Dominação de Classe e Desenvolvimento Industrial em Inglaterra: desencontros entre a História Econômica e a História Social na Revolução Industrial

 

Daniel Schneider Bastos (PPGH-UFF)1

 

A hipótese que guia esse artigo é a de que parte influente da história social britânica, sobretudo a que se mostrou mais pesadamente seduzida por uma espécie de determinismo linguístico a partir da década de 1970, se tornou incapaz de conduzir o debate sobre a dominação de classe na Revolução Industrial inglesa, em relação às questões pertinentes ao tema que haviam sido levantadas em trabalhos precedentes do campo. Três proposições principais são aqui defendidas: 1) o abandono dos modelos teóricos macro-históricos, que orientaram os trabalhos pioneiros da história social britânica nas décadas de 1940 a 1960, é causa primordial da inabilidade de trabalhos posteriores de abordarem a pauta da dominação de classe; 2) as questões levantadas pelos revisionistas, como modo de apontar lacunas fatais nos estudos conduzidos até então dentro da história social, já eram vislumbradas em estudos anteriores e não eram incompatíveis com os modelos macro-históricos; 3) a violenta rejeição aos modelos macro implicou em uma perda da ideia de totalidade no devir histórico, sem a qual não pode haver harmonia entre a acepção do tempo histórico da história econômica e da história social.

A história social britânica: décadas de 1940 a 1960

Não é possível compreender a importância da emergência da tradição da história social no Reino Unido, sem entender a profunda influência do marxismo sobre seus trabalhos, introduzida sobretudo pela obra do Grupo de Historiadores do Partido Comunista. A partir do emprego de modelos históricos marxistas, foi possível harmonizar, dentro da jovem história social, o tempo histórico econômico e o não-econômico. Ao situar a centralidade da narrativa histórica nas relações de produção e na luta de classes nelas embrenhadas, se assumiu o compromisso de que as mudanças não-econômicas deveriam ser explicadas em interação com os elementos estruturais econômicos. Em outras palavras, totalidade, o entendimento da progressão histórica enquanto uma multiplicidade de fatores irredutível a qualquer forma de determinismo simplista e unidimensional, mas que possuem entre si o denominador comum dos modos de produção atuando como seus condicionantes em última instância.

Em seu diálogo com a economia, a história social britânica também se beneficiou da influência de Karl Polanyi, fundamental para que essa aproximação pudesse ser conduzida por vias que escapassem aos economicismos vulgares. Sua ideia de "desenraizamento econômico" enquanto característica definidora da emergência de nossa era de mercado, permite ao historiador realizar o exercício de generalização necessário para identificar os paradigmas pelos quais a sociedade burguesa se diferencia das demais sociedades2.

Sentimos a influência de Polanyi principalmente através do trabalho de Thompson, em seu esforço para reconstituir, e contextualizar, os movimentos dos trabalhadores nos séculos XVIII e XIX enquanto formas de se resistir à degeneração de sua "economia moral", oposta aos princípios economicistas que se tornam hegemônicos a partir da Revolução Industrial3. É apenas pela possibilidade de se recorrer a um plano abstrato, no qual podemos contrapor formas burguesas com formas não-burguesas, que podemos conciliar, satisfatoriamente, o reconhecimento das continuidades do tempo histórico com a identificação de momentos de ruptura, de mudança de paradigma civilizacional4. Podemos assim fazer justiça à complexidade do "longo século XIX", caracterizado pela emergência do capitalismo industrial contemporâneo, que, simultaneamente, introduz brutais alterações no tecido social, enquanto guarda relação simbiótica com estruturas resilientes do Antigo Regime.

Justamente essa particularidade da Revolução Industrial, situada historicamente como divisor de água entre paradigmas, motivou o mais famoso debate da história social em seu "período clássico", pré-1968. As desavenças entre Thompson e Anderson, que assumiram tom demasiadamente hostil em meados da década de 1960, tiveram como pivô o desafio de caracterizar a dominação de classe na Inglaterra em processo de industrialização. O debate assumiu grande repercussão e é desnecessário pormenorizá-lo aqui. Anderson5 enxergava na burguesia inglesa uma classe imatura, por conta da precocidade com a qual a Ilha experimentou sua revolução no século XVII. Contemplada com um arranjo institucional favorável aos seus negócios mais cedo do que as burguesias continentais, a burguesia inglesa se acomodou em sua posição culturalmente submissa, bajulando o halo aristocrático e rejeitando posturas revolucionárias nos séculos XVIII e XIX. Incapaz de assumir uma identidade de classe concisa e uma visão de mundo totalizante, isto é, uma ideologia de classe autônoma, não estavam aptos para desenvolver programas políticos próprios, independentes da sujeição à nobreza. O resultado foi uma dialética imperfeita, no qual uma burguesia acovardada e conservadora gerou, como reflexo, um proletariado igualmente arraigado ao imaginário político do passado pré-industrial, avesso às influências advindas do continente.

Thompson6, em contrapartida, declarou que a posição de Anderson só se justificava por um idealismo anti-histórico althusseriano. A força da burguesia inglesa, a extensão da penetração de sua visão de mundo nos dispositivos institucionais na Ilha, era comprovada, e não desmentida, por meio de sua postura reformista. Apenas um formalismo ingênuo não iria detectar que, por baixo da preservação das instituições de Antigo Regime, já havia sido estabelecida uma teia complexa de interesses capitalistas, reorientando essas estruturas de modo que favorecessem, ou ao menos não interferissem negativamente, nas atividades de acumulação de capital. Desse modo se caracterizava aquela que, ainda em momentos avançados do século XIX, era reconhecida como a sociedade mais burguesa da Europa. Corretamente, a burguesia britânica entendeu que colocar essa posição em risco por meio da instigação de radicalismos populares, como ocorrera na França, era um risco desnecessário. Contudo, nos momentos em que a pauta reformista burguesa exigiu se articular com a pressão popular, como foi o caso da campanha pela extensão do sufrágio que resultou na Reforma Eleitoral de 18327, ela assumiu tons radicais mais afinados com as classes trabalhadoras.

Ambos os autores reivindicaram o conceito gramsciano de "hegemonia"8 para justificar suas posições sobre o teor da dominação de classe durante a Revolução Industrial. A superioridade da explicação de Thompson passa pelo trabalho empírico do autor, que permite enxergar a natureza de classe das instituições inglesas para além dos contornos formalistas. Entretanto, Thompson não se aprofunda no desenvolvimento empírico dos intelectuais orgânicos que articulam a dominação de classe durante a Revolução Industrial. Enquanto que, para o século XVIII, desenvolveu de maneira magnífica o modelo de teatro e contra-teatro para descrever a relação dialética guardada entre gentry e plebe, para o século XIX, seu foco se inclina mais exclusivamente para o proletariado e os intelectuais que se associam com a cultura radical popular, com menos destaque para a intelectualidade comprometida com o projeto burguês9. Esse era um ponto essencial a ser levado adiante pelos historiadores que estivessem dispostos a aprofundar os estudos sobre a dominação na Inglaterra.

Podemos observar, a partir do debate, que questões preciosas para os críticos dessa história social já integravam as discussões travadas no seio da historiografia marxista britânica. A importância da subjetividade é amplamente abordada por Thompson10 em sua reconstituição da cultura popular, instigando ricas reflexões sobre cultura e materialismo. Encontramos também o reconhecimento da multiplicidade de formas característica da Revolução Industrial, na qual práticas econômicas, dispositivos institucionais e estruturas mentais, são marcadas pela interseção de elementos pré-industriais com inovações próprias da nova realidade de industrialização. A valorização da dimensão cultural, bem como o entendimento de que modelos etapistas simplórios não fazem jus à complexidade do desenvolvimento capitalista, eram virtudes que a história social havia aprendido através da obra dos grandes marxistas do Entre-guerras, que dedicaram grande esforço intelectual para se distanciar dos modelos vulgares e simplificados que viriam a compor o "marxismo stalinista"11.

Por mais que no coração da polêmica houvesse a acusação de que Anderson havia abandonado o trabalho empírico de historiador, se apegando ao marxismo anti-historicista de Althusser, Thompson jamais deixou de reconhecer a importância dos modelos abstratos enquanto orientadores da pesquisa histórica. Conforme o autor, a relação entre empiria e modelo deve se dar dialeticamente: os modelos organizam em macro-narrativas e categorias analíticas o conhecimento histórico, possibilitando ao historiador formular as perguntas que devem ser sanadas pela pesquisa empírica. Essa, ao revelar pelas lentes da realidade as contradições inseparáveis da experiência humana, fricciona os modelos e os obriga a serem repensados, para que possam se aprimorar e abarcar o novo conhecimento. Caso isso não seja possível, é porque o modelo empregado se tornou ultrapassado, devendo ser abandonado em prol de um novo arcabouço teórico-metodológico mais afinado com os avanços da historiografia12.

O acesso a um plano abstrato possibilitado pelo emprego dos modelos marxistas, no qual se atinge o grau de generalização e esquematização necessários para uma imagem totalizante do fenômeno histórico, possibilitaram à história social realizar duas grandes perguntas no que diz respeito à Revolução Industrial: 1) é possível entendê-la enquanto um projeto de dominação?; 2) em caso positivo, que classe ou grupo de classes conduz esse projeto?

A história social e o determinismo linguístico

Um segmento influente da história social britânica, a partir da década de 1970, inicia uma guinada rumo ao que se tornaria um verdadeiro determinismo linguístico, tendo a análise de discurso como abordagem privilegiada. Ainda que, em um primeiro momento, encontremos trabalhos preocupados em conciliar essa nova perspectiva com a herança historiográfica marxista, essa tendência se encaminhou para uma ruptura radical com os paradigmas da história social praticada até a década de 1960. Podemos apontar alguns motivos para essa guinada.

Primeiramente, o paradigma do pós-68 entendia que os modelos macro-históricos sufocavam, através de seus engessamentos e simplificações, uma série de conceitos valiosos para uma nova geração das ciências sociais, que evocam as ideias de subjetividade e multiplicidade. Claramente, o desprestígio recaiu mais pesadamente sobre os modelos marxistas, sobretudo após o colapso soviético. Em segundo lugar, uma tendência na historiografia de estreitar os recortes espaço-temporais que delimitam o objeto da pesquisa histórica, possibilitou um grau de reconstituição episódico impressionante. A inclinação por se priorizar a história vista a partir do microscópico, através do qual as contradições inevitáveis que geram atritos dentro dos modelos se tornam mais salientadas, gerou certo deslumbramento com virtuosismos empíricos, que supostamente comprovariam que as novas empirias haviam superado os modelos ultrapassados, incapazes de enquadrar apropriadamente a pluralidade da realidade social. Já apresentei, em parágrafos anteriores, minhas considerações sobre o porque de essas opiniões não se justificarem.

Não se pode esquecer, ainda, a dimensão da realidade do ofício do historiador, no sentido da própria condição de trabalho. A expansão das universidades e o consequente aumento do número de pós-graduandos, sobretudo quando esse crescimento não é proporcionalmente acompanhado por oferta de bolsas de pesquisa e oportunidades de trabalho, elevou a competição e a pressão por produtividade dentro do ambiente acadêmico. Metodologias mais extensivas, que demandam trabalhos conjuntos ou resultados de longo prazo, são deixadas de lado em prol de pesquisas individualizadas e abordagens que gerem conteúdo mais rapidamente aproveitável. A ênfase em fontes discursivas e a micro-história se mostram, com isso, mais compatíveis com a nova realidade de trabalho acadêmica.

Os primeiros sinais do linguistic turn aparecem mais fortemente na história social britânica com Jones13 e seus estudos sobre o discurso radical na Revolução Industrial. Antes disso, a linguagem enquanto objeto de análise já se fazia presente, como se observa no trabalho de Briggs14, mas em uma abordagem que complementava as bases da história social desenvolvida até então. Em Jones e, mais explicitamente, com Joyce, a análise de discurso é empregada de modo a subverter essas mesmas bases. Segundo o auto-proclamado "determinista linguístico" Joyce15, a história social havia por demasiado tempo aceitado acriticamente as proposições de Thompson, que representavam o enraizamento do paradigma marxista dentro do campo. No modelo thompsoniano, as relações de produção ocupam o eixo, ou a base, na qual está fundamento o entendimento do devir histórico. Embrenhando-se nesse centro gravitacional, de atração irresistível, os sujeitos se envolvem na luta de classes, a partir da qual, através de suas experiências, reconhecem semelhantes e antagonistas e significam o mundo, produzindo e reproduzindo então suas culturas, identidades, linguagens, e demais instâncias super-estruturais16.

Para Joyce17, o que se tem nessa disposição é a pretensão megalomaníaca de acreditar que, através do estudo da experiência dos sujeitos, a historiografia marxista poderia atingir um "real" histórico. Sua proposta é inverter a equação: a cultura (mais precisamente, a linguagem), não deveria aparecer enquanto produto, mas ponto de partida. A experiência dos sujeitos, compreendida aqui nos termos de processo semiótico, só pode se dar dentro do arcabouço linguístico dos mesmos. O social não pode ser experimentado por aquilo que não pode ser significado pelos grupos e indivíduos. Uma vez que esse processo de assimilar o social, dotando-o de significado, é mediado pela linguagem, e que essa é herdada pelos indivíduos a partir do que lhes é repassado pela geração anterior, abre-se caminho para uma perspectiva conservadora da história, na qual os discursos sempre restringem as ações aos limites do imaginário do passado. Thompson18 criticou, em seus últimos escritos, o modo como havia se difundido uma acepção da linguagem enquanto camisa de força, coagindo indivíduos e classes que vivenciavam a Revolução Industrial a se expressarem sempre pelos termos da Velha Inglaterra.

O linguistic turn, em sua forma mais extremada do determinismo linguístico, colocou a perder a conexão da história social com a história econômica.Ao rejeitar o papel de centralidade conferido pelo marxismo às relações de produção, abriu mão do compromisso que essa posição havia assumido com a totalidade. Se observa, com isso, uma estranha desarmonia entre o tempo histórico econômico e não-econômico, no qual as estruturas econômicas parecem caminhar sempre um passo à frente dos agentes históricos, com suas mentalidades arraigadas no conservadorismo. Os mesmos agentes históricos que, supostamente, deveriam conduzir o desenvolvimento dessas estruturas.

Em relação ao tempo histórico não-econômico, a abordagem culturalista impede a abstração do desenraizamento econômico apresentada por Polanyi. Na sua ausência, se faz a opção pelo reconhecimento do discurso como único objeto real do historiador, o que dificulta a identificação de momentos de ruptura histórica. A economia desenraizada, enquanto especificidade do capitalismo contemporâneo, é desmerecida por meio de uma literalidade ingênua, que supõe que, ao invés de uma evidente abstração com fins analíticos, o conceito busca induzir de fato à imagem de uma economia plenamente apartada dos preceitos morais. Seria como conceber que, sempre que interagissem dentro da esfera das trocas econômicas, os sujeitos adentrassem um plano em separado, flutuando dentro de um vácuo cultural.

Obviamente, tal coisa como uma economia desprovida de cultura não pode existir. Polanyi jamais buscou explicar a sociedade de mercado contemporânea enquanto uma sociedade na qual, dentro das relações econômicas, inexistem imperativos morais e culturais. A economia desenraizada só pode ser entendida enquanto método comparativo, como forma de demonstrar, por via do contraste, como, na economia burguesa, esse arcabouço cultural guarda uma relação com as práticas econômicas radicalmente distinta do que ocorre em sociedades não-capitalistas. Ao se negar esse princípio, perde-se qualquer possibilidade de capturar o sentido da ruptura histórica introduzida pela Revolução Industrial19. Fatalmente, a especificidade de nossa contemporaneidade capitalista desaparece da vista do historiador, e o século XIX tende a se tornar uma longa continuidade das mentalidades do Antigo Regime.

Quanto ao tempo histórico econômico, ao abrir mão dos modelos que possibilitavam as aspirações totalizantes, essa história social se distanciou de análises econômicas sérias. Reconhecem que a industrialização constituía uma novidade estrutural, que se tratava de um período de transformação tecnológica e institucional sem precedente, mas não possuem os métodos para incorporar essas mudanças em sua narrativa, de um modo que o processo econômico seja explicado em interação com os fenômenos não-econômicos. Essa realidade estrutural de industrialização é antes tomada como pressuposto, um cenário inanimado situado no plano de fundo, diante do qual os atores culturais desempenham suas ações, sem com ele interagir propriamente. As estruturas deixam de ser, desse modo, algo que se constrói a partir da atuação desses mesmos agente, ao mesmo tempo em que condiciona essa atuaçao.

Nessas condições, o debate sobre a dominação de classe se torna esvaziado de sentido. Temos respostas onde não podemos mais fazer grandes perguntas. Através desses trabalhos, somos presenteados com informações relevantes sobre o modo como o discurso radical, tanto entre populares quanto entre a classe média liberal, foi profundamente influenciado, ao longo de toda a Revolução Industrial, pela tradição constitucionalista inglesa e a moral puritana. Mas não possuímos mais os recursos para incorporar essas contribuições dentro de um modelo, que nos faça entender como esse fato ajuda a explicar o exercício de dominação. Não há sequer uma definição apropriada do que se deva entender por dominação, muito menos conceitos para esquematizar sua construção e manutenção. As duas grandes perguntas referentes ao tema, que nos foram legadas pela história social dos anos 1960, desaparecem do horizonte do historiador.

Uma vez que se cai na narrativa do longo continuísmo, na qual a persistência de determinado imaginário cultural é usada para justificar a rejeição à ideia de ruptura, desaparece o referencial a partir do qual paradigmas burgueses podem ser contrapostos aos não-burgueses. A dominação de classe á algo que segue existindo, mas não se pode depurá-la em seu conteúdo, envolver-se seriamente no debate sobre sua natureza, decifrar se essa se inclina para uma essência aristocrática ou burguesa. Levando em conta a tendência à inércia das mentalidades que se apossou de determinadas abordagens, somos induzidos a acreditar na primeira possibilidade, com a Revolução Industrial, e o século XIX, se transformando cada vez mais em uma repaginação de arcaísmos, e menos no alvorecer da contemporaneidade.

Breves considerações sobre o "capitalismo cavalheiresco"

Uma tentativa, dentro da história social, de avançar o debate sobre a dominação de classe, sem passar pelo determinismo linguístico, se deu pela proposição do conceito de "capitalismo cavalheiresco" por parte de Cain e Hopkins20, levantamento provocações instigantes. Os historiadores teriam centrado sua atenção no Lancashire industrializado, certamente o palco mais dramático da luta de classes durante a Revolução Industrial, mas perderam de vista que a indústria nunca havia se tornado a atividade econômica responsável pela maior fatia da acumulação de capital. Até a década de 1850, essa posição permaneceu ocupada pela agricultura, passando para os serviços (destacadamente as finanças) na segunda metade do século. Enquanto os industrialistas entraram em atrito político mais forte com o interesse agrícola, os grandes capitalistas do setor de serviços cultivavam um padrão mais próximo ao do ideal aristocrático. Isso permitia a esses homens, advindos do comércio, finanças, transportes e outras atividades, acessarem mais facilmente os centros de poder político da Metrópole, pois não enfrentavam a mesma resistência, por parte da elite fundiária, que a burguesia representante do sistema fabril.

Propondo impor uma virada de mesa radical na história social, a teoria do capitalismo cavalheiresco rapidamente foi criticado por diversos de seus argumentos, se mostrando insustentável em suas proposições originais. Exagerara o distanciamento político entre a Metrópole e o Lancashire, bem como entre os industrialistas e as demais elites econômicas. Também propôs um conceito excessivamente abrangente, que não permite enxergar descontinuidades políticas, ao homogeneizar todo um leque de interesses pelo rótulo de cavalheirescos, ignorando que muitas dessas expectativas eram partilhadas por grupos externos a essa categoria21.

Apesar de suas falhas, o conceito possui méritos inegáveis. Reforça, de maneira pertinente, a necessidade de se aproximar a história econômica e social da Ilha da história do Império. Também leva a refletir, mesmo quando se discordando da conclusão dos autores, sobre a definição de uma economia industrial, isso é, a partir de quais critérios se pode determinar que a indústria ocupa papel de centralidade em uma dada economia. Mais importante, oferece um modo de se pensar a influência do ethos aristocrático sobre o capitalismo inglês não como um arcaísmo residual, mas como estratégia econômica adaptada à realidade de negócios.

Mimetizar um estilo de vida aristocrático, dentro do qual a dedicação ao ócio representa sinal de distinção social, se mostra o comportamento mais racional em um setor no qual a acumulação depende menos da gestão de máquinas e matérias primas, e mais da articulação de contatos privilegiados e redes internacionais. Clubes e salões devem ser vistos tanto quanto espaço de lazer quanto de negócios, espaços onde acordos econômicos são firmados, podendo inclusive ser sacramentados pelo casamento entre familiares dos envolvidos. Se configurava, com isso, uma esfera de capitalismo familiar e de camaradagem, na qual prestígio social é determinante para validar as credenciais do indivíduo na praça comercial22.

Ainda assim, no que diz respeito ao problema da dominação de classe ,o capitalismo cavalheiresco incorre em algumas limitações semelhantes ao determinismo linguístico. Não apresenta uma definição clara sobre o que entende pela dominação, ou uma sistematização de seu exercício. Anos depois, Cain23, um dos idealizadores do conceito, veio a lamentar o fato de não ter empregado as categorias de hegemonia e bloco histórico de Gramsci para melhor desenvolver sua hipótese.

Conclusão

Nossa percepção da Revolução Industrial precisa se adequar às leituras historiográficas que, prudentemente, apontam para as marcas impressas nesse fenômeno pelas heranças da Velha Inglaterra. Mas isso não pode ser feito se abdicando de uma ideia de modernização capitalista, de ruptura de paradigma civilizacional que, inclusive na percepção daqueles que a vivenciaram no passado, introduziu mudanças radicais em todas as instâncias sociais, mesmo quando seus vocabulários as expressaram em significantes de cores conservadoras.

Superar a imposição do discurso enquanto camisa de força, que conduz a um estudo redundante das fontes, no qual as conclusões tecidas a partir delas nunca podem se desdobrar para além do que está contido no texto, passa, necessariamente, por restabelecer o contato da história social com a história econômica. Já se passaram três décadas desde de que, a partir da publicação dos trabalhos de Crafts24, a ortodoxia da história econômica se inclinou gradativamente para a concepção da Revolução Industrial enquanto um período de crescimento econômico mais lento e regionalizado, em relação ao que se imaginava anteriormente. Mas isso não se manifestou em uma rejeição do adjetivo "revolucionário" ao processo: os indicadores econômicos não deixam dúvidas de que há um antes e um depois da Revolução Industrial, no que diz respeito aos padrões de crescimento econômico25. As estruturas, e as rupturas por elas experimentadas, podem ser abordadas para além do discurso. A posição privilegiada do historiador está, justamente, em sua possibilidade de se apreciar determinado contexto histórico para além do que podia ser capitado pelos homens e mulheres que o experimentaram diretamente.

A reaproximação com a economia não deve ficar restrita aos dados seriais, mas retomar os modelos macro-históricos que impulsionaram a história social em suas décadas clássicas. Urge retomar o compromisso com a totalidade, pré-condição para que o tema da dominação, bem como as outras grandes questões de classe que fazem da história campo de disputa política permanente, reapareça devidamente no horizonte da historiografia. Permanece em aberto o papel desempenhado pela burguesia inglesa enquanto condutora da nova conjuntura social que emerge com a Revolução Industrial. Há espaço para muitos avanços nessa questão ao se explorar a atuação da intelectualidade orgânica dessa burguesia, em seu esforço de conquista de consenso em torno das diretrizes do laissez faire e do sistema fabril, preenchendo assim uma lacuna importante deixada pelo debate entre Anderson e Thompson.

Grande relevância deve ser dada ao que Davidson26 denominou como "burguesia não-capitalista", isso é, a categoria de profissionais da classe média não vinculada ao processo produtivo, e que, politicamente alinhada ao interesse burguês, costuma representar a força política mais atuante da burguesia, aparecendo como principal responsável por tecer sua consciência enquanto classe. Merece especial atenção a conjuntura do final da Revolução Industrial, nas décadas de 1830 e 1840, quando uma série de reformas institucionais foram consumadas, fazendo avançar a agenda industrialista na Ilha. Observar o modo como essas reformas são instituídas, quais os grupos responsáveis por sua idealização, e de que maneira se busca convencer a sociedade civil de que aquelas medidas representam o interesse geral, são caminho para decifrar o modos operandi dessa burguesia. Conforme nos afastamos de uma visão formalista das instituições de poder político e econômico, podemos apreciar o modo como a sociedade burguesa se estabelece por sob as aparências do Antigo Regime. As abstrações e arbítrios que compõe a caixa de ferramentas a ser usada nessa tarefa não devem ser motivo de embaraço. Retomar a perspectiva dialética do conhecimento historiográfico, composta pela articulação entre empiria e modelo, é um objetivo que se mostra necessário, para que a história volte às grandes indagações, sem as quais ela é reconstituição de fragmentos do passado, mas não bússola do presente.


 


 

1 Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense, Mestre e Bacharel em História pela mesma instituição.

2 POLANYI, K. O lugar das economias nas sociedades. In: LEVITT, k. P (org.). A subsistência do homem - e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

3 THOMPSON, E. P. A economia moral da multidão inglesa no século XVIII. In: Costumes em comum. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

4 CANGIANI, M. Karl Polanyi's Institutional Theory: Market Society and Its "Disembedded" Economy. Journal of Economics Issues, v. XLV, n. 1, mar. 2011, p. 177-197.

5 ANDERSON, P. Origins of the present crisis. New Left Review I, n. 23, p. 26-53, jan.-fev. 1964. ANDERSON, P. Socialism and Pseudo-Empiricism. New Left Review I, n. 35, p. 2-42, jan.-fev. 1966.

6 THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses. In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (org.). As peculiaridades dos ingleses – e outros artigos. Campinas: UNICAMP, 2001.

7 Em 1832, após ampla pressão política por parte dos trabalhadores e da classe média, o Parlamento aprova uma importante reforma eleitoral, contemplando com assentos parlamentares regiões industriais em expansão, até então sub-representadas, e extinguindo zonas eleitorais rurais que elegiam um número desproporcionalmente alto de representantes, em relação ao pequeno número de eleitores locais. Contudo, foram mantidos critérios censitários com base na propriedade para a concessão do direito ao voto, excluindo a grande maioria da população adulta masculina.

8 Uma introdução competente às categorias de Gramsci é encontrada na obra de seu maior exegeta brasileiro. Especificamente para os conceitos de intelectuais orgânicos e hegemonia, cf. COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 76-79.

9 Em relação ao teatro e contra-teatro encenado entre gentry e plebe no século XVIII, cf. THOMPSON, E. P. Patrícios e plebeus. In: Costumes em comum. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Para sua análise da cultura sobre a cultura popular radical no século XIX, cf. E. P. THOMPSON. The Making of the English working class. New York: Vintage Books, 1966.

10 THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (org.). As peculiaridades dos ingleses – e outros artigos. Campinas: UNICAMP, 2001.

11 Para uma excelente discussão sobre materialismo e cultura com base em contribuições de Gramsci e Luckács, cf. WILLIAMS, R. Base e superestrutura na teoria da cultura marxista. In: Cultura e Materialismo. São Paulo: Unesp, 2011. Para uma análise da importância de Luckács, Gramsci e Benjamin para superar visões mecanicistas da relação entre base e superestrutura, bem como da importância de Trótsky para conceber o desenvolvimento capitalista para além de um evolucionismo etapista raso, cf. DAVIDSON, N. How Revolutionary Were the Bourgeois Revolutions? Chicago: Haymarket, 2012, capítulo 14.

12 THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses. In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (org.). As peculiaridades dos ingleses – e outros artigos. Campinas: UNICAMP, 2001, p. 155-157.

13 JONES, G. S. Languages of Class: studies in english working class history, 1832-1982. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

14 BRIGSS, A. The Language of 'Class' in Early Nineteenth-Century England. In: BRIGGS, A; SAVILLE, J (org.). Essays in labour history. 2ªed. New York: Palgrave Macmillian, 1967.

15 JOYCE, P. Democratics Subjects: The self and the social in nineteenth-century England. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 5-13.

16 THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (org.). As peculiaridades dos ingleses – e outros artigos. Campinas: UNICAMP, 2001, p. 258-261.

17 JOYCE, P. Democratics Subjects: The self and the social in nineteenth-century England. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 5-13.

18 THOMPSON, E. P. Introdução: Costume e Cultura. In: Costumes em comum. Tradução: Rosaura Eichemberg. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 20.

19 CANGIANI, M. Karl Polanyi's Institutional Theory: Market Society and Its "Disembedded" Economy. Journal of Economics Issues, v. XLV, n. 1, mar. 2011, p. 177-197.

20 CAIN, P. J; HOPKINS, A. G. Gentlemanly Capitalism and British Expansion Overseas I. The Old Colonial System, 1688-1850. The Economic History Review, v. 39, n. 4, nov. 1986, p. 501-525.

21 PORTER, A. 'Gentlemanly capitalism' and empire: The British experience since 1750? The Journal of Imperial and Commonwealth History, v. 18, n. 3, 1990, p. 265-295.

22 CAIN, P. J; HOPKINS, A. G. Gentlemanly Capitalism and British Expansion Overseas I. The Old Colonial System, 1688-1850. The Economic History Review, v. 39, n. 4, nov. 1986, p. 501-525.

23 CAIN, P. J. 'Gentlemanly Capitalism' and 'Classical Theories of Economic Imperialism'. Annals of the Society for the History of Economic Thought, v. 44, 2003, p. 75-83.

24 CRAFTS, N. F. R. British Economic Growth during the Industrial Revolution. Oxford: Oxford University Press, 1985.

25 MOKYR, J. Editor's Introduction: The New Economic History and the Industrial Revolution. In: MOKYR, J (org.). The British Industrial Revolution: An Economic Perspective. 2ª ed. Boulder: Westview, 1999, p. 3.

26 DAVIDSON, N. How Revolutionary Were the Bourgeois Revolutions? Chicago: Haymarket, 2012.