“As Grandes Cidades” e a Questão Salubre na Cidade de São Paulo em Fins do Século XIX

 

Diógenes Sousa1 (Doutorando PUC-SP)

Renata Geraissati Castro de Almeida2 (Doutoranda Unicamp)

 

Ao longo do século XIX a cidade se constituiu enquanto um fenômeno que se consolidou como objeto de estudo para especialistas, tais como, médicos, engenheiros, autoridades públicas, dentre outros. Compreender o espaço social e por intermédio de saberes especializados propor intervenções técnicas que visavam saneá-lo se afirma como uma das posturas recorrentes neste contexto de significativas modificações nas relações entre indivíduos, implicando novas dinâmicas de trabalho, de se apropriar das ruas e uma crescente sensação de desenraizamento.

Decifrar a cidade moderna e seus pormenores criou interpretações ambíguas, que foram ora otimistas e ora pessimistas com relação às formas de vida neste espaço3. Friedrich Engels, preocupado com a organização do proletariado, via as cidades inglesas como enormes aglomerações de seres humanos, que promoviam um insensível isolamento apesar das enormes similaridades entre a situação de vida dos habitantes. Para o poder público, estas multidões representavam um perigo, pois eram o foco de problemas sociais sendo necessário tornar os “labirintos” ́, compreensíveis apenas para seus próprios moradores, em locais esquadrinhados facilitando suas intervenções.

O livro publicado pelo alemão em 1945, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, se tornou bastante emblemático, por ser um dos primeiro livro que se refere à classe operária no seu conjunto, e não a apenas a ramos segmentados, porém, ainda mais relevante é o fato de que não se trata de um simples exame da situação das classes trabalhadoras, mas de uma análise da evolução do capital industrial e das consequências sociais da industrialização, com as suas implicações políticas e sociais.

Inúmeros observadores relatam que neste contexto pós Revolução Industrial houve a ascensão de uma categoria até então sem precedentes, os paupers, e foi a eles que Engels decidiu dedicar sua atenção. Seu texto se inicia com as seguintes palavras:


 

Trabalhadores, é a vos que dedico uma obra onde tentei descrever aos meus compatriotas alemães um quadro fiel das vossas condições de vida, dos vossos sofrimentos e das vossas esperanças e das vossas perspectivas. Vivi muito tempo entre vós para ficar bem informado das vossas condições de vida; consagrei a mais seria atenção a conhecer-vos bem; estudei os mais diversos documentos oficiais e não oficiais que tive a possibilidade de consultar; não fiquei nada satisfeito (...)”(Engels, 15 de março de 1845).


 

Oriundo de uma família de ricos proprietários de algodão de Barmen, na Renânia – a Casa Ermen & Engels, foi enviado entre 1842 a 1844, com 22 para trabalhar em uma indústria de sua família que produzia linhas de costura na Inglaterra. Em 1843, conheceu Mary Burns, operária de origem irlandesa, com quem viveu até a morte desta. Provavelmente, sua união permitiu com que o alemão adentrasse no cotidiano de certos meios operários irlandeses de Manchester, possibilitando com que o alemão desenvolvesse um olhar sensível a suas mazelas, diferente da forma com a qual os relatórios governamentais enxergavam esta população. Sendo assim, o que encontramos nesta publicação de 1845 é a sistematização de sua análise das condições de vida dos operários em Londres.

Em seu capítulo “As grandes cidades” o autor nota que elas se constituem, enquanto os lugares mais característicos do capitalismo, se tornando por excelência local da luta de classes de todos contra todos, e da exploração do homem pelo homem. Seu relato começa com a seguinte imagem:


 

Uma cidade como Londres, onde é possível caminhar horas e horas sem sequer chegar ao princípio do fim, sem encontrar o menos sinal que faça supor a vizinhança do campo, é verdadeiramente um caso singular. Essa imensa concentração, essa aglomeração de 2,5 milhões de seres humanos num só local, centuplicou o poder desses 2,5 milhões: elevou Londres à condição de capital comercial do mundo, criou docas gigantescas, reuniu milhares de navios, que cobrem continuamente o Tâmisa. Não conheço nada mais imponente que a vista oferecida pelo Tâmisa (...). Mas os desafios que tudo isso custou, nós só descobrimos mais tarde4”.

Ao lermos seu relato sobre a cidade, em um primeiro momento somos levados a imaginar suas ruas e pensar nas grandes proporções desta cidade, tanto populacional quanto de fronteiras geográficas, nos fazendo pensar que este tipo de agrupamento seria benéfico, contudo, em seu próximo parágrafo o autor nos alerta sobre todos os custos que esse processo acarretou, em especial, para a multidão que abarrota suas ruas.

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Ruas de Londres tomadas pela multidão 1875 - Gravura de Gustave Doré

O alemão concebia as cidades como um local de vício e de imoralidade, e atribuía à organização do espaço físico os comportamentos morais desta população. Ao utilizar como fonte o Journal of Statistical Society de 1840, o autor demonstra que 5.366 famílias viviam 5.294 habitações totalizando 26.830 indivíduos, fazendo com que um único cômodo fosse ocupado por cinco pessoas5. A respeito da planta urbana o autor relata que as ruas não eram planas e nem calçadas e eram tomadas por detritos, sem esgotos ou canais de escoamento. Em seus bairros de "Má fama", habitados pelos proletários, havia uma longa construção de tijolos com porões habitados e dispostos de maneira irregular. Contudo, a burguesia não resolveria essa questão, pois, lidavam com a pobreza com a mesma noção de alteridade com que lidavam com suas possessões coloniais, tal como relatou o pastor de St. Philip “creio que, antes do bispo de Londres ter chamado a atenção do público para essa paróquia tão miserável, a gente do West End a conhecia tal como conhece os selvagens australianos ou as ilhas dos mares do sul”6.

Ao mostrar que as críticas tecidas a Londres não se restringiam apenas aquele espaço, mas que eram inerentes ao que acontecia em todas as “grandes cidades do mundo” o autor faz uma crítica ao capitalismo, e mostra que longe de ser uma exceção, estas mazelas são partes constitutivas deste sistema. Uma vez que a pobreza é parte da reprodução do capital, Engels percebe que hipocrisia urbana é altamente lucrativa para seus produtores, que gastam pouco com matérias para a construção dos edifícios que esta parcela da população reside e lucram muito com seus aluguéis. Tal conjuntura nos remete ao contexto de formação da cidade de São Paulo em finais do século XIX, em que a demanda por moradias era uma das principais mazelas que assolava uma população que crescia exponencialmente, algo que como resultado gerou a construção de inúmeros cortiços e sua incipiente infraestrutura de esgotos.

São Paulo

Em fins do século XIX, com a fundação da Sociedade Promotora de Imigração (SPI), e a entrada de milhares de imigrantes, ocorreu uma enorme expansão demográfica na cidade, que pode ser identificada como responsável por diversos problemas sociais, como as aglomerações urbanas, a falta de moradia e a insalubridade. Maria Alice Rosa Ribeiro propõe que o Estado, ao assumir a responsabilidade de criar o mercado de trabalho livre, também sentiu a necessidade de estender sua ação para criar uma infraestrutura institucional capaz de atender aos problemas por ele incentivado7.

A leitura do primeiro capítulo que compõem a obra de Ribeiro, denominado Nos tempos das epidemias revela a preocupação da autora em cruzar informações pertinentes à questão da imigração em massa subvencionada pelo Estado de São Paulo, entre as décadas de 1870 e 1880, com o problema da crise de trabalho provocada pela mão-de-obra cafeeira e pela escravidão, além das políticas de saúde públicas que necessitavam definir uma série de práticas sanitárias para atender a demanda da população de uma São Paulo que crescia vertiginosamente. Em 1888, tem-se a criação da Hospedaria de Imigrantes em São Paulo e, com ela, o problema da superlotação como causadora de uma série de epidemias. Começava-se a pensar em questões de saneamento urbano para atrair novos imigrantes, principalmente em Santos, cidade portuária, ponto de chegada dessa nova população, além de Campinas, Ribeirão Preto e outros destinos pelo interior do Estado paulista. Junto ao crescimento urbano vinham também as desigualdades sociais, epidemias de febre tifoide e tuberculose.

Após a Proclamação da República, para efetivar seus projetos com relação ao trabalho livre, o Estado contemplou em sua agenda política a saúde coletiva, a tornando pública8. Entre os anos de 1891 e 1893, o Serviço Sanitário foi organizado, sendo subordinado à Secretaria de Estado do Interior. Para sua atuação foram criados um Conselho de Saúde Pública e uma Diretoria de Higiene, que visavam tratar das questões do saneamento básico, do policiamento sanitário e das desinfecções. No ano de 1894, foi promulgado o primeiro Código Sanitário composto por 520 artigos que regulamentavam tanto o espaço público quanto o privado. Até então, este tema era regido pelas normas contidas no Código de Posturas Municipais de 1875, que estabeleciam padrões para as construções, entre elas, a altura entre chão e teto, a necessidade de janelas em todos os cômodos, e a eliminação de alcovas9. Apesar destas regulamentações ao compararmos os projetos da Série de Obras Particulares com o que efetivamente foi construído percebemos que entre o desenho e a realidade ocorreram diversas incongruências, tal análise pode ser feita ao cotejar com o grupo Polícia e Higiene10.

O Código Sanitário regulou as diretrizes para as ruas e praças, para a construção das habitações em geral, para as habitações coletivas, para os hotéis e pensões, habitações das classes populares, fábricas e oficinas, escolas, teatros, mercados, padarias, açougues, matadouros11. Propor medidas específicas para a construção destes edifícios com funções distintas demonstra que estava em curso uma diversificação nas atividades comercias na cidade.

Além de como deveria ser feito o abastecimento de água, o serviço de esgotos, a precaução das moléstias, dentre outras normas. No Capítulo II - das habitações em geral, observam-se recomendações pormenorizadas de como o solo deveria ser saneado antes da construção das casas, e protegido da ação dos lençóis freáticos não permitindo a infiltração de umidade. O Código determinou as especificações dos materiais a serem utilizados nas estruturas, na hidráulica, no revestimento e no aparelho sanitário dos edifícios. Em especial causaram impacto nas moradias os seguintes artigos:


 

Artigo 46. - As alcovas que se destinarem a dormitorios ou permanencia constante dos moradores de um predio devem ser prohibidas em absoluto. 

Artigo 48. - Todos os compartimentos deverão ter, sempre que fôr possivel, aberturas para o exterior, dando para a rua, jardins ou pateos interiores, de modo a receberem luz directa e diffusa, não devendo ser admissivel luz reflectida sinão excepcionalmente e em aposentos não destinados á permanencia continua dos habitantes ou a dormitorios. 

Artigo 49. - Deverão ser afastados dos dormitorios os compartimentos destinados á installação das cozinhas12.


 

A passagem do Império para a República foi vista por muitos como um elemento crucial para a mudança nas legislações sobre as habitações. Lemos identifica que. a partir de 1890. a legislação interferiu no planejamento de novas residências e no uso, ou habitabilidade, das velhas construções do Império13. Para ele:


 

Durante todo o nosso tempo de sujeição a Portugal e mesmo na época do Império, a legislação voltada ao controle das edificações urbanas jamais teve a intenção de intervir nas condições de planejamento interno das residências. Era como se houvesse o máximo respeito às decisões pessoais ou ao direito de propriedade - cada um morasse como quisesse ou pudesse14.


 

Entretanto, constata-se que a preocupação com a insalubridade das construções urbanas e das cidades não foi exclusivamente pensada após a proclamação da República e o Código Sanitário de 1894, uma vez que o Código de Posturas já propunha algumas medidas abordadas acima.15 Estas regras ofereceram embasamento para alguns historiadores afirmarem que a política sanitária que normatizava as habitações começou nas últimas décadas do Império, com os salubristas da Corte e não apenas após 188916. Apesar de criticar este marco, Campos destaca que havia uma grande diferença entre Império e República na questão administrativa, uma vez que o primeiro dependia das decisões de um governo central e não possuía recursos financeiros o suficiente para fiscalizar as providências emanadas dos Códigos de Posturas17.

O papel central que a salubridade adquiria no período se dava pelos efeitos da falta de saneamento, que ocasionava mortes na cidade desde o século XIX, pela doença classificada pelos médicos da cidade como “febres paulistas”. A situação precária do saneamento agia diretamente no aumento das epidemias, em especial daquelas cuja contaminação se dava pelos sistemas de água e esgoto. É possível ter uma dimensão do grau de propagação dessas epidemias sobre as cidades de São Paulo, por meio do relatório do Secretário do Interior, Vicente de Carvalho, datado de 7 de abril de 1892. Enviado ao Vice-Presidente do Estado de São Paulo, o relatório dizia que:


 

(...) mesmo em circunstâncias ordinárias, no gozo do clima tradicionalmente bom com que a natureza favorecia a generalidade do território paulista, a higiene devia preocupar seriamente a atenção dos poderes públicos. Era um dever de previdência opor todas as resistências da higiene à invasão da imundície humana. Que acompanha a acumulação progressiva das populações, que vinga mesmo contra as melhores condições naturais. Desgraçadamente, não cabe já à nossa geração, o simples cumprimento dessa tarefa. É tarde para prevenir. A peste penetrou pelas portas escancaradas que o desleixo lhe facultou. Vimos encontrá-la vencendo na conquista do nosso território para a desolação e para a morte. Não nos criemos ilusões inúteis e perigosas. Não fechemos os olhos diante da evidência. A febre amarela transpôs a barreira da Serra do Mar, que parecia opôr-se-lhe, e revela-se domiciliada, senhora do terreno, no opulento Oeste do Estado. Acredito que um enérgico esforço nesse sentido não será desaproveitado. A eliminação dos focos de infecção, pelo saneamento, e o exercício constante de uma rigorosa polícia sanitária, defender-nos-ão sem dúvida das invasões da peste18.


 

Telarolli aborda a necessidade da compreensão de elementos da história política, econômica e demográfica, no que tange ao período formador dos serviços sanitários a partir da proclamação da República e da relação com a saúde e outros aspectos da vida social. Segundo o próprio autor, este foi um


 

período que recebeu pouca atenção dos especialistas no passado, atualmente já se contam às dezenas os estudos que tratam da formação dos serviços sanitários no estado de São Paulo na Primeira República. Iniciando-se com a proclamação e estendendo-se até os acontecimentos de 1930, esse é um período fundamental para explicar o modelo tecnológico e assistencial adotado para as práticas sanitárias, a partir do momento em que a descentralização administrativa do regime republicano possibilitou a elaboração de incipientes políticas de saúde19.


 

As doenças que se espalhavam afetavam a máquina administrativa, o setor cafeeiro e o cotidiano das cidades, não poupando, como visto, a capital. Apesar de o relatório ter apontado a febre amarela, havia outras doenças que causavam a morte de diversas parcelas da população, entre elas: a febre tifoide, a difteria, a tuberculose, a varíola e a peste bubônica. Adolpho Lutz, chefe do Instituto Bacteriológico, advertiu que a imprensa deveria informar a população e a municipalidade deveria fornecer subsídios para a prevenção desta. Para o sanitarista, a principal questão que envolvia esta doença era a higiene:


 

Pelos jornais diários devemos advertir ao público de não usar senão água filtrada... Entre nós não se pode negar que temos uma epidemia. Prevenir a população seria o primeiro passo. Em segundo lugar, devemos influir sobre as autoridades, para colocar filtros em todas as casas. Para não embaraçar, neste caso, as classes mais pobres, o governo devia encomendar uma quantidade grande de filtros e vendê-los a preço de custo. Seria também de grande importância mandar examinar todas as fontes da Cantareira, se contêm bacilos de tifo, e não deviam ser usadas aquelas em que se encontrassem os mesmos. Devia-se nomear uma comissão de médicos da sociedade, encarregando-os da instrução do público, como também de fazer as propostas necessárias às autoridades competentes20.


 

Os profissionais de saúde do período procuravam saídas para conter esses problemas que afetavam, sobretudo, as populações mais pobres, suas soluções ora seguiam as concepções miasmáticas e, ora, as bacteriológicas, uma vez que este era um momento de transição para o conhecimento médico21. Os autores Paulo César Xavier Pereira e Maria Ruth Sampaio chamam atenção para o fato de que os relatórios produzidos pelas autoridades em fins do XIX apontavam para uma situação habitacional calamitosa, destacando a precariedade dos cortiços infectos e insalubres situados nos bairros centrais da cidade, que geravam uma preocupação generalizada, de que neste local se desenvolvesse uma possível epidemia que afetasse toda a população22.

Portanto, é possível perceber por meio dos discursos de médicos do período, que no âmbito da saúde pública, os indivíduos foram tratados de formas diversas, definindo os menos abastados como a categoria que representava perigo. Neste contexto, a higiene foi utilizada como argumento para limpar a cidade da pobreza, pois constata-se que “as práticas das desinfecções eram intervenções destinadas aos pobres e aos trabalhadores; as demais classes sociais gozavam de privilégios, quer em relação à saúde quer em relação ao tratamento da doença”23.

A respeito das habitações na área central, observa-se que o município realizou obras tentando “modernizar” esta região, porém, não se pode deixar de frisar o papel desempenhado, intencionalmente, pela iniciativa privada. A relação entre o setor público e privado foi uma faceta importante da modernização de São Paulo, levando, inclusive, a administração pública a oferecer incentivos para que o setor privado24 se dispusesse a colaborar na questão do higienismo, recebendo como contrapartida, a permissão para que atuasse conforme seus interesses no que tange ao setor imobiliário, segregando as pessoas, e deslocando as que viviam nos cortiços das áreas centrais para áreas periféricas, diante do “perigo” que representavam à situação sanitária. O crescimento da cidade se deu em função de interesses dos empresários imobiliários do período, que usaram a terra como reserva de riqueza e realizaram uma expansão maior que a necessária para abrigar a população da capital.  Tal relação entre a iniciativa pública e privada pode ser identificada no surgimento das redes de abastecimento. Brito aborda tal associação com ressalvas:


 

(...) ao assumir o papel de dotar a cidade de certas melhorias materiais, a iniciativa privada o fez apenas parcialmente, seja pelas limitações de seus interesses em investir especificamente nessa atividade, seja em virtude de obstáculos referentes às condições técnicas e financeiras reinantes naquele momento, sendo que, com a República, a maior parte dessas atividades passou para as mãos do Estado ou sucumbiu ao capital internacional25.


 

A falta de habitação adequada para as classes menos abastadas se mostrava no aumento de cortiços e habitações insalubres, ocupadas agora também pela população do nordeste do país, que chegava a São Paulo fugindo da seca e em busca de melhores condições de vida. Dentro do campo político, a reforma de 1925 – Reforma Paula Souza – trouxe uma nova concepção de políticas de saúde pública, em que o cerne seria a educação sanitária do indivíduo. Antes disso, haviam inspeções com caráter de policiamento dentro das habitações, executadas por inspetores e guardas sanitários.

Ao tratar a respeito das condições insalubres das edificações da camada mais pobres da população, Marques relata que


 

Um dos principais definidores da precariedade diz respeito à localização do quarto, se no primeiro andar ou no porão. Na verdade, o primeiro andar se situa usualmente a meio andar acima da rua, e o porão se encontra semienterrado. Essa estrutura construtiva foi introduzida pelo Código Sanitário de 1894, onde se previa um porão não habitado semienterrado que tinha por objetivo distanciar o piso das edificações do solo, impedindo a subida da umidade por capilaridade. Por essa razão, embora os pés direitos dos andares superiores sejam muito elevados (uma característica das construções da época), os dos porões são muito baixos, sendo necessário se abaixar para passar sob as vigas. Os porões usualmente têm apenas uma entrada em uma das extremidades, a partir das quais se acessa um corredor sem iluminação ou ventilação natural e grande comprimento. A maior parte dos quartos desse andar não tem janelas e, por se situar parcialmente enterrado, é muito úmido, escuro e totalmente sem ventilação. Os mais variados vetores de doenças proliferam e as ratazanas são visíveis durante o dia. As condições de densidade e salubridade nesses casos são mais do que precárias26.


 

Tais proposições nos demonstram a relação direta entre habitação e salubridade, que como foi abordado ao longo do artigo, sempre foi permeada por tensões, desde a imagem de Londres relatada por Engels, até a cidade de São Paulo na virada do XIX para o XX, indicando que cidade cria demanda por Códigos de Obras e de Posturas de modo a regulamentar o que seria uma “boa morada”, isto é, as condições mínimas para tornar-se um espaço habitável e saudável. A análise da bibliografia nos permite compreender a importância que a questão da saúde pública em São Paulo ocupava neste contexto, em que inúmeras doenças se proliferavam. Percebe-se que, dentro da profícua produção historiográfica sobre a cidade, os estudos sobre a questão do sanitarismo enquanto elemento da urbanização paulista são recorrentes e indispensáveis. Assim, nos é possível pensar na relação em que, se os problemas sobre a saúde pública em São Paulo são em si uma história sem fim, os estudos voltados a entender esse contexto também o são.

1 Doutorando no Programa de Estudos Pós-graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, bolsista CAPES.

2 Doutoranda no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, bolsista Fapesp Processo n° 2017/17947-1.

3 No ensaio “A cidade segundo o pensamento europeu - de Voltaire a Spengler” o historiador americano Carl Schorske apresenta uma divisão das cidades segundo três conceitos: a cidade como virtude; a cidade como vício; e a cidade além do bem e do mal. O autor demonstra como cada uma destas definições está vinculada a um determinado contexto histórico, apesar destas definições também conviverem simultaneamente. A filosofia iluminista percebe a cidade como uma virtude uma vez que só nela é possível um progresso social e industrial civilizado, já o século XIX identifica os aspectos sombrios após os impactos da industrialização, e a inauguração da “pobreza” enquanto uma categoria até então não existente, portanto, para estes autores a cidade representaria um vício. Por fim, a terceira proposta percebeu um esvaziamento nas noções de vício e virtude, e compreende a cidade como um campo para uma multiplicidade de sentimentos. SCHORSKE, Carl. A idéia de cidade no pensamento europeu. In: Pensando com a história. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. pp. 53-72.

4 ENGELS, Friedrich. As grandes cidades. IN: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2007. P. 67.

5 ENGELS, Friedrich. As grandes cidades. IN: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2007. P.72

6 Ibid., 73.

7 RIBEIRO, Maria Alice Rosa. História sem fim: inventário da saúde pública. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1993, p. 20.

8 Andrade mostra que uma comissão médica francesa enviada à Andaluzia para mapear a epidemia ali ocorrida propôs que "A arte de conservar os homens é um ramo essencial da arte de os governar", logo por meio desta passagem verifica-se o caráter político que estava inserido nas ações médicas do período, ocorridas não apenas na Europa, mas também nos outros continentes ao longo dos séculos XVIII e XIX. ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro. "Putrid Miasmata": higienismo e engenharia sanitária no século XIX. higienismo e engenharia sanitária no século XIX. Cadernos de arquitetura, Bauru - SP, v. 2, p. 28-39, 2000, p. 28.

9 Ibid., p.30.

10 Fundo: Intendências Municipais. Grupo: Polícia e Higiene. Acervo Arquivo Histórico Municipal.

11BRASIL. Decreto n° 233 - Estabelece o Código Sanitário, de 02 de março de 1894.

12 Idem.

13Lemos apesar de indicar que a legislação não interferia no espaço interno das casas relata que as plantas eram extremamente semelhantes, não havendo muita distinção na forma de morar entre ricos e pobres, variando apenas a quantidade de cômodos. Isto se dava em decorrência das poucas técnicas construtivas disponíveis no período e as edificações geminadas. LEMOS, Carlos. A república ensina a morar (melhor). São Paulo: Hucitec, 1999, p. 13-14.

14Ibid., p. 13.

15 Ao longo do século XIX ganharam força os argumentos que atribuíam as condições do meio as causas das doenças. A teoria mesológica entendia que a topografia sanitária de uma cidade explicaria as causas que propagavam as doenças. ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro. "Putrid Miasmata": higienismo e engenharia sanitária no século XIX. Cit, p. 28.

16 CAMPOS, Eudes. Casas e vilas operárias paulistanas. Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (19): jul/ago. 2008.

17 Algo que merece ser destacado é o fato que a partir de maio de 1893 passou se a exigir a aprovação das plantas das novas construções. BRASIL. LEI Nº 38, de 24 de maio de 1893.

18 TELAROLLI Jr., Rodolpho: 'Immigration and epidemics in the State of São Paulo'. História, Ciências,Saúde —Manguinhos, III (2):265-283 Jul.-Oct. 1996, p. 139.

19 Ibid, p. 265.

20 TEIXEIRA, Luiz Antonio. As febres paulistas na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo: uma controvérsia entre porta-vozes de diferentes saberes. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, n.suplemento, p. 41-66, 2004, p. 17.

21 RIBEIRO, Maria Alice Rosa. Op. Cit, p. 32.

22 SAMPAIO, M. R. A. ; PEREIRA, Paulo Cesar Xavier. Habitação em São Paulo. USP. Estudos Avançados 48, São Paulo, v. 17, n. 48, p. 167-183, 2003, p. 167.

23 RIBEIRO, Maria Alice Rosa. Op. cit, 1993, p. 32.

24 Ao abordar a atuação da iniciativa pública e da iniciativa privada em São Paulo do século XIX, deve-se levar em consideração que ambas estavam intimamente relacionadas. A este respeito, Monica Silveira Brito relata: “A oligarquia paulista, que concentrava, em mãos de seus indivíduos, a propriedade da terra, o poder econômico e político, adotou uma postura empresarial moderna, isto é, reuniu seus capitais em sociedades anônimas, que procuraram abranger todas as frentes envolvidas nos diferentes circuitos da produção, incluindo um sistema bancário que, entre outras vantagens, alargou os instrumentos de circulação à sua disposição, o que reverteu em benefícios à sua expansão econômica. Essa articulação redundou num aumento de seu poder político, de seus capitais, das terras sob seu domínio, no controle sobre a mão de obra e o crédito, sobre aquelas atividades vinculadas à produção, transporte, exportação, importação de mercadorias, assim como as primeiras indústrias de maior porte. Desse modo, o urbano ia adquirindo cada vez mais importância para a viabilização de suas políticas e ações, elaboradas e executadas com vistas a objetivos pré-estabelecidos, isto é, seu projeto”. BRITO, Mônica Silveira. A participação da iniciativa privada na produção do espaço urbano: São Paulo, 1890- 1911. 2000. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000, p. 135.

25 BRITO, Mônica Silveira. Ibid., p. 142.

26 MARQUES, Eduardo C. L. Redes sociais, segregação e pobreza em São Paulo. Tese de livre docência apresentada a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.