Consciência e conscientização no Materialismo Histórico de Paulo Freire

 

Carlos Mário Paes Camacho (PUC-Rio)1

Jason Ferreira Mafra (FE/USP)2

1. Introdução

Educação e atualidade brasileira é uma obra constituída por um conjunto dos temas que foram desenvolvidos e refletidos por Paulo Freire ao longo da sua trajetória de vida intelectual e de educador. Os conceitos de consciência e conscientização, que serviram de base para a análise dos desafios que se impunham à educação em um contexto histórico brasileiro marcado pelo desenvolvimento industrial, indicam a presença e a assimilação do Materialismo Histórico pelo pensador.

Pedagogia do oprimido, livro que atesta a singularidade das concepções educacionais do autor, igualmente representou o momento em que o Materialismo Histórico ganhou contornos teóricos nítidos na escrita e nas análises freirianas. Em razão disso, os conceitos de consciência e conscientização, além de singularizarem as análises sobre as condições materiais e contradições sociais, serviram de base para as pesquisas que se desenvolveram acerca da educação voltada para a liberdade e diálogo a qual, no limite, propunha o fim da opressão, bem como a restauração da humanização de homens e mulheres.

Este artigo objetiva, por meio de um estudo comparativo, verificar a presença das categorias teóricas consciência e conscientização nos livros Educação e atualidade brasileira e Pedagogia do oprimido que representam dois momentos distintos do pensamento educacional de Paulo Freire cuja base teórica é o Materialismo Histórico.

Defende-se, aqui, a ideia de que os referenciais teóricos consciência e conscientização, utilizados em Educação e atualidade brasileira e Pedagogia do oprimido, imprimiu ao Materialismo Histórico como teoria de investigação do processo histórico uma originalidade que marcou as investigações freirianas sobre a educação. Como primeiro argumento, é possível afirmar que as análises educacionais do pensador, sempre acompanhadas das questões históricas, tinham como fundamento a análise dialética da realidade, bem como a necessidade da educação como meio de conscientização e de diálogo entre homens e mulheres. O segundo argumento proposto está relacionado ao esforço de Paulo Freire na utilização dos referenciais teóricos consciência e conscientização para atualizar o Materialismo Histórico no Brasil da década de 1960.

2. Consciência e conscientização em Educação e atualidade brasileira.

Escrito em 1959, como tese de doutorado para a cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes de Pernambuco, Educação e atualidade brasileira, não só reflete as ideias e concepções que marcaram a obra de Paulo Freire naquele contexto da história do Brasil, como também expõe uma série de temas à educação, que vão marcar o conjunto da obra do educador3. Os conceitos de consciência e conscientização são os principais referenciais teóricos usados por Freire para investigar os principais desafios da realidade brasileira na obra que só foi publicada após a sua morte.

As teses defendidas por Paulo Freire em Educação e atualidade brasileira e publicado em livro em 2001 sob a cuidadosa organização e contextualização de José Eustáquio Romão são expostas em três capítulos4. Os desafios para a criação de um novo modelo educacional em consonância com a nova realidade brasileira marcada pela expansão industrial e urbana nas décadas de 1950 e 1960 constitui-se como o tema central da obra, podendo ser expresso na seguinte questão: Como criar uma nova educação, formadora de uma consciência crítica e que responda aos desafios impostos pela industrialização e a urbanização ?

No primeiro capítulo, o autor considera que não é possível avaliar e compreender a realidade e a atualidade nacional sem se reportar ao processo histórico brasileiro. Paulo Freire valoriza o entendimento da história como processo-chave de leitura do momento em que escrevia o seu primeiro livro. Nessa perspectiva, os problemas e os desafios educacionais em uma sociedade em mudança, portanto, precisam ser avaliados, a partir da história do Brasil. A importância da compreensão do processo histórico pode ser assim exemplificado:

O conhecimento “crítico” destas marcas demonstrará como, muitas delas, umas, que se formam lentamente em toda a nossa vida colonial e que se exteriorizam ainda em disposições mentais, e algumas outras, provocadas por fatos novos, vêm se fazendo antinômicas. E vêm também explicando comportamento contraditório no homem brasileiro. (FREIRE, 2001, p. 25)

O resgate do passado deve se feito de maneira a evidenciar a permanência de valores e concepções de vida passadas que continuam no presente. Freire revela para o leitor uma visão do conhecimento histórico cuja história é movida pela contradição. Sendo assim, não seria exagero algum indicar nesta primeira obra que o autor de Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, apresentasse ao leitor algumas noções da sua visão materialista, fundamental para a compreensão do conjunto das suas obras5.

No segundo capítulo, há uma proposta de se fazer uma leitura da história do Brasil, a fim de explicar o porquê das dificuldades da educação atender aos desafios que emergiam do desenvolvimento industrial e urbano. O processo de desenvolvimento educacional brasileiro desde a colônia não poderia, por si só, explicar as origens das dificuldades e problemas educacionais (FREIRE, 2001, p. 59-60).

Fundamentado nas pesquisas de Caio Prado Júnior, Nelson Werneck e Gilberto Freyre - os dois primeiros de orientação teórica marxista - Freire defende a tese de que a colonização do Brasil, marcada pela escravidão e exploração, é responsável também pela inexperiência democrática. A sociedade colonial na América de colonização portuguesa não contribuiu para a edificação de um sistema educacional que fosse capaz de ensejar uma cultura que propiciasse o diálogo.

Ao longo do capítulo, Paulo Freire irá demonstrar para o leitor as marcas da presença colonial no interior da sociedade brasileira da época. Ela explica em linhas gerais o assistencialismo e o poder elitista excludente que criou uma educação “verbosa” e “bacharelesca”, termos igualmente frequentes na obra freiriana. O desdobramento disso foram ações educacionais alicerçadas em projetos educacionais sem muita vinculação com a realidade brasileira. Neste sentido, o momento histórico em que Freire redigia a sua obra sugeria a presença de um problema que se impunha com o decorrer dos anos, constituindo-se como um desafio:

Não nos será possível, por exemplo, projeto de educação democrática, com o qual nos opuséssemos opor à marcante e sempre “inexperiência democrática” brasileira, se nos faltassem condições favoráveis em nosso acontecer histórico atual. Toda esta ação educativa, assim, se porta mais num plano idealista. Seria inorgânica, superposta, porque sem sintonia com a realidade. (FREIRE, 2001, p. 60)

A ausência de políticas e ações educacionais consistentes que caracterizaram o processo histórico educacional fez com que Paulo Freire destoasse do clima de euforia que marcou o Brasil no contexto do desenvolvimentismo e do desenvolvimento industrial6. Sendo assim, a continuação de um modelo de educação autoritária e bancária, esmiuçado depois pelo pensador em Pedagogia do oprimido, comprometeria o esforço de se edificar no Brasil uma sociedade comprometida com a consolidação de uma relação dialógica entre homens e mulheres, pilar fundamental de um processo contínuo de conscientização crítica.

O terceiro capítulo, o último e mais importante, foi dedicado a uma série de reflexões sobre o papel da educação e as suas contribuições para o desenvolvimento de uma consciência crítica e democrática no Brasil em um contexto histórico assinalado pelo desenvolvimento industrial. Neste sentido, estudos que se tornaram referências obrigatórias para a compreensão da constituição do pensamento educacional de Paulo Freire no contexto histórico assinalado pela expansão industrial e urbana, como os de Vanilda Paiva e Celso Beisiegel, associavam as ideias educacionais do autor aos temas do desenvolvimentismo e da nação7. A primeira afirmou que Paulo Freire associava o desenvolvimento como caminho para se chegar à democratização (PAIVA, 200. p. 144)8.

Posto isso, a participação de homens e mulheres em todos os níveis da educação é um passo importante para se combater o imobilismo engendrado pela “inexperiência democrática”. O planejamento escolar, juntamente com a participação de homens e mulheres nas escolas, ensejaria a construção da autonomia escolar, bem como a construção de uma consciência crítica. Contudo, o “assistencialismo” e a “educação verbosa” sem vinculação alguma com a realidade social deveriam ser substituídos, pois representam a “inexperiência democrática” (FREIRE, 2001, p. 81). Assim, segundo Freire, o Brasil precisaria rever o seu processo educativo:

Assim, o problema educativo se faz amplamente político. E político não só no sentido da indispensável descentralização da educação, ardente e lucidamente defendida pelo professor Anísio Teixeira, mas também no da planificação de medidas com que obtenham reformas no comportamento das agências particulares, extrapedagógicas. (FREIRE, 2001, p. 81)

A passagem acima, ao apresentar a educação como um problema político, põe em questão o desafio de se pensar um modelo de educação que atenda as necessidades locais. A defesa de um modelo que oportunize uma descentralização da educação é vista por Paulo Freire como essencial para que a escola possa desenvolver atividades que integrem homens e mulheres como cidadãos em um contexto assinalado pelas transformações econômicas e sociais9. A defesa de um sistema educacional que se apoie nas necessidades regionais e locais, contudo, não significa deixar de lado os problemas e as reflexões que estão em torno de um projeto educação nacional. Logo, trazer para o interior das escolas as demandas e as características das regiões nas quais elas estão inseridas requer, simultaneamente, pensar a formação educacional e cidadã de homens e mulheres como seres que compartilham valores nacionais. Sendo assim, ao perceber as mudanças sofridas pela economia brasileira na sua infraestrutura, Paulo Freire percebe uma espécie de descompasso entre o desenvolvimento industrial brasileiro e a educação brasileira que não estava adequada para fomentar a consciência crítica no Brasil.

Cabe assinalar que nas últimas partes do capítulo, o autor defende que a consolidação de uma educação democrática, formadora de uma consciência crítica não pode ser realizada sem um rompimento com a educação “verbalista” e “antidialógica” que reforça a “inexperiência democrática”. (FREIRE, 2001, p. 96).

3. Consciência e conscientização em Pedagogia do oprimido.

Pedagogia do oprimido representou o auge das concepções teóricas que fundamentaram o pensamento político de Freire sobre a educação. Exprime, ainda a consolidação do Materialismo Histórico como teoria utilizada por Freire para a investigação da educação como dimensão da realidade social10. José Eustáquio afirma que a obra que projetou mundialmente o pensador representou “a maturidade do pensador, do educador e do escritor” (ROMÃO, 2002, P. 34)11.

Ao longo do prefácio endereçado ao livro Pedagogia do oprimido e redigido por Ernani Maria Fiori, os termos consciência e conscientização são assinalados como fundamentais para a compreensão de uma pedagogia que investiga o mundo e que elegeu o oprimido como protagonista e como meio para uma transformação social. Fiori, outrossim, ainda destaca as ações educacionais de Paulo Freire, por intermédio do Método de Alfabetização. O processo de conscientização de homens e mulheres é uma construção dialética, a partir do mundo que é pensado e edificado, através do trabalho. Deste modo, Fiori apresenta ao leitor o Materialismo Histórico de Freire, colocando-o no mesmo grau de importância da dialética e conscientização.

No início do primeiro capítulo, intitulado “Justificativa da pedagogia do oprimido”, Freire reconhece que o tema é amplo e é resultado direto de questões discutidas em Educação como prática da liberdade, até aquele momento a sua primeira publicada. E, antes de mencionar a luta do oprimido contra a exploração, o pensador põe em questão a humanização como um valor fundamental para o processo de libertação de homens e mulheres. A partir daí, a questão do oprimido passa a ser tratada e justificada.

Ao prosseguir na justificativa da pedagogia do oprimido, o autor enfatiza que a luta contra a opressão deve ter como referencial máximo a restauração da humanidade nos opressores e oprimidos. Este não pode, posteriormente, ocupar o lugar do opressor (FREIRE, 2016, p. 41). A luta política do oprimido contra a ordem social desigual e massificadora desenvolve-se igualmente no âmbito das lutas de classes, as quais só podem ser feitas por homens e mulheres oprimidas que tiverem a acesso a uma pedagogia que fomente o conhecimento e o desvendamento da realidade social, por intermédio do diálogo que estimule a constituição da consciência crítica. Por isso, Freire asseverava: “A pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestação da desumanização” (FREIRE, 2016, p. 43). Encontra-se aí nesta passagem um exemplo nítido de que na concepção freiriana a pedagogia do oprimido, que busca a humanização de homens e mulheres, deve assumir um compromisso político com a transformação radical da sociedade.

O uso da dialética marxista para explicar a relação que envolve o opressor (expressa a consciência do senhor) e o oprimido (representa a “consciência servil”) é o ponto de partida para o desvelamento e a compreensão da coisificação e massificação de homens e mulheres oprimidas. Por isso, a construção e a transformação da realidade objetiva pelos seres humanos fundamenta-se na percepção e na análise das condições materiais.

O segundo capítulo dedica-se, em linhas gerais, a oferecer ao leitor as bases teóricas de uma educação libertadora, fonte da Pedagogia do oprimido, em contraposição a uma concepção elitista de educação identificada com o opressor e rotulada por Freire como: “a concepção bancária da educação.” (FREIRE, 2016, p. 79). Esta tem a ver com a ideia de que a realidade é apresentada ao educando como algo naturalizado e estático. Educador e educando, portanto, não se percebem como vinculados a uma realidade histórica marcada por problemas e que se move por intermédio de contradições sociais. O corolário disso é a subordinação do educando em relação ao educador, suposto detentor do conhecimento. Nas palavras do próprio Freire:

Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro. (FREIRE, 2016, p. 81)

O saber, enquanto doação, aspecto intrínseco da “educação bancária” do opressor, é associado à ideologia e à alienação. Tais conceitos, fundamentais para a compreensão do Materialismo Histórico de Marx e de Engels, são utilizados por Paulo Freire para demonstrar o papel da alienação e da ideologia do opressor que impedem o oprimido de ter acesso ao conhecimento da realidade material movida pela luta de classes, por intermédio de uma consciência crítica.

A “dialogicidade” constitui-se como o tema gerador das análises de Paulo Freire no terceiro capítulo. A problematização do tema justifica-se em razão da sua presença e importância para a constituição de uma educação voltada para a consolidação da liberdade como valor fundamental das relações entre os seres humanos. A palavra, então, ganha força em Pedagogia do oprimido como base para a reflexão e a ação (FREIRE, 2016, p. 107). Por conseguinte, a palavra indica a presença da força do Materialismo Histórico como meio escolhido por Paulo Freire para pronunciar as suas concepções de educação. Nas palavras do pensador:

Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca e ideias a serem consumidas pelos permutantes. (FREIRE, 2016, p. 109)

A palavra que viabiliza o diálogo também confere a legitimidade da existência. Na visão freiriana, o diálogo pela palavra desvela e transforma homens e mulheres em sujeitos ativos e protagonistas da história. O diálogo que comunga, fraterniza e solidariza é o mesmo que refuta a “educação bancária” e enseja o processo contínuo de construção da consciência crítica. Logo, reafirmar a solidariedade entre homens e mulheres e a relação dialógica oportuniza a perspectiva de se pensar um processo histórico em constante movimento.

Depois de indicar aos educadores a importância da elaboração de conteúdos programáticos para uma educação fundada no diálogo e na conscientização e com vistas à transformação revolucionária da sociedade, Paulo Freire volta-se mais uma vez para a análise das condições materiais da sociedade. Tal retorno tem como objetivo reafirmar a educação de base libertária, dialógica e conscientizadora. Os seres humanos que estabelecem relações sociais, por meio do trabalho, produzem sua sobrevivência material. O Materialismo Histórico faz com que Paulo Freire represente a história como um processo em que o tempo é dimensionado na relação passado, presente e futuro. (FREIRE, 2016, p. 128). É relevante chamar a atenção ainda que o autor compreendia que os temas históricos não deveriam ser abordados de maneira isolada e, sim, vinculados a uma história em movimento. Nas palavras do autor:

Desta forma, não há como surpreender os temas históricos isolados, soltos, desconectados, coisificados, parados, mas em relação dialética com outros, seus opostos. Como também não há outro lugar pra encontrá-los que não seja nas relações homem-mundo.O conjunto dos temas em interação constitui o “universo temático” da época. (FREIRE, 2016, p. 129).

A concepção dialética da história defendida por Freire sustenta a tese de que os temas históricos não devem ser representados como desconectados da realidade que se transforma a partir das relações de produção estabelecidas por homens e mulheres para a produção da vida material. E, ao enfatizar as “relações homens-mundo”, não seria equivocado afirmar mais uma vez o quanto o Materialismo Histórico pensado e aplicado por Freire ganha vitalidade com a força do ser humano que cria cultura e atua como protagonista para a construção da História.

No quarto e último capítulo, há a análise das teorias que constituem a “ação cultural” (FREIRE, 2016, p. 167). O autor insiste logo no início que homens e mulheres, imbuídos da “práxis”, são capazes de transformar a sua realidade por intermédio do trabalho. A partir das noções de “práxis” e “quefazer”, Paulo Freire delineia uma série de pontos, a fim de esclarecer o comportamento revolucionário que se faz necessário para a transformação social. (FREIRE, 2016, p. 169).

Em seguida, o capítulo realça mais uma vez a importância de se compreender a realidade material e as suas contradições sociais, fundamentais para a análise da situação do oprimido. O autor situa as condições materiais da sociedade como uma construção de homens e mulheres. A história, portanto, é uma construção humana. Assim, ao se referir a Marx, Freire diz o seguinte:

Não há realidade histórica – mais outra obviedade – que não seja humana. Não há história sem homens, como não há uma história para os homens, mas uma história de homens que, feita por eles, também os faz, como disse Marx.

E é precisamente, quando às grandes maiorias – se proíbe o direito de participarem como sujeitos da história, que elas se encontram dominadas e alienadas. (FREIRE, 2016, p. 175)

O papel atribuído ao oprimido como sujeito da transformação social está intimamente relacionado com a percepção que Paulo Freire tinha sobre a importância do conhecimento histórico como meio formador da consciência crítica. Por isso, a massificação e a alienação do oprimido que não alcançava o estágio de consciência crítica estava relacionado ao desconhecimento do funcionamento do processo histórico e de ações e comportamentos humanos antidialógicos. Posto isso, o contraponto necessário à “ação antidialógica” é o estabelecimento de uma dinâmica educacional e cultural capaz de transformar o oprimido em protagonista e agente de um processo revolucionário. A conscientização e o diálogo devem colaborar para que o homem e a mulher oprimida sejam sujeitos da História. (FREIRE, 2016, p. 216).

Compete, finalmente, assinalar que a obra Pedagogia do oprimido expressa o quanto o Materialismo Histórico de Marx e Engels foi importante para a consolidação das análises de Paulo Freire sobre a sociedade e a educação brasileira do seu tempo. É importante ainda lembrar que os referenciais teóricos como consciência, conscientização, práxis, quefazer e ação dialógica exemplificam o quanto o materialismo e a dialética dos autores do Manifesto Comunista foram atualizados pelas reflexões freirianas.

4. Considerações Finais

A presença dos referenciais teóricos consciência e conscientização nos escritos de Paulo Freire desde Educação e atualidade brasileira atestam a singularidade das reflexões teóricas educacionais freirianas. Estas tiveram como base o Materialismo Histórico.

Em Educação e atualidade brasileira, Freire discute a educação e os seus desafios em um contexto histórico brasileiro marcado pela expansão industrial. Uma das tarefas consistiria na criação de uma nova educação capaz de gerar, entre homens e mulheres, uma consciência crítica. E, ao investigar a história do Brasil e o seu papel para se pensar a trajetória educacional, o pensador sublinha a importância do estudo da história e acaba por construir, aos poucos, a sua análise materialista que se revelou original na medida em que é portadora de referenciais como “dialogicidade”, “práxis” e “quefazer”.

Pedagogia do oprimido representou o momento em que as linhas mestras do pensamento freiriano foram definidas. Concomitante a isso, o autor, que estava no exílio em razão do regime militar, alcançou um prestígio muito grande em razão das suas atividades acadêmicas na Europa e nos Estados Unidos e por ter participado de experiências de alfabetização, por intermédio de um método de ensino que alfabetizava homens e mulheres em curto período de tempo. Sendo assim, a obra que notabilizou Paulo Freire, além de conferir ao mesmo um reconhecimento mundial, foi ainda a que expressou a consolidação do Materialismo Histórico como referencial teórico para a investigação da sociedade e da educação.

Por fim, os conceitos de consciência e conscientização fornecem consistência teórica para a edificação de uma pedagogia do oprimido comprometida com a liberdade, o diálogo, a “práxis” e o “quefazer”. O corolário disso são o vigor e a originalidade do Materialismo Histórico em Paulo Freire.

5. Referências Bibliográficas.

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1 Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pós-Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-Doutor em Educação pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE).

2 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e diretor do Programa de Mestrado em Gestão e Práticas Educacionais (PROGEPE), ambos da Universidade Nove de Julho (UNINOVE).

3 No texto, Contextualização: Paulo Freire e o pacto populista inserido na publicação de Educação e atualidade brasileira, José Eustáquio Romão faz um inventário bastante revelador do processo histórico brasileiro, tomando como ponto de partida a década de 1920. A ênfase no período que vai de 1945 a 1964 tem como objetivo maior resgatar uma série de questões que estiveram presentes na obra publicada em 1959 e informar o leitor sobre as mesmas.

4 FREIRE, Paulo Reglus Neves. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2001.

5 Romão considera que Paulo Freire, no contexto histórico marcado pelo populismo, percebia uma contradição: “dar vez ao povo sem dar-lhe voz” (ROMÃO, 2001, p. 38). Tal percepção indica a presença da análise dialética da realidade histórica brasileira e que é um dos princípios fundamentais do Materialismo Histórico.

6 Não se constitui como objetivo deste artigo fazer um resumo do contexto histórico brasileiro, sobretudo ao que diz respeito ao governo Juscelino Kubitschek (1956-196) que tinha como um dos seus objetivos centrais estimular investimentos em obras de infraestrutura e estimular o desenvolvimento industrial. A historiografia sobre o período é copiosa e foi acrescida recentemente com o livro de Carlos Fico: História do Brasil contemporâneo: da morte de Vargas aos dias atuais.

7 Ver respectivamente: PAIVA, Vanilda. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Graal, 2000. BEISIEGEL, Celso de Rui. Política e educação popular: a teoria e a prática de Paulo Freire no Brasil. 3.ed., São Paulo: Ática, 1992.

8 Vanilda Paiva diz ainda: “A preocupação de Freire é a de desenvolver uma pedagogia adequada a essa mudança e ele explícita não apenas este seu propósito, mas também a conexão entre esta motivação básica do seu trabalho e a sua intepretação da realidade. (PAIVA, 2000, p. 144).

9 Freire assinala, em seguida, a necessidade da educação como meio para o desenvolvimento da “consciência transitivo-crítica”. (FREIRE, 2001, p. 83).

10 É importante recordar que a Dialética, o Materialismo e a ideia de Historicidade são referenciais teóricos constituintes fundamentais do Materialismo Histórico. Há de se acrescentar que o prefácio de Marx, inserido na Contribuição à crítica da economia política, é um resumo da teoria materialista de Marx, na medida em que assinala o papel das relações de produção não só para a produção da vida material como também para a determinação da consciência social, revelando as relações entre a infraestrutura e a superestrutura . (MARX, 2011, p.)

11 ROMÃO, José Eustáquio. Pedagogia dialógica. São Paulo: Cortez Editora/IPF, 2002.