Edições Paulinas, Livros Católicos e Concorrência Religiosa no Mercado Editorial Brasileiro

 

Carolina Bednarek Sobral (FFLCH – USP)1

 

Nas últimas décadas do século XX, a Igreja Católica brasileira se viu diante de uma aguda crise. Ao mesmo tempo em que muitos fiéis deixavam de frequentar as paróquias, muitos outros se convertiam às denominações protestantes pentecostais em expansão. Esses fenômenos não eram visíveis apenas nas ruas dos bairros periféricos ou nas avenidas centrais das grandes cidades, pois eles se davam também na cultura e nos meios de comunicação, em particular no mercado de livros. Ao mesmo tempo, entre os anos 1980 e 1990 o mundo editorial vive o sucesso dos livros de autoajuda e esoterismo new age, com uma religiosidade difusa que passava por cima das tradições e instituições. Essas expressões não podiam ser ignoradas pela Igreja, não só por sua relação direta com o catolicismo, como nos casos dos livros do padre Lauro Trevisan ou da mescla de tradições de Paulo Coelho, mas também por seu grande apelo comercial, que tirava espaço de outros gêneros nas prateleiras das livrarias. Pelo contrário, os responsáveis pela mediação editorial da Igreja Católica terão de enfrentar todas essas questões. O caso das Edições Paulinas é esclarecedor para entender esse momento. Suas publicações, sobretudo aquelas voltadas para os leigos, para o mercado mais amplo, evidenciam o caráter múltiplo do objeto livro: além da ambivalência clássica entre seus aspectos econômicos, de mercadorias, e culturais, de portadores de significados, há neles uma convivência simultânea de tradição e novidade.

 

Fundadas na Itália entre 1914 e 1915 com o intuito de desenvolver tipografias dedicadas à “boa imprensa”, isto é, à imprensa católica, as congregações das irmãs paulinas e dos padres e irmãos paulinos chegaram ao Brasil na década de 1930, com seus missionários estabelecendo-se em São Paulo no mesmo período em que iniciam sua empresa editorial em Nova York e Buenos Aires2. Na década de 30 já se inicia a versão brasileira da revista Família Cristã, originalmente italiana e posteriormente publicada em outros países3, voltada para assuntos de interesse geral na vida cotidiana dos leigos, linha editorial que a empresa nunca abandonaria. O estabelecimento de uma estrutura de edição e impressão foi bem aproveitado pelas autoridades eclesiásticas católicas, o que permitiu à editora expandir-se imprimindo livros, materiais e periódicos litúrgicos distribuídos nas igrejas como O Domingo. Na década de 1970, são realizados acordos com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, para a edição de duas coleções com seus Documentos e Estudos4. As parcerias com outras instituições católicas – de ordens religiosas a faculdades e arquidioceses –, além de aumentar o volume de publicações, contribuía também para ampliar o raio de distribuição, já que muitas delas, inclusive de outros estados, ao assinar os contratos se comprometiam a comprar porcentagens expressivas da tiragem e distribuí-las por conta própria. Essa crescente confiança depositada na editora pela hierarquia católica facilita, entre outras questões, a obtenção de autorizações eclesiásticas para as impressões. Ainda que continuem a ser exigidas mesmo após a reforma do Código de Direito Canônico de 1983, a partir da década de 1970 a maioria dos livros – com exceção de publicações mais regulamentadas, como as bíblias – não traz mais explícitos o Imprimatur e o Nihil Obstat, apenas a inscrição genérica “com aprovação eclesiástica”.

Em 1939 foi fundada em São Paulo a primeira livraria Paulinas5, que se transformaria em uma rede nacional ao longo do tempo, passando a vender também discos produzidos por gravadora própria, lançando sucessos da música religiosa como Padre Zezinho, cujos livros foram também best-sellers da editora a partir da década de 1970. O padre teve inclusive três coleções dedicadas apenas a seus livros: Compromisso, Sentir com os Jovens e Jovens Adultos, todas sobre comportamento, relacionamentos e sexualidade6. Um de seus títulos mais vendidos foi Esta Juventude Magnífica e seus Namoros Nem Sempre Maravilhosos..., que teve a 1ª edição em 1976 e a 22ª já em meados dos anos 1990. Zezinho chegou a ter uma coleção sobre sua direção a partir de 1973 (O Problema é... Amizade, Comunicação, Drogas, Namoro, Noivado), exercendo também o papel de editor, selecionando originais de outros autores e sugerindo formatos. O caso de Padre Zezinho é exemplar pois, além de gravar seus discos e editar seus livros, as Edições Paulinas divulgavam sua figura e obra em periódicos próprios7, para promover as vendas.

O fato das obras serem publicadas, vendidas e divulgadas por editoras, livrarias e periódicos oficialmente católicos aponta para o peso da mediação editorial, ou daquilo que Brigitte Ouvry-Vial chamou de gesto editorial, que representaria, em uma tradução livre, “a posição de editor mediador entre autor e leitor, assegurando a transmissão da obra a partir de uma leitura, de uma avaliação de seu valor intelectual e econômico”8, e, acrescentemos neste caso, a partir de uma avaliação de seu valor religioso.

A partir de meados da década de 1970, acompanhando a conjuntura, a editora divulga obras da teologia da libertação e produz materiais para uso nas comunidades eclesiais de base, muitos deles enquadrados como subversivos pelos agentes da repressão – além de outros livros, discos e periódicos, tal foi o caso das coleções Cadernos de Educação Popular e Cadernos de Base, compostas por pequenas brochuras sobre questões políticas, como a reforma partidária de 1979 e a Constituinte, e sociais, como organização sindical e racismo. Essas coleções não tiveram novos títulos a partir de 1990, e, até onde foi possível verificar, tampouco reimpressões. Dado o porte da editora e a diversidade de suas publicações, continuou havendo espaço para alguns livros próximos à linha da teologia da libertação – por exemplo, a edição Pastoral da Bíblia, com sua versão integral lançada em 1993 – mas esse espaço foi diminuindo e tornando-se cada vez mais restrito.

A expansão da editora, como empresa, é importante para entender os múltiplos tipos de obras por ela impressa. No entanto, a questão institucional, de sua relação direta com a Igreja, não pode ser desconsiderada. Temas como saúde e cidadania não deixam de ser pautados pela religião. Isso é explícito, por exemplo, na coleção Planejamento Familiar, cuja primeira edição remonta a 1983. Todos os seus livros divulgam apenas um método contraceptivo, conhecido como método Billings, segundo um dos títulos “controle da fertilidade sem drogas e sem dispositivos artificiais”. Então, na posição que a editora ocupa de mediadora entre vários mundos, é fundamental compreender, como no circuito de comunicação proposto por Robert Darnton9, a influência direta de atores aparentemente externos à cadeia do livro.

E, neste caso, um dos atores mais importantes é a própria instituição da Igreja Católica. Desde o início do papado de João Paulo II em 1978 a grande preocupação em relação ao Brasil havia sido com a politização à esquerda dos sacerdotes, que também passa pelo mercado editorial – e, como vimos, não apenas pelas célebres editoras Vozes e Duas Cidades10. Inúmeras iniciativas, como a notificação da Congregação para a Doutrina da Fé a Leonardo Boff em 1985 e a divisão da Arquidiocese de São Paulo em 1989, demonstravam a indisposição do papa com o chamado clero progressista. Considerando as funções editoriais quase oficiais que as Edições Paulinas exerciam na Igreja brasileira, compreende-se que tenha sido desmotivada a dar continuidade às publicações de caráter explicitamente político. Outro fator nada irrelevante é o próprio comportamento do mercado. Após a redemocratização, com a institucionalização da política em partidos e canais de participação mais abertos, a atuação pública dos religiosos católicos, ainda que continue por outras vias, sai do centro das atenções. Portanto, vende menos.

A maior parte do catálogo da Paulinas continuaria, como antes, sendo baseado em vidas de santos, novenas, documentos de autoria do papa e da CNBB, além das Bíblias e guias para leitura da Bíblia, que inclusive se multiplicam na década de 1980. Além do Catecismo da Igreja Católica, elaborado sob a direção de João Paulo II e do futuro papa e então cardeal Ratzinger, dos livros destinados aos leigos, aqueles sobre os santos e os sacramentos, em especial a eucaristia11, têm posição de destaque – são exatamente as questões que diferenciam o catolicismo do protestantismo. Há coleções voltadas para os religiosos, teólogos e especialistas, mas a maior parte dos livros é de fato destinada a leigos. É possível identificar um esforço em formar um catálogo popular, o que se vê não apenas nos títulos, mas nos próprios formatos, nas capas e naquela que é a mediação editorial por excelência, a edição de coleções.

É crescente no período, por exemplo, a quantidade de obras que dialoga com outras tendências editoriais contemporâneas, como a autoajuda. Como reverter a situação era impossível, percebe-se mais viável e produtivo tornar a cultura contemporânea mais católica, dotá-la de valores considerados positivos, do que simplesmente negá-la12. Essa adaptação às demandas e interesses do mundo contemporâneo não era novidade. Mesmo antes do Concílio Vaticano II ou da elaboração da “enculturação” de João Paulo II, as Edições Paulinas já buscavam publicar obras ao gosto popular. No começo da década de 1960, a coleção Primavera traz pequenos romances de capas cor-de-rosa ilustradas com jovens moças e casais sorridentes, com estética muito semelhante às revistas vendidas às mulheres do período, mas com valores e ensinamentos morais de cunho católico. O próprio fomento da carreira do religioso-cantor-celebridade Padre Zezinho desde a década de 1970 fazia parte dessa lógica. Portanto, se desde o início do século XX a ideia já estava presente nas tipografias paulinas, em suas últimas décadas ela se torna quase inevitável.

Nesse sentido, é possível ver a ampliação de diversas coleções das Edições Paulinas inseridas no discurso editorial em voga no período. A série Encontro, iniciada em meados dos anos 1970, tem inúmeras reedições ao longo da década de 1980. Tendo como principais autores Carlos Afonso Schmitt e Roque Schneider, a coleção trazia mensagens de bondade, humildade, amizade e autoestima mesclados, por vezes, a elementos sociais típicos da teologia da libertação, mas sem discursos políticos incisivos. Alguns de seus maiores sucessos, O Importante é Cativar(-se) (1ª edição 1979) e O Coração Vê mais Longe que os Olhos (1ª edição 1978), ambos de Carlos Afonso Schmitt, trazem como epígrafes de todos os capítulos citações de O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry. A coleção da mesma época De Coração a Coração, que conta com obras de praticamente os mesmos autores, também aborda a obra de Exupéry (O Pequeno Príncipe e sua Revolução Psicológica, de Edgardo Rodolfo Sosa), mas já traz o jargão da autoajuda (Um Grito de Luz: a Prática do Pensamento Positivo Através da Programação Mental Diária e Sua Vida em Alto Astral: Mentalizações Positivas que Animam, Elevam e Impulsionam Você na Vida Gerando Saúde e Prosperidade, ambos de Carlos Afonso Schmitt, além de Modificação do Comportamento e Auto-Realização: Descubra o Poder de sua Mente como Instrumento para Construir a sua Felicidade e a dos Outros, de Jorge Renato Johann).

Na mesma linha está a coleção Cidadãos do Reino, na qual cada volume é dedicado à vida de um santo “narrada para o homem de hoje”. Assim como a série Encontro, a edição conta com tipografia grande, parágrafos curtos e inúmeras perguntas ao leitor ao longo do texto. Essa disposição visual seria muito comum nos livros mais populares das Edições Paulinas, que tentavam alcançar públicos nem sempre familiarizados com a leitura.

Além de demonstrar a amplitude da rede formada por diversas mercadorias culturais e diversos meios de circulação e divulgação, isso demonstra uma estratégia editorial e religiosa constante da editora, de permanente diálogo com a contemporaneidade. A relativa abertura do catálogo leva a um crescimento no número de títulos e também do volume de tiragens. Em 1981, as Edições Paulinas já são a 4ª maior editora do Brasil e chegam a 2ª em 198713. Entre 1984 e 1985, a média das tiragens é ainda maior que a das primeiras colocadas Record, Brasiliense e Vozes, alcançando mais de 7 mil exemplares por título14.

Em 1994, as Edições Paulinas oficializam a divisão que já existia internamente entre as congregações masculinas e femininas. A partir de então, as irmãs comandariam as Paulinas, mais voltada à catequese e à divulgação popular, e os padres e irmãos a Paulus, dedicada à teologia, filosofia, psicologia e bíblias, sem excluir também obras de interesse geral. Na prática, os editoriais e as gráficas sempre foram separados, mas a marca comum EP – Edições Paulinas – apresentava as edições como algo unitário ao público. A mudança nas marcas ocorreu de forma quase simultânea em diversos países e as livrarias também sofreram alterações e as que já eram mantidas pela ala masculina da congregação (Rio de Janeiro, Caxias do Sul e São Paulo, na Praça da Sé) passaram a se chamar Paulus15.

A mudança, que deu um caráter mais independente às editoras, acompanhou inovações no catálogo. A saúde e o bem-estar individuais seriam temas cada vez mais discutidos, muitos dos livros aproximando-se da autoajuda. As coleções de psicologia se ampliam, como Psicologia e Personalidade, editada pelas Paulinas. A maioria de seus títulos são traduzidos do italiano, como Para Ser Feliz: Psicoterapia para Todos (1ª ed. 1995), e Terapia do Amor Conjugal: Como Enfrentar os Problemas da Vida Conjugal (1ª ed. 1997), ambos de Valério Albissetti, e Autocontrole e Liberdade (1ª ed. 1995). Originalmente, eles haviam sido publicados pela Editrice Paoline na coleção Psicologia e Personalità, que possuía projeto gráfico muito semelhante à reproduzida no Brasil. Ainda que se trate de empresas totalmente independentes, percebe-se uma rede internacional mais ou menos informal de traduções e colaborações entre as editoras locais da congregação. Um dos volumes da coleção, Aumente sua Autoestima e Transforme sua Vida, de autoria da brasileira Neila Abranches, foi traduzido e inserido na coleção italiana, o que sugere a complexidade e múltiplos sentidos dessa rede.

Em uma chave discursiva próxima estavam os pequenos livros da série Terapia, publicados no Brasil pela Paulus a partir de 1998. Os cerca de cinquenta títulos, cada um dedicado a uma “terapia” (Terapia do/da… amor, depressão, estresse, professor, natal, casamento, ser mulher, jardinagem, família, autoestima, alto astral, confiança em Deus, oração, perdão, simplicidade, trabalho, entre inúmeros outros), não tratavam de doutrina, e sim de autoajuda “com valores cristãos”. Originalmente em inglês sob o título Elf-help (eram ilustrados com graciosos personagens de orelhas pontudas semelhantes a duendes, de autoria de R. W. Alley), haviam sido impressos pela Abbey Press dos Estados Unidos, editora de um mosteiro beneditino.

Algumas dessas coleções seriam feitas para crianças. Autora nacional, Regina Chamilian elaborou os livros que compunham as Histórias da Bíblia, livrinhos ilustrados de cerca de 40 páginas publicados pelas Paulinas a partir de 1999. Entre os traduzidos, na mesma década havia as coleções Histórias que Jesus Contava, com cadernos para colorir (assim como a pequena coleção Orações para Colorir, lançada pela Paulinas no mesmo período) de autoria de Nick Butterworth e Mick Inkpen, e Alice no mundo da bíblia, com histórias de Alice Joyce Davidson. Ambas foram best-sellers em língua inglesa (Stories Jesus Told continua sendo) e tinham um caráter mais ecumênico, mais “cristão” em sentido amplo. Materializavam a ideia de que não se tratava de “religião”, e sim de “boas leituras”.

Esses livros são apenas pequena parte na vastidão de ofertas culturais (religiosas ou não) disponíveis no mercado. Valorizar o indivíduo, suas emoções e experiências pessoais, fazendo uso de uma linguagem verbal e visual tão em voga no período, garantiriam um alcance muito mais extenso a essas publicações, já que elas eram semelhantes às mais vendidas em todas as livrarias, não apenas religiosas.

É claro que as fronteiras, se existem, são muito movediças. Seria possível dizer que muitos desses livros se aproximam da Renovação Carismática, que é então pouco publicada pela Paulinas – diferente de outras editoras, por exemplo a jesuíta Loyola, que estava reservando parte realmente grande de seu catálogo a obras de autores como Jonas Abib, em conjunto com a Canção Nova, obras de divulgação e instrução sobre grupos carismáticos e dons do espírito santo. Se apenas uma das coleções das editoras Paulinas e Paulus abordavam diretamente essas questões – coleção Caminhos do Espírito – por outro lado seu catálogo como um todo dialogaria mais com outros elementos da Renovação Carismática. Além da própria relação implícita desta com os livros sobre cura e terapia, esse é o caso da coleção Com licença, vou falar de...amor, família, amizade, solidão, etc. formada apenas por livros do padre carismático Zeca. Livros que, na realidade, lembram muito as obras do Padre Zezinho, muito populares desde os anos 1970.

Também por conta da indeterminação das fronteiras, em determinados casos é possível perceber os limites do alcance da mediação editorial. É o que ocorre com a coleção Amor e Psique, lançada em meados da década de 1980 e ampliada pela Paulus a partir de 1994. Sob a direção de Ivo Storniolo – um dos responsáveis pela edição da Bíblia Pastoral e alinhado à teologia da libertação – e dos psicólogos Léon Bonaventure e Maria Elci Spaccaquerche, a coleção abordava temas junguianos, com um direcionamento mais acadêmico e erudito que outras séries de psicologia da editora, mais próximas do cotidiano. No entanto, alguns dos títulos, como Meditações sobre os 22 Arcanos Maiores do Tarô (anônimo, 1ª ed. 1989), chamavam a atenção não apenas de estudiosos junguianos interessados nas teorias dos arquétipos, mas de todos os envolvidos no esoterismo new age tão característico dos fins do século passado. Talvez a primeira menção ao livro na imprensa venha de um comentário positivo escrito por Paulo Coelho, identificado pelo jornal como “escritor e mago”16. Então, cabe a pergunta: neste caso, a mediação editorial católica fracassou, foi mal interpretada, ou, pelo contrário, obteve a repercussão e a popularidade almejadas, ainda que por meio da polêmica?

O fato é que essas coleções tiveram numerosas edições e reimpressões e foram representativas da expansão e da inserção das Edições Paulinas – e de suas sucessoras Paulinas e Paulus – em uma lógica de mercado mais ampla. Assim, essa expansão, além de comercial, econômica, é também uma tentativa de alargamento de sua influência simbólica, cultural e religiosa. Aparentemente contraditórias em relação à ortodoxia e à “volta à grande disciplina” prescritas por João Paulo II, as roupagens editoriais modernas dos livros apresentados são, isto sim, uma estratégia de hegemonia católica sobre os diversos discursos presentes no mercado editorial. Se os livros de autoajuda, por exemplo, são sucesso absoluto de vendas, mais coerente que tentar sobrepuja-los é publicar também livros de autoajuda, mas inserindo neles elementos de doutrina e moral, divulgando outros livros católicos nos paratextos, colocando-os ao lado de brochuras sobre novenas nas prateleiras das livrarias, ambientes em que também se encontram pequenos livros para presentear sobre aniversários e bodas, calendários, agendas, materiais sobre segurança no trânsito, saúde na terceira idade e prevenção ao uso de drogas17, buscando tornar todas as áreas da vida potencialmente orientadas pela mediação católica.

Portanto, em um período em que o contingente de fiéis diminui drasticamente, conclui-se que determinados setores da Igreja Católica optaram não por trazer de volta os convertidos, mas por reconquistar os “católicos não-praticantes”. Já que estes eram, de qualquer forma, bombardeados com bens culturais seculares, espíritas ou evangélicos, uma das estratégias possíveis era oferecer-lhes produtos similares, mas que potencialmente os conservariam sob sua esfera de influência religiosa, cultural e econômica.


 

1 Mestranda em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com pesquisa financiada pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e orientada pela Prof. Dra. Marisa Midori Deaecto.

2 Catarina A. Martini, As Filhas de São Paulo: Anotações para uma História, São Paulo, Paulinas, 1995, pp. 252-258.

3 Ver Gabriele Turi, “Cultura e Poteri nell’Italia Repubblicana”, in: Gabriele Turi (org.), Storia dell’Editoria nell’Italia Contemporanea, Florença, Giunzi, 1997, p. 410 e Joaquín Algranti, "As Formas Sociais dos Bens Religiosos: Sociologia das Editoras Católicas e Evangélicas na Argentina", Revista de Estudos da Religião (REVER), v.13, n.1, 2013, pp. 183-196.

4 Ambas as coleções permanecem sendo publicadas respectivamente pela Paulinas e Paulus ainda hoje, mesmo após a fundação da editora própria da CNBB em 2005.

5 “Inaugurou-se hontem em S. Paulo a primeira livraria genuinamente catholica”, Folha da Noite, São Paulo, quinta-feira, 26 de janeiro de 1939, p. 2.

6 Os temas remetem à clássica pesquisa de Ecléa Bosi, que constata serem as instruções e informações mais ou menos científicas sobre relacionamentos e sexualidade alguns dos livros mais populares entre operárias de uma fábrica de Osasco, na grande São Paulo, durante os anos 1970. Muitas das mulheres entrevistadas por Bosi também mencionavam livros religiosos, o que faz pensar que as obras de Padre Zezinho conseguiram reunir o que sempre houve de mais polêmico e instigante à curiosidade – o sexo – ao que é tido em alta estima e consideração social e moral, e, portanto, permite que os livros sejam comprados e lidos sem grandes pudores – a religião. Cf. Ecléa Bosi, Cultura de Massa e Cultura Popular: Leituras de Operárias, Petrópolis, Vozes, 1977.

7 Em 1974, por exemplo, uma foto de Padre Zezinho ocupava toda a capa da revista Família Cristã, acompanhada pelo título “Quem é o Pe. Zezinho SCJ?”, Família Cristã, ano 40, n. 459, março de 1974.

8 OUVRY-VIAL, Brigitte. “L’Acte Éditorial: vers une Théorie du Geste”. Communication & Languages, n. 154, 2007, pp. 67-82.

9 Robert Darnton, “O que é a História dos Livros?”, in: O Beijo de Lamourette: Mídia, Cultura e Revolução, São Paulo, Companhia das letras, 1990.

10 Sobre essas e outras, ver Flamarion Maués, "Livros, Editoras e Oposição à Ditadura", Estudos Avançados, v. 28, n. 80, pp. 91-104, 2014.

11 É o caso da coleção Vinde, Adoremos, dedicada quase exclusivamente ao sacramento da eucaristia.

12 Tendência percebida por Paula Montero já na década de 1990. Ver Paula Montero, “O Papel das Editoras Católicas na Formação Cultural Brasileira”, in: Pierre Sanchis (org.), Catolicismo: Modernidade e Tradição, São Paulo, Loyola, 1992 e, da mesma autora, “Letras Católicas na Sociedade de Massas”, in: Ralph Della Cava & Paula Montero, E o Verbo se Faz imagem: Igreja Católica e os Meios de Comunicação no Brasil, 1962-1989, Petrópolis, Vozes, 1991.

13 Laurence Hallewell, O Livro no Brasil: sua História, 3. ed., São Paulo, Edusp, 2012, pp. 914-934.

14 Leia Livros, n. 80, junho de 1985 e n. 92, junho de 1986.

15 Em 1995, a edição local de O Estado de S. Paulo noticia a alteração do nome da livraria localizada na Praça da Sé. A matéria é interessantíssima e claramente faz parte da estratégia de divulgação da nova marca, buscando associá-la à tradição das Edições Paulinas: “O taxista Leonel dos Santos vai ao local justamente por ser católico. Santos se diz um consumidor fiel. ‘Aqui a gente sabe que pode confiar’, diz. A dona de casa Mildrid Womela também é uma frequentadora assídua. Na sexta-feira, ela procurava uma bíblia para presentear uma sobrinha que vai fazer a primeira comunhão. ‘É a única livraria católica que conheço’, justificou”. Há também uma descrição da variedade de itens disponíveis: “Na livraria é possível encontrar ainda títulos de outras editoras. Os livros de psicologia, ioga e receitas estão entre os mais requisitados. Imagens de santos, quadros, bíblias, cartões e outros artigos religiosos também compõem o cenário”. Como se não bastasse a diversidade dos produtos, o jornal ainda entrevista um “mórmon” e uma “espiritualista” que costumam frequentar o local. “Livraria Edições Paulinas Muda de Nome”, O Estado de S. Paulo, 8 de março de 1995, Caderno Seu Bairro, p. Z12.

16 Para o autor da resenha, Meditações... “mostra como o cristianismo é uma continuidade do processo de conhecimento esotérico”. Folha de S. Paulo, sábado, 21 de abril de 1990, Caderno Letras, p. F-2.

17 Alguns dos títulos da coleção Conscientizar, seguidos de autor e data (as edições após 1994 foram realizadas pelas Paulinas): Alcoolismo, o que Você Precisa Saber (Donald M. Lazo, 1989); Motorista, Boa Viagem! (Antonio Baggio, 1991); Idade Inútil? Como se Preparar para Tirar proveito da Velhice (Eduardo López Azpitarte, 1995); Das Drogas à Esperança: uma Filosofia de Reumanização (José Luis Cañas, 1998); Convivendo com a Perda de uma Pessoa Querida (Arnaldo Pangrazzi, 1998); Envelhecer sem Ficar Velho: a Aventura Espiritual (Jean-Pierre Dubois-Dumée, 1999); Ecologia: um Exercício de Fé. Dinâmicas para Grupos de Jovens (Alejandro Londoño, 2000).