiro (1888-1931), São Paulo, Hucitec, 1997.

10 Em junho do ano de 2016, o Grupo Globo – um dos maiores proprietários de mídia do mundo e líder absoluto nas comunicações no Brasil – iniciou a difusão da campanha “Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é Tudo”. Com o objetivo de “tratar a importância dos produtos agrícolas e das coisas do campo para a sociedade brasileira”, a campanha busca valorizar o setor agroindustrial nacional a partir de inserções diárias de propagandas na TV aberta e fechada, além de hospedar em seu portal de internet, G1, uma área exclusiva com notícias positivas sobre o agronegócio.

11 Cf. Sonia Regina de Mendonça, O patronato rural no Brasil recente (1964-1993), Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2009.

12 Adotam-se neste trabalho as categorias de sociedade civil e aparelhos privados de hegemonia como elaboradas por Gramsci, a partir das contribuições de Marx, Engels e Lenin. Para o revolucionário italiano, a sociedade civil é inseparável da noção de totalidade, da luta entre as classes sociais. Assim, Gramsci se afasta da origem liberal do termo, quando a sociedade civil era contraposta ao Estado, e procura definir um conceito que dê conta dos fundamentos da “produção social, da organização das vontades coletivas e de sua conversão em aceitação da dominação, através do Estado” (Virgínia Fontes, op. cit,, p. 133). A sociedade civil é a esfera da atividade política por excelência, o lugar em que atuam as organizações denominadas privadas (partidos, sindicatos e entidades de todo o tipo), que têm o objetivo de transformar o modo de pensar dos seres humanos. Portanto, o ponto central do conceito gramsciano de sociedade civil relaciona-se com a produção coletiva de visões de mundo, da consciência social, adequadas aos interesses do mundo burguês.

Os aparelhos privados de hegemonia, como é possível caracterizar a Abag, são a derivação da sociedade civil e se constituem de esferas associativas que se apresentam como associação voluntária. Não são entidades de composição homogênea e são formas organizativas que remetem às formas da produção econômica e política. É importante destacar que não há no pensamento de Gramsci a oposição entre sociedade civil e Estado. Ao contrário, sociedade civil é o duplo espaço de lutas de classes, “através de organizações nas quais se formulam e moldam vontades e a partir das quais as formas de dominação se irradiam como práticas e como convencimento” (Virgínia Fontes, op. cit,, p. 136). Gramsci, portanto, caracteriza a sociedade civil como elemento que articula a dominação direta (a produção) e a direção geral do conjunto da vida social (Estado). Assim, amplia a própria noção de Estado, para além do âmbito da coerção e da violência. Contudo, é importante frisar que, ao incluir uma dimensão da produção de consenso, papel dos aparelhos privados de hegemonia, Gramsci não desarticula consenso e coerção. Ambos se encontram estreitamente relacionadas. Desta forma, a importância da ampliação do conceito Estado e o entendimento do papel da constituição de redes de associatividade auxiliam na compreensão da consolidação do capitalismo na sua fase monopolista. Ver: Guido Liguori e Pasquale Voza (orgs.), Dicionário Gramsciano (1926-1937), São Paulo, Boitempo, 2017, p. 732.

13 A relação completa dos associados da Abag pode ser conferida no site da entidade: http://www.abag.com.br/institucional/associados Último acesso em: 15 fev 2019.

14 Elaine Lacerda, “Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e a institucionalização dos interesses do empresariado rural no Brasil”, em Ruris, volume 5, número 1, março de 2011, pp. 183-207.

15 Cf. Ney Bittencourt Araújo et al, Complexo Agroindustrial – o Agribussines Brasileiro, São Paulo, Agroceres, 1990.

16 Entre as ações de conquista do consenso em relação ao agronegócio como produtor de riquezas e motor do desenvolvimento do país, é possível destacar desde ações publicitárias, como a já referida campanha “Agro é tech, Agro é pop, Agro é tudo”, até o Programa Educacional Agronegócio na Escola. Este é um programa desenvolvido pela Abag em escolas públicas de Ribeirão Preto (batizada de “capital do agronegócio”), desde 2001. O principal objetivo do programa é valorizar a imagem do setor, reputando o agronegócio como agente de boas práticas de sustentabilidade ambiental, de produção e de desenvolvimento econômico e social. Cf. http://www.abagrp.org.br/acao-agronegocio-na-escola.php Acesso em: 15 fev 2019

17 Elaine Lacerda, op. cit.

18 Guilherme Delgado, “Especialização primária como limite do desenvolvimento”, em Desenvolvimento em debate, v.1, n.2, janeiro-abril e maio-agosto 2010, pp. 111-125.

19 A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) tem sua origem ainda no processo constituinte de 1988, quando parlamentares ligados ao setor agroindustrial se articularam na Frente Ampla Ruralista. Em 1995, foi fundada a Frente Parlamentar da Agricultura e em 2008 passa a ser denominada pelo seu nome atual. A FPA é um bloco parlamentar composto por deputados e senadores que tem como objetivo principal a defesa dos interesses do agronegócio. Nas últimas décadas, a bancada ruralista se notabilizou por sua grande capacidade de mobilização e articulação. Na legislatura atual (2019-2023), a FPA conta com 32 senadores (de um total de 81) e 225 deputados federais (de um total de 513).

Ver: https://fpagropecuaria.org.br/integrantes/todos-os-integrantes/ . Acesso em: 25 mar 2019.

20 Roberto Rodrigues, “Reforma tributária e agricultura”, em Folha de São Paulo, 14 ago 1995. Acesso em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/8/14/dinheiro/9.html

21 Cesar Borges de Sousa, “Hora de plantar”, em Folha de São Paulo, 1 de jun 1996. Acesso em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/01/dinheiro/7.html

22 Antonio Ermírio de Moraes, “Uma luz no horizonte”, em Folha de São Paulo, 15 set 1996. Acesso em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/9/15/opiniao/7.html

23 Diário da Câmara dos Deputados, Ano LI, n. 158, Brasília, 28 ago 1996, p. 24103.

24 Idem, p. 24104.

25 Idem, ibidem.

26 Antonio Kandir, “ICMS: turbinando o crescimento”, em Folha de São Paulo, 17 set 1996. Acesso em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/9/17/opiniao/8.html

27 Idem

28 Lauro Campos, “Os sapatos do dr. Kandir”, em Folha de São Paulo, 20 set 1996. Acesso em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/9/20/dinheiro/3.html

29 Ver Luiz Filgueiras, História do Plano Real: fundamentos, impactos e contradições, São Paulo, Boitempo, 2012.

30 Reinaldo Gonçalves, “Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas”, em Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n.31, fevereiro 2012, pp. 5-30.

31 Relatório Final da Comissão Mista Especial sobre a Lei Kandir, Brasília, Senado Federal, 2018, p. 25.

32 É importante destacar que a inserção externa dependente do país nos últimos anos também apresenta contradições específicas. A inserção vigorosa do país no mercado internacional pode ser entendida como dependente diante dos mercados centrais do capitalismo mundial. Na perspectiva da periferia do sistema, por outro lado, ocorre uma inserção brasileira de forma agressiva e expansiva, como pode ser observado na expansão do grande capital brasileiro sobre países vizinhos e sobre países de África – sem contar a liderança do Brasil na ocupação militar do Haiti. Na América Latina, é flagrante a expansão de latifundiários brasileiros sobre as terras do Paraguai (ver https://deolhonosruralistas.com.br/deolhonoparaguai/ ). Na África, ocorreu nos últimos anos uma atuação expressiva de grandes empresas nacionais da construção civil, como a Odebrecht. Estes são exemplos que podem evidenciar duas características estruturais da atual fase do capitalismo brasileiro: dependente e subordinado em relação aos polos centrais; protagonista e subimperialista sobre os países periféricos.

33 Reinaldo Gonçalves, op. cit., p. 9.

34 Guilherme Delgado, “Especialização primária como limite do desenvolvimento”, em Desenvolvimento em debate, v.1, n.2, janeiro-abril e maio-agosto 2010, pp. 111-125.